Economia

A crise financeira que corrói o capitalismo mundial tem origem na crescente ineficiência do sistema de pagamentos

[nextpage title="p1" ]

Em 19 de outubro de 1987, a Bolsa de Valores de Nova Iorque sofreu a maior queda de sua história, queda imediatamente acompanhada pelas demais Bolsas de todos os países capitalistas. Caíram violentamente as cotações em Londres, Paris, Tóquio, assim como em São Paulo e no Rio de Janeiro. As sirenes de alarme soaram estridentemente na media eletrônica e impressa do mundo inteiro. A lembrança do fatídico outubro de 1929 sugeria que a economia mundial se encontrava diante de nova catástrofe, semelhante àquela que marcou os anos trinta. Tanto mais que nos últimos anos se multiplicavam as divergências de que a desenfreada especulação financeira estava reproduzindo as condições que causaram o estouro em Wall Street há quase meio século.

A crise financeira, sinalizada pela queda das Bolsas, já vem se desenvolvendo há duas décadas e tem a ver com as transformações que estão ocorrendo no relacionamento entre as grandes potências capitalistas, entre estas e os demais países e no panorama sócio-político interno das várias nações. A queda das Bolsas é tipicamente um epifenômeno, uma manifestação superficial duma crise muito mais profunda, cujos desdobramentos deverão impor, mais cedo ou mais tarde, uma reestruturação da economia mundial.

As Bolsas caíram, em fins de outubro, porque os aplicadores descobriram subitamente que as ações estavam sobrevalorizadas em relação aos títulos de crédito, que rendem juros. Ações são títulos de propriedade de empresas, que proporcionam dividendos aos seus possuidores. Os dividendos são, em princípio, proporcionais aos lucros, mas apenas uma certa parcela dos lucros são distribuídos sob a forma de dividendos. Os lucros não distribuídos são usados para financiar investimentos, que devem assegurar lucros maiores no futuro.

A cotação das ações reflete a opinião dos aplicadores sobre os lucros futuros das empresas. Compram-se ações em função não só dos dividendos a serem distribuídos, mas sobretudo da valorização futura, que depende das inversões realizadas pelas empresas e naturalmente da conjuntura econômica do país.

No capitalismo, a evolução da conjuntura não pode ser antecipada com certeza. A cada momento, os aplicadores se dividem em dois "times": os otimistas e os pessimistas. Os otimistas compram ações dos pessimistas. Se o volume de ações ofertadas pelos pessimistas for maior que o demandado pelos otimistas, as cotações caem, o que confirma as previsões dos pessimistas, independentemente do que se passa na economia real. Os pregões na Bolsa são diários e o curso das cotações influi no ânimo dos aplicadores. Uma queda generalizada das cotações, num dia, reforça o "time" dos pessimistas. No dia seguinte, o volume de ações colocado à venda aumenta. Ao passo que o volume demandado cai. Segue-se nova queda das cotações, nova passagem de aplicadores do "time" de otimistas ao de pessimistas e assim por diante. Foi o que aconteceu em Wall Street em outubro último. As cotações vinham caindo há vários dias. De repente, o desequilíbrio entre oferta (pessimistas) e demanda (otimistas) é tão grande que as cotações não param de cair. Não há limite para a queda, pois quem consegue vender antes ainda alcança um preço melhor pelas suas ações e pode até recomprá-las, algumas horas depois, a um preço mais baixo. Este movimento para baixo das cotações tem inércia tão forte que pode levar a uma situação em que haja só vendedores, sem que alguém se disponha a comprar. É o colapso, que arruína milhões de aplicadores, pois muitos compram ações a crédito, que não têm como honrar quando o valor de sua carteira de ações se aproxima de zero. O que pode arrastar ao desastre as instituições financeiras que aplicaram grande parte dos recursos nelas depositados no jogo da Bolsa. E é claro que, se muitos bancos quebrarem, as empresas que depositaram neles suas reservas sofrerão prejuízos. Desta forma, o colapso das Bolsas pode gerar uma crise financeira e esta pode dar lugar a uma crise econômica.

Uma onda de pessimismo surge, em geral, ao cabo de um período em que predominou o otimismo e a cotação das ações se elevou sem parar. É que o otimismo, na Bolsa, se auto-alimenta do mesmo modo que o pessimismo. Uma vaga de otimismo pode ser desencadeada por acontecimentos fortuitos, tais como bons balanços de empresas importantes, uma vitória eleitoral de forças conservadoras, a derrota dos operários numa greve de grande impacto. A expectativa de maiores lucros induz um aumento da demanda por ações e ao mesmo tempo reduz sua oferta, porque menos gente quer desfazer-se delas. O desequilíbrio entre oferta e demanda eleva as cotações, proporcionando lucro aos otimistas. No dia seguinte, mais aplicadores passam do "time" vendedor ao comprador, as cotações voltam a subir, quem comprou teve ganhos, quem vendeu teve perdas. O que reforça de novo o "time" de otimistas e reduz o de pessimistas e assim por diante. As Bolsas podem subir assim durante semanas, meses e até anos. Segundo Stephen Marris (1987), o índice Dow Jones (das cotações da Bolsa de Valores de Nova York) subiu mais de 100% nos dois últimos anos, até agosto de 1987.

De vez em quando, durante um período de otimismo generalizado, as cotações caem um pouco. E quando os grandes aplicadores "realizam lucros", isto é, vendem grandes quantidades de ações que se valorizam para fazer pagamentos aos cotistas de fundos de aplicação ou para aplicar em outra coisas. Mas estas quedas são temporárias. As altas atraem novos aplicadores às Bolsas, que se desfazem de imóveis, títulos de créditos, dinheiro entesourado ou ouro para comprar ações. O valor destas sobe a níveis que nada têm a ver com o montante previsível de lucros futuros das empresas. Mas, nesta altura, a atenção dos aplicadores não se prende mais aos lucros, mas ao próprio curso das cotações. Vale a pena comprar uma ação valorizadíssima simplesmente porque sua cotação ainda vai subir mais. O que se visa não é mais participar do lucro das empresas, mas obter "ganhos de capital", isto é, comprar ações hoje para vendê-las amanhã ou pouco depois a preço mais elevado. Ganha-se assim muito dinheiro e com grande facilidade, porque é possível comprar ações a crédito. Um especulador pode aplicar em ações três ou quatro vezes mais do que o montante de seus recursos próprios, tomando a diferença emprestada, sendo as próprias ações a garantia do empréstimo. Ao vender as ações alguns dias da semana depois, o aplicador liquida o empréstimo, paga os juros e embolsa um "ganho de capital", que pode ser apreciável em relação ao valor do que ele mesmo botou no negócio. É claro que no momento seguinte, ele volta a fazer a mesma jogada em escala ainda maior.

Quando falamos em "aplicadores", estamos nos referindo a pessoas jurídicas (firmas) e físicas (indivíduos), que detêm valores poupados - rendas passadas não gastas - e as aplicam, visando ganhos financeiros. Entre as pessoas jurídicas, destacam-se fundos de pensão, empresas de todos os tamanhos e fundos mútuos, que reúnem as pequenas poupanças de grande número de indivíduos. Estes grandes aplicadores colocam seus valores em diferentes ativos: ações, títulos de crédito (do Tesouro, debêntures de firmas privadas), ouro, moeda conversível (nacional ou estrangeira), etc. Estes ativos compõem um carteira (portfólio), cuja diversificação se destina a diluir os riscos, já que qualquer ativo pode se desvalorizar. Acontece que, quando certos ativos, como as ações, se valorizam, outros ativos, como os títulos de crédito por exemplo, são vendidos para, com o dinheiro de sua venda, se comprarem ações. Isso faz com que os títulos percam valor. Quando as ações por sua vez perdem valor, muitos aplicadores procuram vendê-las, para poder comprar títulos de crédito, ouro, etc. Isso leva ao aumento do valor dos títulos ou do ouro. Deste modo, a composição das carteiras vai mudando - é isso que constitui a especulação financeira - mas o seu valor original, ou seja, a soma do valor dos ativos que as compõem varia menos do que o valor de cada ativo, em virtude dos movimentos compensatórios acima descritos.

Os títulos de crédito têm seu valor determinado pelo rendimento anual que dão, comparado às taxas de juros em cada momento. Assim, uma obrigação do Tesouro, no momento em que foi emitida, oferece uma renda fixada em função da taxa de juros então vigorante, digamos de 5% ao ano. O que significa que uma obrigação de US$ 100 "paga" US$ 5 por ano. Suponhamos que, tempos depois, a taxa de juros sobe para 10% ao ano. A mesma obrigação agora vale apenas US$ 50 porque US$ 5 anuais são 10% de US$ 50, embora o valor nominal da obrigação continue sendo de US$ 100, que é o seu valor de resgate, no dia do vencimento. Mas, as obrigações que estão longe de seu vencimento têm seu valor determinado pelo quociente de seu rendimento anual pela taxa de juros, o qual varia portanto inversamente com a taxa de juros. No exemplo acima, tendo a taxa de juros dobrado, o valor do título caiu à metade.

No caso dos títulos de crédito, a taxa de juros é, em boa medida, determinada pelas necessidades do governo, que precisa a cada ano vender títulos no valor de seu déficit orçamentário somado ao valor dos títulos já emitidos, que vendem cada ano. O governo tem, em princípio, duas alternativas para obter este dinheiro: ou toma emprestado, isto é, vende obrigações do Tesouro, ou emite moeda. Quando toma emprestado, o governo compete com empresas pela poupança, forçando a elevação da taxa de juros; quando ele emite moeda, a oferta cresce mais do que a procura no mercado de dinheiro e a taxa de juros tende a cair.

Com esses elementos dá para entender o que aconteceu com a Bolsa de Nova York em 19.10.87: o governo dos EUA, através de seu banco central, o Fed (Federal Reserv System), em conjunto com os bancos privados, vinha elevando a taxa de juros, desde o começo do ano. Marris (1987) relata que, em conseqüência, ocorreu "uma queda de mais de 25% no mercado de títulos". Isso tornou a aplicação em títulos mais lucrativa, atraindo dinheiro antes aplicado em ações. Além disso, a alta dos juros tornava menos interessante a compra de ações a crédito. Logo, as cotações nas Bolsas começaram a cair, à medida que os grandes aplicadores modificaram a composição de suas carteiras, substituindo ações por títulos de crédito. Durante alguns meses, o crescimento do time de "pessimistas" à custa do de "otimistas" foi gradual. O índice Dow Jones caiu de seu auge de 2662 pontos em agosto para 2596 em setembro. Mas, em outubro, a queda se acelerou: na sexta-feira, 16.10.87, o Dow Jones já estava em 2246, o que deve ter desalentado os que até então se mantinham otimistas, acreditando que as cotações se recuperariam. A maioria deles resolveu, no fim de semana, mudar de lado e se livrar das ações, antes que fosse tarde demais. O que acarretou enorme queda das cotações no pregão de segunda-feira, 19.10.87, no fim do qual o índice Dow Jones tinha caído a 1738, uma queda de 22,6% num único dia.

Um colapso das cotações deste tamanho acarreta "pânico". As imensas perdas dos que não venderam suas ações fazem que novas ordens de venda se acumulem, ampliando o desequilíbrio entre oferta e demanda - esta caindo cada vez mais perto de zero e tomando fatal a continuação da queda. E como vimos acima, uma crise financeira assim gerada arruína não apenas aplicadores, mas pode atingir o sistema bancário e, através deste, empresas produtivas, desencadeando uma crise econômica. Para evitar isso, o governo dos EUA interveio pesadamente: o FED injetou grande quantidade de dólares na economia, comprando no mercado aberto obrigações do Tesouro; isso fez com que a taxa de juros caísse, elevando o valor dos títulos de crédito: estes deixaram de ser uma alternativa atraente para os aplicadores, parte dos quais voltaram a comprar ações. A Bolsa subiu um pouco em 20 e 21.10.87, estabilizando-se o índice Dow Jones em 1950 na sexta-feira, 23.10.87. O pânico fora, a muito custo, evitado por ora.

Mas a crise financeira, que corrói o capitalismo mundial há décadas, continua. Ela é internacional, tendo por origem a crescente ineficiência do sistema internacional de pagamentos. A sua penúltima manifestação dramática foi a crise da dívida externa, em 1982, e é possível que a próxima seja uma desvalorização acelerada do dólar, com pânico nos mercados cambiais.

No fim da Segunda Guerra Mundial, os EUA eram não só a maior, mas a mais forte economia capitalista, da qual os países devastados pela guerra dependiam para a sua reconstrução. Do mesmo modo, dependiam dos EUA os países em desenvolvimento, como o Brasil, que necessitavam de tecnologia e meios de produção para promover sua industrialização. Constituiu-se então um sistema internacional de pagamentos, tendo o dólar como moeda-chave. Isso significava que os pagamentos entre países poderiam ser feitos em dólares, o que implicava que as reservas cambiais dos governos nacionais também seriam mantidas em dólares. O valor do dólar seria estável em relação ao ouro, mediante o compromisso do governo dos EUA de vender ou comprar ouro ao preço convencionado de US$ 35 a onça-peso. Como a quase totalidade das reservas mundiais de ouro monetário estava em poder do Tesouro dos EUA, o compromisso inscrito nos Acordos de Bretton Woods (1944) procurava tornar, para os agentes econômicos, equivalente manter suas reservas em ouro ou em dólares, com vantagem de que os dólares poderiam ser retirados sob a forma de obrigações do Tesouro dos EUA, que proporcionaram juros, ao passo que o ouro não dá, como é óbvio, qualquer rendimento.

Durante quase vinte anos o sistema de pagamentos baseado no dólar-ouro funcionou razoavelmente. Mas, durante esse período, os países da Europa Ocidental e o Japão não só reconstruíram suas economias, mas alcançaram e sobrepujaram os EUA em termos de competitividade no mercado mundial. Isso pode ser avaliado pela evolução da produtividade do trabalho nestes países. Em 1950, na França, a produtividade do trabalho era 44% da dos EUA, na República Federal Alemã (RFA - Alemanha Ocidental) ela era de 40% e no Japão apenas 18%. Trinta e cinco anos depois, a França e a RFA tinham a mesma produtividade que os EUA e no Japão ela alcançava 77% da dos outros 3 países (Baeck, 1987). A produtividade também cresceu muito mais do que nos EUA nos países que estavam se industrializando, como o Brasil, México, Coréia do Sul, Taiwan etc e que se tomaram, a partir dos anos 70 grandes exportadores de produtos industriais.

Os preços dos produtos dependem, basicamente, da produtividade do trabalho e do grau de exploração. O grau de exploração é o quociente entre excedente e salário por trabalhador.Os preços de produção constituem a soma dos custos de produção, dos quais o salário é o mais importante, e da margem de lucro. Esta última depende em última análise da taxa de exploração. Os preços variam diretamente com a taxa (ou grau) de exploração e o nível de salário, inversamente com a produtividade do trabalho.No início do período, os produtos americanos eram mais baratos do que os demais, devido à sua grande superioridade, em produtividade, embora os salários nos EUA também fossem elevados, dando por resultado um grau de exploração menor. Nos demais países capitalistas, a produtividade era muito menor, mas o mesmo se dava com os salários. Em geral, o grau de exploração e portanto a taxa de lucro eram mais altos na Europa, na Ásia e na América Latina, o que atraiu para estes continentes um grande fluxo de capital americano.

Entre 1945 e 1965, aproximadamente, os EUA exportaram muito mais do que importaram do resto do mundo. Os imensos saldos comerciais americanos transformaram-se, em grande parte, em inversões nos outros países, sendo o resto doado, como auxílio militar, ou torrado nas Guerras da Coréia e do Vietnã (que se intensifica a partir de 1965). Ao mesmo tempo, os países da Europa e o Japão reconstruíram seus parques industriais segundo o padrão tecnológico americano mais moderno. Conseqüentemente, foram alcançando, em produtividade, os EUA, sem que os salários, que também estavam crescendo, chegassem ao nível dos americanos.

Na segunda metade dos anos sessenta tornou-se claro que as exportações industriais dos EUA estavam sendo expulsas do mercado mundial pelas oriundas da Europa e do Japão e - um pouco mais tarde - também do Brasil, Coréia do Sul, Taiwan e outros países semi-industrializados. No próprio mercado americano, as importações estavam tomando o lugar dos produtos da indústria nacional. Os saldos comerciais começaram a minguar, enquanto as exportações de capital e os gastos militares (sobretudo no Vietnã) continuavam elevados. Os EUA transformaram-se num país deficitário. Em termos mais técnicos, o Balanço de Pagamentos dos EUA só fechava graças à saída de vultosas somas de dólares, que eram utilizadas como reservas cambiais e meio de pagamento internacional pelos outros países. Aplicadas em obrigações do Tesouro dos EUA, estas somas começaram a constituir uma crescente dívida externa. De credor do resto do mundo, os EUA foram se transformando em país cada vez mais devedor.

[/nextpage]

[nextpage title="p2" ]

 

A deterioração do Balanço de Pagamentos dos EUA era agravada pelas multinacionais americanas, que deslocavam linhas de produção inteiras para outros países da Europa, Ásia e América Latina, onde as taxas de lucro eram mais elevadas. Para coibir a saída de capitais, o governo dos EUA adotou medidas que limitavam as transferências financeiras para fora do país. Em resposta, as multinacionais passaram a manter no exterior, principalmente na Europa, grande parte de seu capital monetário. A aplicação financeira destas somas deu lugar ao chamado "euro-dólar" e a um mercado não-regulamentado de capitais, conhecido como euro-mercado.

Operam no euro-mercado bancos do mundo inteiro, mas que não estão sujeitos às regras que os bancos centrais impõem às operações realizadas em moeda nacional. Depósitos e empréstimos feitos em moeda estrangeira não estão sujeitos aos depósitos obrigatórios nos bancos centrais, nem recebem as garantias destes, como "prestamistas de último recurso". Desta forma, no euro-mercado, os depósitos proporcionam juros maiores e os empréstimos feitos pelos bancos custam juros menores. Estas vantagens atraíram ao euro-mercado enorme quantidade de capitais, não só de multinacionais, mas também de toda sorte de aplicadores, inclusive governos nacionais, que passaram a manter parte das reservas cambiais depositada naquele mercado.

A derrota do governo dos EUA pelas suas próprias multinacionais deu origem à "crise do dólar". Uma vez conhecida a precariedade do Balanço de Pagamentos americano, muitos detentores de dólares, inclusive governos, trataram de convertê-los em ouro, comprando-o do governo dos EUA ao preço oficial. Os EUA começaram a perder reservas de ouro, ao mesmo tempo que o volume de dólares em mãos de não-residentes continuava aumentando. Em breve, ficou evidente que os EUA já não possuíam ouro suficiente para garantir a paridade do dólar no nível de US$ 35 por onça. Após longas e infrutíferas conversações entre os governos dos grandes capitalistas, o presidente Nixon resolveu a questão em agosto de 1971, mediante uma declaração unilateral que revogava a promessa de manter o preço oficial do ouro em dólares. Foi um tremendo calote dado pelos EUA a todos os que mantinham reservas em dólares, crentes que poderiam a qualquer momento convertê-las em ouro.

A partir deste momento o sistema internacional de pagamentos entrou em crise aberta. Nos anos seguintes, o ouro foi "desmonetizado", isto é, deixou de ser moeda aceita pelos governos membros do Fundo Monetário Internacional (FMI), que vendeu o ouro que era parte de suas reservas. As taxas cambiais, que antes deveriam ser fixas, tornaram-se flexíveis, desobrigando-se os governos de garantir a conversibilidade da moeda nacional nas dos demais países. Generalizou-se a especulação financeira internacional, que tinha e tem o euro-mercado como seu palco mais importante.

A crise financeira internacional se agravou com os choques de petróleo de 1974 e de 1979/81. A grande elevação dos preços do petróleo fez com que os países exportadores deste produto acumulassem enormes saldos comerciais, que correspondiam ao endividamento dos países importadores. Estes últimos não tinham como pagar a alta do preço do petróleo, tendo que tomar empréstimos, no fundo dos próprios exportadores. Só que este financiamento foi em grande medida intermediado no euro-mercado. Os países exportadores de petróleo depositaram grande parte de suas sobras cambiais em bancos operadores do euro-mercado. Estes receberam de súbito novos depósitos de dezenas de bilhões de petrodólares que deveriam ser reemprestados no menor prazo. Foi esta enorme injeção de recursos no euro-mercado que deu lugar à acelerada expansão do endividamento externo dos países da América Latina e de outras áreas do Terceiro Mundo.

Os bancos comerciais internacionalizados, inundados por euro-dólares, resolveram abrir um novo mercado, fazendo empréstimos de longo prazo, com juros flutuantes, a países semi-industrializados, desde que avalizados pelos respectivos governos. Para os bancos, parecia um negócio altamente lucrativo, graças à cobrança de comissões e spreads (taxas de risco) acima das taxas internacionais de juros. Para os países semi-industrializados, surgiu uma nova fonte de crédito de longo prazo, muito menos exigente e mais expedita que as fontes até então disponíveis, como Banco Mundial e Bancos Regionais de Desenvolvimento. Enquanto estes só emprestavam contra projetos específicos, que sempre estavam ansiosos por conceder créditos, sem se preocupar muito com o uso do dinheiro nem com a capacidade do devedor cumprir os compromissos assumidos.

A grande disponibilidade de dólares no euro-mercado provinha dos crescentes déficits do Balanço de Pagamentos dos EUA. Apesar disso, o dólar continuou e continua sendo a moeda mais usada para pagamentos internacionais e portanto para reter reservas cambiais. Mas, na segunda metade dos anos setenta, verificou-se crescente especulação contra o dólar, cujo volume gigantesco acarretava o perigo de sua eventual desvalorização. Esta era desejada pelo governo americano, pois ela baratearia os produtos dos EUA no mercado mundial, aumentada sua competitividade, e encarecia os produtos estrangeiros nos EUA. Seria a solução natural para o déficit do Balanço de Pagamentos americano, às custas dos países europeus e do Japão, que perderiam para os EUA espaço no mercado mundial. Para impedir que isso ocorresse, os bancos centrais da RFA e do Japão passaram a comprar bilhões de dólares. Mesmo assim, o dólar perdeu valor, mas tão gradativamente que quase não aliviou a situação deficitária dos EUA.

Em 1979, a crise financeira internacional sofreu novo agravamento: os países membros da OPEP elevaram mais uma vez o preço do petróleo, enquanto o governo dos EUA, instado pelos governos europeus e do Japão, resolveu restringir o crédito, fazendo com que as taxas internacionais de juros começassem forte escalada. Os países semi-industrializados importadores de petróleo, como o Brasil, viram seus Balanços de Pagamentos arrasados por esses eventos: enquanto a conta de petróleo subia vigorosamente, se elevavam os juros devidos sobre a parte de suas dívidas externas, contratada com juros flutuantes. Passaram a levantar novos empréstimos no euro-mercado, superabastecido por novas levas de petro-dólares. Os bancos comerciais atenderam pressurosamente seus clientes, sem atentar para o fato de que estes estavam se endividando em medida muito maior do que o máximo factível, dado o volume de suas receitas em moeda forte. Muitos destes países não conseguiriam servir suas dívidas externas - com taxas de juros que chegaram a ultrapassar 20% - mesmo se pudessem utilizar integralmente suas receitas de exportação (o que implicaria que poderiam reduzir suas importações a zero - um evidente absurdo).

As taxas de juros elevadas, nos EUA, atraíam capitais do mundo inteiro, o que equilibrava o Balanço de Pagamentos americano. A partir da posse de Ronald Reagan na presidência, os impostos foram reduzidos, ao mesmo tempo que o gasto público se manteve, em grande parte em conseqüência do aumento do dispêndio militar. Resultou daí o agigantamento do déficit orçamentário, coberto por abundante emissão de obrigações do Tesouro dos EUA, que eram adquiridas por aplicadores de petróleo e cidadãos dos países que estavam se superendividando. México, Venezuela e Argentina são casos notórios.

Aplicações no exterior sempre houve, mas desde a crise dos anos trinta e a Segunda Guerra Mundial, elas passaram a ser submetidas a controle por muitos governos. Mas, a acentuada internacionalização do sistema financeiro, que ocorreu juntamente com a expansão do euro-mercado, tornou o controle da movimentação internacional de capitais privados cada vez menos efetivo. O fato de que o dinheiro tem-se tornado crescentemente imaterial - hoje ele não passa de um registro eletrônico - influi no mesmo sentido. Tudo isso explica que, em muitos países econômica ou politicamente instáveis, a classe capitalista prefira fazer aplicações financeiras no exterior e manter suas reservas em moeda conversível. Esta fuga de capitais onerou muitos países semi-industrializados, que se endividaram em boa medida para que sua burguesia pudesse transferir para fora parcela expressiva de seu capital. Pierre Salama (1987) estima que, no fim de 1986, a dívida externa bruta da Argentina de US$ 50 bilhões seria de apenas US$ 1 bilhão se não tivesse havido fuga de capital; a do México se reduziria a US$ 97 bilhões e a da Venezuela, de US$ 31 bilhões, se transformaria num crédito de US$ 12 bilhões. Só no caso do Brasil: ela seria de US$ 92 bilhões em vez de US$ 106 bilhões.

A crise do endividamento externo estourou, em setembro de 1982, em função da incapacidade do governo mexicano de manter o serviço da dívida externa, causada por intensa fuga de capitais aos EUA. O estouro foi ironicamente causado pela política do governo americano de atrair capitais do exterior mediante elevadas taxas de juros.

A inadimplência mexicana causou pânico no euro-mercado. Os bancos comerciais suspenderam todas as novas operações de crédito para países da América Latina. Como estes países só conseguiam, há anos, servir suas dívidas externas mediante novos empréstimos, todos se tomaram imediatamente inadimplentes. O que punha em risco vários bancos credores, entre os quais os maiores bancos dos EUA. O governo americano veio em auxílio, em tese, dos países endividados, na prática dos bancos credores. Mediante empréstimos-ponte impediu que o pânico se alastrasse. Os países devedores foram obrigados a se colocar sob a tutela do FMI, o qual os induziu a adotar políticas de ajuste que jogam a economia nacional em recessão, com drástica redução das importações e aumento do saldo exportável. Deste modo, os países latino-americanos passaram a ter saldos comerciais muito grandes, integralmente utilizados para pagar, ao menos em parte, os juros sobre a dívida externa. A América Latina remeteu ao exterior, a título de lucros e juros, US$ 36 bilhões em 1984; US$ 37,5 bilhões em 1985; e US$ 30,2 bilhões em 1986 (CEPAL, 1986).

Convém notar que esta foi a primeira vez em que a crise financeira internacional, em um dos seus desdobramentos, ocasionou séria e prolongada crise econômica em grande número de países. A crise foi imposta pelos credores públicos e privados (sustentados pelo governo dos EUA e de outros capitalistas desenvolvidos) a países relativamente pobres e incompletamente industrializados, para que se tornassem em curto prazo exportadores líquidos de valor. A ironia é que este valor serve, em boa medida, para remunerar os capitais que a burguesia destes mesmos países mantém aplicados no exterior.

A crise econômica não tem qualquer perspectiva de ser superada no quadro do tratamento convencional do problema das dívidas externas porque estas - apesar das vultosas remessas de valor aos credores - continuam crescendo. Este fato começa a se tornar conhecido e reforça a resistência às políticas de ajuste causadoras da crise. Cresce o número de países que recusam a tutela do FMI, assim como o dos que entraram em moratória. A moratória parcial dos juros, que o Brasil proclamou em fevereiro de 1987, é um importante passo no sentido de romper as pressões exercidas pelos credores sobre os países superendividados. Mas estes precisam se juntar para alterar a correlação de forças entre eles e a banca internacional, apoiada pelos governos dos EUA e demais nações capitalistas desenvolvidas.

Desde o estouro de 1982, a situação deficitária dos EUA continua se agravando. O déficit orçamentário é de mais de US$ 200 bilhões e o déficit na balança comercial supera os US$ 150 bilhões. Estes rombos imensos são, ambos, cobertos em boa medida pela entrada de rendimentos e capitais do exterior. Neste sentido, as remessas de mais de US$ 30 bilhões, feitas anualmente pela América Latina, contribuem para financiar os déficits dos EUA. Enquanto o governo Reagan se recusa a ajustar a economia americana, eliminando seus déficits, ele força via FMI os países endividados a produzir amplos superávits comerciais, que se destinam basicamente a cobrir os déficits da nação credora. Convém notar a este respeito que grande parte do pagamento de juros, feito pela América Latina, vai para bancos americanos enquanto o restante engrossa os superávits de países como RFA e Japão, que aplicam a maior parte de sua sobra a de divisas nos EUA. Assim sendo, a provável redução dos pagamentos latino-americanos agravará as tensões no sistema financeiro internacional, que têm por origem o uso abusivo feito pelo governo dos EUA do privilégio de emitir a moeda-chave do referido sistema.

A crise financeira internacional, em parte, provém da incompatibilidade entre as políticas fiscal e monetária seguidas pelos governos dos principais países capitalistas. Nos EUA, Reagan insiste em manter os impostos reduzidos e os gastos militares em expansão e, para equilibrar o orçamento, propõe que os gastos sociais sejam cortados; o Congresso, que tem a palavra final, é dominado pelos Democratas e se opõe à diminuição do dispêndio social. Deste modo, o déficit orçamentário prossegue, a dívida pública cresce aos saltos, inclusive por efeito das altas taxas de juros, que exigem enormes transferências de valor aos aplicadores em obrigações do Tesouro. Em 1985, o total de juros sobre a dívida externa representou 5,5% do PIB dos EUA, montante superior ao déficit orçamentário, que era de 3,9% do PIB. (Baeck, 1987)

Os países europeus seguem políticas de contenção dos gastos públicos e restrição monetária, do que resulta fraco crescimento econômico, crescente exportação de capital (sobretudo aos EUA) e elevado desemprego. Os governos europeus, quase todos de direita, procuram aumentar a taxa de exploração mediante pressão sobre os sindicatos e privatização de empresas do setor público. Esta tem atraído somas crescentes às Bolsas de Valores, o que explica sua alta nos últimos anos.

O Japão, por sua vez, conquistou liderança incontestável na corrida tecnológica, o que lhe confere superioridade competitiva no mercado mundial de produtos industriais. É uma economia voltada para a exportação, que acumula gigantescos saldos comerciais, investidos no exterior, sobretudo nos EUA. Os bancos japoneses têm se tornado recentemente os maiores do mundo e as multinacionais japonesas têm se associado com congêneres da Europa e dos EUA.

[/nextpage]

[nextpage title="p3" ]

Merecem menção ainda os países semi-industrializados da Ásia - Coréia do Sul, Taiwan, Hong Kong e Singapura - que não foram colhidos pela crise da dívida externa e continuaram se desenvolvendo nos anos oitenta. Vários destes países procuram investir em patamares tecnológicos mais elevados (como o faz também o Brasil) e começam a concorrer com o Japão em vários setores do mercado mundial. São economias também voltadas para a exportação, acumuladores de saldos comerciais, que - a continuar assim - terão de se tornar investidoras no exterior, pois saldos comerciais não podem ter outra destinação. A não ser que o exemplo recente de redemocratização das Filipinas e da Coréia do Sul pegue, o que poderá implicar elevação salarial e crescimento mais acentuado dos mercados internos.

O fato é que estes caminhos divergentes só são viabilizados pelo enorme déficit comercial dos EUA, cujo mercado lastreia o dinamismo das economias do Japão e do Sudeste Asiático e permite que os países endividados da América Latina alcancem saldos comerciais, capazes de cobrir ao menos em parte o serviço de suas dívidas externas, resguardando os bancos comerciais credores. Acontece que a continuação do elevado déficit comercial dos EUA já tomou este país devedor líquido e, desde 1985, o maior do mundo. A dívida externa dos EUA atingiu US$ 124 bilhões naquele ano e US$ 300 no seguinte (Baeck, 1987, p. 234). O governo americano está usando seu considerável poder de pressão política e econômica para reverter este quadro, ameaçando os outros países (inclusive o Brasil) com medidas protecionistas e forçando a desvalorização do dólar com o objetivo de melhorar a competitividade das suas exportações.

Em setembro de 1985, as grandes potências capitalistas resolveram coordenar suas políticas cambiais e permitir que o dólar se desvalorizasse cerca de 40% em relação às principais moedas conversíveis. O que de fato ocorreu nos meses seguintes, mas sem que com isso o déficit comercial dos EUA sofresse qualquer redução. Esse fato fez com que os especuladores privados (principalmente multinacionais) antecipassem a continuação da perda de valor do dólar. Passaram a evitar a aplicação em dólares, o que fez com que "o fluxo líquido de capital para os EUA, que era da ordem de US$ 100 bilhões em 1986" caísse para zero nos primeiros meses de 1987 (Marris, 1987). Em resposta, o FED, para "defender" o dólar, tratou de elevar a taxa de juros. Só que com isso ele enfraqueceu as aplicações na Bolsa, causando o estouro da "segunda-feira negra" de 19.10.87. Para evitar o pânico, o Fed apressou-se a anular a alta taxa de juros, o que deve levar a um novo enfraquecimento do dólar.

O fato fundamental é que o sistema financeiro internacional está em crise, pois não cumpre a função de ordenar as relações entre economias nacionais politicamente autônomas, mas sujeitas à movimentação caótica de uma enorme massa de capital à procura de ganho especulativo. Este capital "desenraizado", alimentado por fugas de países do Terceiro Mundo, petro-dólares, saldos comerciais crônicos do Sudeste Asiático etc. tem que ser disciplinado mediante uma reorganização total do sistema internacional de pagamentos, o que por enquanto não parece provável. Mas, a crise do endividamento externo continua, e a crescente resistência dos países devedores ao seu empobrecimento é a maior esperança de que esta organização venha a se dar. A democratização em marcha na América Latina, no Sudeste Asiático e talvez mesmo no Leste Europeu (onde Polônia, Iugoslávia e outros países estão superendividados) poderá contribuir no mesmo sentido.

Bibliografia

BAECK, Louis. "O desequilíbrio da economia internacional dos anos 80", em Pesquisa e Planejamento. Abril 1987, pp. 221-249.

CEPAL. Panorama Econômico de América Latina. Santiago do Chile, setembro de 1986.

MARRIS, Stephen. "O que aconteceu e o que pode acontecer em Wall Street". Folha de S. Paulo, 22 de outubro de 1987, p. A.25.

SALAMA, Pierre. "Dolarização e heterodoxia na América Latina". Revista de Economia Política, julho/setembro de 1987, pp. 43 e s.

Paul Singer é economista, fundador e membro do CEBRAP, e presidente do Conselho de Curadores da Fundação Wilson Pinheiro.

[/nextpage]