Economia

Sobretudo nas questões econômicas, um programa tático, além de estratégico, é indispensável. Aqui, uma primeira contribuição para a formulação de propostas claras sobre três pontos "cabeludos" da realidade econômica: o salário mínimo; a dívida externa; e a "dupla" dívida interna/déficit público.

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"Economista é o cara capaz de dizer 69
maneiras diferentes de fazer amor sem
nunca ter dormido com uma mulher"

Denis Healey

O PT corre o risco de vencer as próximas eleições presidenciais. Não é, obviamente um risco grande; mas, em todo caso, é um risco. A ocasião é única pois, como sabemos, nosso partido se assemelha ao rio Xingu: ninguém segura, mas também ninguém acelera. Contudo, a conjuntura eleitoral que se aproxima tornará a correnteza mais veloz pelo simples fato de que as margens se estreitarão, o que significa também o risco do represamento, do confinamento. Para começar, devemos ter presente que se trata apenas de eleições presidenciais e municipais. O poder legislativo permanecerá como está sendo definido pela nova Constituição (pelo menos durante uns dois anos), com o Centrão, o Centrinho e a Periferia se anulando numa luta de soma zero em matéria de avanços substantivos. Os governos estaduais serão aqueles que imantaram, com o binômio clientelismo-corrupção, o decisivo eixo São Paulo, Minas Gerais e Rio de Janeiro, transformando-o num verdadeiro Triângulo das Bermudas político. O Judiciário será encontrado intacto. A burocracia estatal (federal) também se inclui nesta herança. Os meios de comunicação continuarão em amos de reacionários. As Forças Armadas conservarão a mesma estrutura, a mesma organização, os mesmos efetivos e provavelmente grande parte dos mesmos comandos, que sustentaram os governos militares e hoje dão cobertura (embora com mostras de inquietação) ao governo Sarney. E, como se já não fosse suficiente, em caso de vitória receberemos uma economia em frangalhos, com seus acompanhantes inseparáveis: gigantescas carências das massas populares, que se transformarão em demandas imediatas e deverão contar com o apoio de um governo dos trabalhadores.

Diante de um quadro tão pouco animador, talvez muitos se perguntem se valera a pena ganhar as eleições presidenciais. Dissipemos esta dúvida: embora com conotações peculiares, as eleições presidenciais e mesmo o eventual exercício da Presidência da República constituem um momento tático. Isto é, um momento de acumulação de forças, de ampliação das conquistas democráticas e de construção das organizações partidárias que viabilizem as lutas dos trabalhadores por seus objetivos estratégicos. Não se trata portanto de propor ou prometer a conquista de objetivos socialistas imediatamente. É claro que os elementos do ideário socialista deverão estar presentes em nossa campanha, mas de forma complementar e não central. O centro da campanha deve ser evidentemente o conjunto das propostas para a resolução de problemas ainda no âmbito de uma sociedade capitalista. Caso contrário corremos o risco de contribuir para o nosso próprio confinamento político e nossa completa neutralização no processo eleitoral. Além disso, é preciso lembrar que as propostas conjunturais dos partidos que representam a classe dominante jamais poderão solucionar a crise que vivemos sem aumentar o sacrifício das massas populares. Mais uma razão para apresentar soluções alternativas desde a perspectiva dos trabalhadores não apenas para executá-las efetivamente em caso de vitória, mas para acumular forças em caso de derrota eleitoral. Além disso, não podemos esquecer que a elaboração de um programa que enfrente tanto as questões estratégicas quanto as táticas será também um elemento importantíssimo no esclarecimento de várias questões no interior do próprio PT, o que é indispensável para fortalecê-lo e forjá-lo para o enfrentamento das lutas que se tornarão cada vez mais decisivas.

Dentro do rol das inúmeras questões programáticas, este artigo dedica-se exclusivamente aos temas econômicos e, mais especificamente, a três deles, que me parecem de grande relevância na atual conjuntura: 1) A dívida externa; 2) A dívida interna e o déficit público; 3) O salário mínimo.

A preocupação econômica central, ao discutir estas questões, é encontrar soluções para conter o processo inflacionário e criar as condições para a retomada do crescimento econômico, melhorando ao mesmo tempo o perfil de distribuição da renda no país.

A Dívida Externa

No interior do PT existem várias propostas de como resolver a questão da dívida externa. Mas, duas delas resumem satisfatoriamente as correntes majoritárias: a) o não pagamento da dívida e b) A suspensão do pagamento da dívida, seguida de auditoria sobre sua legitimidade e decisão posterior – plebiscitária — sobre coma pagar a parte considerada legítima.

Analisemos a primeira proposta.

Preliminarmente é importante ressaltar que ela não vem acompanhada de desdobramentos no plano econômico. Ou melhor, não fica claro se depois desta declaração continuaremos recorrendo ao mercado financeiro internacional ou não; ou mesmo se prosseguiremos negociando com os credores outras dimensões das relações econômicas internacionais. A fundamentação desta posição se concentra no reconhecimento verdadeiro de que a dívida (do jeito que está) não só é impagável, como já foi paga várias vezes devido aos juros escorchantes praticados nos últimos anos pelos credores.

Na prática — salvo especificações em contrário — esta posição significa uma ruptura dos vínculos financeiros (e em certa medida também econômicos) com o mundo capitalista ou pelos menos com os países credores.

A questão que se coloca é: até que ponto um governo petista terá condições de sustentar esta posição garantindo ao mesmo tempo a retomada do crescimento econômico, o controle da inflação e a melhoria da distribuição da renda?

Vejamos quais seriam as principais conseqüências econômicas desta posição.

O não pagamento da dívida tornará desnecessária a obtenção de mega superávits na balança comercial. Isto aliviará imediatamente a pressão sobre as desvalorizações cambiais, e exigirá menores incentivos econômicos aos exportadores como subsídios creditícios e isenções tributárias, eliminando uma importante causa inflacionária.

No entanto, é relevante estabelecer de que maneira tais superávits seriam reduzidos: se através do aumento das importações, pela redução das exportações, ou pela combinação dos dois movimentos. O ideal seria manter (ou mesmo aumentar) o valor das exportações, o que permitiria uma margem bem ampla para a expansão das importações, embora fosse aconselhável conservar um superávit moderado para reconstituir as reservas internacionais. Mas dificilmente poderemos conservar o melhor dos dois mundos. O mais provável é que tanto as exportações como as importações diminuam de forma acentuada. A razão principal é que ambas dependem em grande medida de financiamentos concedidos por nossos credores, e estes fluxos financeiros serão seguramente interrompidos diante de uma moratória pra valer.

O problema transfere-se então para o mercado interno. A produção antes destinada à exportação, ou a fração que não puder ser mais exportada, deverá ser colocada no mercado interno, sob pena de criarmos uma forte tendência recessiva na economia. Embora não isenta de dificuldades, esta manobra de substituição da demanda externa pela interna poderá ser feita desde que tenha êxito a política de redistribuirão interna da renda. E, sem pretender criar prematuramente um círculo vicioso, diria que sem a retomada do crescimento econômico e da elevação real de salários, esta melhor distribuição da renda não passará de um mero desejo.

As maiores dificuldades, no entanto, talvez tenham origem na retração das importações. O fato de que nos últimos anos, estas se contraíram drasticamente (fruto do efeito combinado da recessão e do processo de substituição de importações) não deve criar a ilusão de que poderemos comprimi-las ainda mais. Ao contrário, se a política de recuperação da economia tiver êxito, a pressão sobre o aumento das importações será muito grande. Ou melhor, a recuperação poderá ser estrangulada se determinadas importações não forem ampliadas. Além disso, grande parte do que compramos no exterior atualmente (começando pelo petróleo) são produtos "estratégicos", isto é, sua interrupção ou redução provoca efeitos negativos que vão muito além de sua expressão monetária imediata. Para citar um exemplo, no setor químico a falta de um produto importado no valor de 10 mil dólares, base de uma cadeia produtiva, pode comprometer a produção de bens no valor de um milhão de dólares.

É verdade que podemos intensificar o processo de substituição de importações e também buscar fontes alternativas de abastecimento nos países socialistas e em alguns países capitalistas não alinhados do assim chamado Terceiro Mundo. Mas a experiência tem mostrado que, mesmo quando esta saída tem êxito depende de investimentos de longo prazo de maturação e portanto seus efeitos não se manifestam nem a curto e nem a médio prazo. O estrangulamento das importações talvez constitua o obstáculo mais importante para a retomada do crescimento econômico e conseqüentemente para a elevação dos salários reais.

Além destas conseqüências econômicas, o não pagamento da dívida tenderá a isolar politicamente o país, pelo menos em relação ao bloco controlado pelas potências capitalistas.

Se isto ocorrer as desvantagens econômicas mencionadas anteriormente se agravarão e embora isto possa resultar em maior coesão interna no plano imediato (estímulo ao nacionalismo pela situação de "fortaleza sitiada") se as melhoras materiais não vierem para as massas populares, a base de apoio para esta política poderá sofrer um desgaste irremediável.

Existem a meu ver duas saídas (não excludentes) para esta situação. Em primeiro lugar a obtenção do apoio de outros países endividados da América Latina, Ásia e África, na formação de uma frente comum que lute pela reformulação das regras do jogo econômico financeiro a nível internacional. Isto é, que disponha de força suficiente para obrigar os credores a negociar seriamente em torno de uma nova ordem econômica internacional. Todos os elementos que nos levaram à crise, como as taxas de juros, o protecionismo, o desequilíbrio nos preços relativos etc..., deveriam ser reformulados em termos menos desfavoráveis para os devedores. Esta alternativa evidentemente não é nova e já foi proposta em várias ocasiões, especialmente pelo governo cubano. Se o não pagamento da dívida não for inserido neste contexto mais amplo, cedo ou tarde perceberemos a inviabilidade de permanecer a margem dos circuitos econômicos e financeiros internacionais. Não é por acaso que o próprio governo cubano, em dificuldades econômicas e financeiras no início da década, tenha preferido recorrer à renegociação de sua dívida externa (com o mundo capitalista) junto ao Clube de Paris do que declarar o não pagamento da mesma.

A segunda alternativa é aproximar-se decisivamente dos países socialistas. Esta alternativa tem desdobramentos que ultrapassam (por sua complexidade) as pretensões deste artigo, merecendo uma discussão especial e mais aprofundada em outra ocasião. Mas gostaria de antecipar pelo menos duas questões. Tal aproximação implicaria em primeiro lugar uma radicalização das propostas econômicas e políticas no plano interno. Em segundo, se os países do bloco socialista assumissem tal aproximação, talvez as condições políticas e econômicas impostas não fossem aceitáveis por um governo petista.

Mas, vejamos quais seriam as possibilidades de contar com o apoio "militante" de governos de outros países endividados especialmente os latino-americanos. Existem pelo menos duas razões indicando que provavelmente tal apoio não iria mais além de declarações formais de solidariedade. A primeira é que os credores acionariam (como fazem normalmente em casos similares) seus dispositivos de isolamento que têm como espinha dorsal o oferecimento de "vantagens" à outros devedores (desestimando a adesão) e sanções ao "rebelde". A segunda é que nossos possíveis aliados — à exceção de Cuba e Nicarágua na América Latina — são governos burgueses que mantêm fortes vínculos com o capital imperialismo internacional e que veriam com enorme preocupação um governo favorável aos trabalhadores, realizando um programa democrático-popular num país da importância do Brasil. É possível, inclusive, que ao invés de recebermos a cooperação e apoio destes países, testemunhemos o triste espetáculo da formação de um bloco solidário com a política de isolamento dirigida pelos credores.

É evidente que conseqüências semelhantes ocorrerão se adotarmos a outra proposta para a solução da dívida extrema, isto é, se suspendermos o pagamento da dívida, realizarmos uma auditoria e estabelecermos critérios para o pagamento da parte considerada legítima. Mas existem algumas diferenças importantes que vale a pena ressaltar. Por exemplo, no caso da suspensão da dívida o rompimento não é total, pois se admite o pagamento da fração da dívida considerada legítima. As negociações prosseguirão e sem mais complicado para os credores assumirem uma postura monolítica de isolamento e estrangulamento econômico do país devedor. Além disso, a adesão de outros países devedores será mais fácil, especialmente a daqueles em que o problema da legitimidade da dívida externa é muito mais grave do que no Brasil. Finalmente, não podemos esquecer que muitos trabalhadores não entendem muito bem esta posição de não pagar e pronto. Como pessoas honestas consideram que se existe uma dívida é necessário honrá-la. Para ganhar o apoio efetivo destes setores será necessário esclarecer que parte da dívida é ilegítima. A proposta de suspensão se adapta melhor, portanto, aos problemas internos e externos que enfrentamos, do que o não pagamento puro e simples.

Contudo, não devemos ter a ilusão de que se adotarmos esta segunda posição seremos recebidos com flores ou convidados para um chá pelos credores. Ao contrário, a luta será muito dura.

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A dívida interna e o déficit público

Sem equacionar a questão da dívida interna e do déficit público será muito difícil controlar o processo inflacionário. Como atacar esta questão? Sabemos que existe uma diabólica circularidade entre a dívida interna e o déficit público. Acumulado sucessivamente durante vários anos, este último amplia a primeira que, para ser "rolada", lança a taxa de juros para cima, ampliando o déficit público e assim por diante. A inflação é alimentada não apenas pela elevação das taxas de juros mas também pelas emissões necessárias para cobrir parte do déficit público.

Portanto, para sair desta circularidade, é indispensável atuar tanto no âmbito da dívida quanto sobre o déficit, pois a determinação entre ambos é recíproca.

A redução do déficit público

Além da pressão das taxas de juros, o déficit público tem outras causas importantes: os subsídios, os gastos desnecessários com pessoal e material (marajás, mordomias etc...), a queda da arrecadação tributária e a defasagem das tarifas públicas.

Sobre algumas destas causas um governo petista poderá atuar diretamente: mesmo antes de realizar uma reforma administrativa profunda. Por exemplo, eliminando os gastos desnecessários com pessoal e material, reduzindo o empreguismo e o desperdício. Embora o campo de atuação sobre os subsídios também seja vasto, as pressões dos setores mais pobres da população talvez impeçam a obtenção de um resultado líquido mais expressivo. Ou melhor, estas demandas poderão ser irresistíveis e na prática ocorrerá apenas a substituição de subsídios concedidos aos ricos (pessoa física ou jurídica) por aqueles destinados aos pobres. Mas, se considerarmos a ponta do iceberg, isto é, os subsídios conhecidos que hoje enchem os bolsos dos grandes empréstimos, creio que a margem de manobra ainda será considerável para a redução do déficit público por este lado.

A atualização das tarifas públicas contará com uma pressão contrária muito forte, não apenas dos setores mais empobrecidos da população, mas também da classe média, cujo padrão de vida vem sendo corroído a partir da crise de 1981. Não podemos, portanto, esperar grandes progressos no combate ao déficit público por este lado.

O combate pelo lado da receita, isto é, através do aumento da arrecadação tributária, depende mais da situação do organismo econômico como um todo do que propriamente de uma ação governamental aumentando alíquotas. Aliás, a partir de certo ponto (devido à sonegação e à queda da atividade econômica) tal elevação ao invés de proporcionar aumento resulta em diminuição da receita global. Portanto é fundamental que a política econômica do governo petista garanta o crescimento econômico, e ao mesmo tempo promova uma reforma tributária que reduza a carga fiscal dos mais pobres e aumente mais do que proporcionalmente a dos mais ricos.

Em relação aos custos financeiros, devemos evitar a tentação de pretender reduzir as taxas de juros por decreto. Mesmo se nacionalizarmos todo o sistema financeiro, a causa da elevação da taxa de juros - a magnitude da dívida interna e sua fonte alimentadora, o déficit público - permanecerá intacta, tornando inócua uma política tão bem intencionada...

A Redução da Dívida Interna

Mas, como reduzir a magnitude da dívida interna, a causa primária da elevação das taxas de juros?

Existem pelo menos duas propostas (não excedentes) sendo discutidas no interior do PT.

Uma delas consiste na desvalorização da dívida, e outra na devolução (via tributária) do que foi transferido do setor público para o privado nacional via preços (pagos às empreiteiras por exemplo), subsídios, empreguismo (marajás), especulação financeira etc...

A primeira solução significa uma espécie de moratória interna. Isto é, o pagamento apenas parcial desta dívida, arcando os credores com o prejuízo. Poderemos denominar esta alternativa de "devolução direta". Ela apresenta a vantagem óbvia de permitir uma redução contábil da magnitude da dívida a curtíssimo prazo. No entanto, tem também um defeito que me parece irremediáve1: o devedor (o governo federal) ficaria na impossibilidade de voltar ao mercado financeiro por falta de tomadores de seus papéis. A perda de confiança no principal devedor aceleraria inclusive a transferência de capitais para o exterior (fuga de capitais) e as aplicações não controladas pelo governo, como as relacionadas com moeda estrangeira e metais preciosos etc...

A desorganização do mercado financeiro não apenas reduziria drasticamente a captação de recursos por parte do poder público (e portanto sua capacidade de investimento) como também desestimularia as aplicações — inclusive as produtivas — em outros setores da economia, pois os mercados se encontram interligados, conspirando contra a meta de recuperação do crescimento econômico.

A segunda alternativa consiste na devolução pelos credores de parte da dívida pública via tributação. Esta devolução indireta, permitiria a redação da magnitude da dívida sem afetar frontalmente o sistema financeiro. A idéia básica consiste na criação de um imposto progressivo sobre o patrimônio líquido que incida sobre os 5% mais ricos do país. Em várias ocasiões o PT já tem feito propostas neste sentido pois suas vantagens são claras: não desorganizaria o mercado financeiro e a fuga de capitais seria menor; não existiriam pressões inflacionárias diretas pois o imposto recairia sobre pessoas físicas não constituindo "custo" a ser repassado pelas empresas para OS preços; os investimentos privados não seriam desestimulados, e os estatais poderiam ser reforçados pelo alívio sobre o déficit público; a propriedade imobiliária, especialmente a fundiária, sofreria uma moderada desvalorização na medida em que fosse o principal ativo não financeiro a ser transformado em dinheiro para o pagamento do imposto; e, politicamente, seria altamente defensável por incidir sobre um punhado de milionários que talvez hoje pague proporcionalmente menos imposto do que um assalariado de classe média.

A desvantagem residiria na relativa lentidão com que estes recursos seriam recolhidos uma vez que sua aprovação dependeria do Legislativo onde o projeto poderia sofrer obstruções e mudanças tendentes a descaracterizá-lo. Além disso a iniciativa não está isenta de obstáculos únicos relacionados com a identificação do montante do patrimônio destes contribuintes etc... Apesar destas dificuldades, creio ser esta a melhor alternativa, não apenas por ser mais defensável do ponto de vista político, como menos arriscada do ponto de vista econômico.

É claro que, se a ação combinada de redução do déficit público e da magnitude da dívida tiverem um impacto inicial favorável sobre as pressões inflacionárias, a correspondente queda relativa dos preços poderá se tomar um processo cumulativo, isto é, atuará de volta sobre a dívida interna e sobre o déficit público e assim sucessivamente.

O Salário Mínimo
É preciso começar repetindo o óbvio: o salário mínimo real atingiu hoje (fevereiro 88) um dos níveis mais baixos de sua história. Do ponto de vista ético, moral, social, político e econômico este salário é uma vergonha. É inquestionável que ele precisa ser urgentemente elevado. O problema é saber como.

Creio que existem no PT duas posições básicas a respeito, coincidentes quanto ao objetivo (elevar o salário) mas discrepantes quanta ao método. As duas posições poderiam ser batizadas assim: 1) A proposta de elevar o salário mínimo de forma intensa e direta e, 2) A proposta de aumentá-lo indireta e menos intensamente.

A primeira proposta se fundamenta nos cálculos e estimativas que o DIEESE vem desenvolvendo há bastante tempo. De acordo com estas estimativas (baseadas no artigo 65 da atual Constituição e no decreto-lei 399 de abril de 1938) o salário mínimo deveria ser umas seis vezes maior do que é atualmente, ou seja, deveria superar os 25.000 cruzados. Para chegar à este número o DIEESE considera uma família de 4 pessoas (pois o salário mínimo é familiar) sendo dois adultos e duas crianças, estas últimas equivalendo a um adulto em termos de consumo de alimentos. No que se refere às despesas com alimentação os cálculos se valem da ração essencial mínima estabelecida no dec-lei 339 de 30/4/38.

Quais são os problemas relacionados com a elevação do salário mínimo para este patamar, e a utilização deste critério de cálculo?

Em primeiro lugar, cabe a pergunta: o que aconteceria com as famílias — como geralmente acontece entre os de menores renda — de mais de 4 pessoas? Consumiriam menos do que as famílias médias?

Em segundo, supondo que este salário fosse efetivamente pago pelos empregadores e conservasse o seu poder de compra, como garantir que o setor produtivo proporcionasse sua materialização em bens e serviços? Tomemos a agricultura e o consumo de carne bovina. De acordo com a ração essencial mínima (dec-lei 399) o consumo de um adulto deve ser de 6kg por mês. Isto equivale a 200 gr por dia ou 72 kg por ano por pessoa o que se aproxima do consumo per capita da classe média alta no estado de São Paulo. Observa-se que este seria o consume mínimo. Ora, o consumo médio, por pessoa, hoje no Brasil é de cerca de 12kg por ano, isto é, seis vezes menor do que o consumo legal mínimo.

Evidentemente não discuto se os mais, pobres deveriam elevar seu padrão de alimentação ou não. É lógico que deveriam. Mas é exatamente para garantir isto que chamo a atenção para estes números. Mesmo que a comparabilidade destes dados apresente problemas (média com mínimo etc...) é óbvio que para materializar este poder de compra nosso rebanho bovino deveria crescer num ritmo superior ao dos coelhos... ou então seríamos obrigados a um frenesi importador de discutível viabilidade. Estas pressões da demanda de alimentos se fariam sentir também em outros itens da produção agrícola, e não seria possível atendê-las plenamente durante um período presidencial sem gerar fortíssimas pressões inflacionárias e enormes tensões sobre a balança comercial.

Uma terceira questão, talvez, constitua o maior obstáculo para concretização desta proposta: se o salário mínimo aumentasse desta forma, o que aconteceria com os demais salários Seriam aumentados proporcionalmente? O que impediria os empresários de repassar tais aumentos para os preços criando um furacão inflacionário?

A segunda proposta considera o salário mínimo como uma remuneração individual, mas de acordo com o número de dependentes do trabalhador (basicamente sua família), este salário seria acrescido proporcionalmente constituindo um verdadeiro salário familiar. Em última análise, o salário recebido seria suficiente para que ele sustentasse sua família, fosse ela maior ou menor. A magnitude do salário por dependente deveria começar de um patamar moderado e pouco a pouco ir aumentando até alcançar seu nível máximo. Se por exemplo um trabalhador tivesse cinco dependentes, e recebesse 20% de um salário mínimo por dependente, inicialmente seu salário global seria equivalente a dois salários mínimos. Esta porcentagem poderia crescer ate alcançar ao final de 4 anos por exemplo 40% de um salário mínimo por dependente, quando então sua renda total passará a ser 3 salários mínimos.

Este método embora não proporcionasse um aumento intenso e imediato do salário mínimo, teria claras vantagens em relação ao anterior: a) Como este salário família não seria pago pelo empregador mas sim por um fundo social cujos recursos poderiam vir por exemplo da tributação, o trabalhador não teria problemas em vender sua força de trabalho no mercado, isto é, seu salário não seria um desestímulo aos investimentos diminuindo o risco de desemprego; b) Não provocaria pressões muito intensas e repentinas sobre a demanda, especialmente de alimentos e c) Cumpriria melhor as funções do salário família, isto é, quanto maior fosse o número de dependentes de um trabalhador maior seria o seu salário.

Esta alternativa teria outros desdobramentos econômicos. Na medida em que o aumento do poder aquisitivo não fosse intenso e repentino, ao invés de provocar pressões inflacionárias (embora estas pudessem ocorrer) teria efeitos estimulantes sobre os investimentos uma vez que ampliaria o mercado interno. Por outro lado parte da elevação o real deste salário dependerá da capacidade de um governo dos trabalhadores em elevar a arrecadação o fiscal e simultaneamente reduzir a carga tributária que hoje pesa sobre a massa da população. Não é tarefa simples. Mas, sem ela de onde viriam os fundos para pagar o salário família? Além disso, se a retomada do crescimento econômico tornar-se realidade, com a consequente ampliação da demanda de força de trabalho, o salário mínimo nominal poderá ser elevado sem que o seu poder de compra seja corroído, isto é, terá condições de crescer mais intensamente do que a inflação, pois hoje se encontra num patamar muito baixo.

Finalmente é preciso avaliar as consequências deste método de elevação do salário mínimo sobre o crescimento demográfico. Alguns companheiros têm argumentado que uma política salarial semelhante provocaria um desmesurado crescimento populacional. A preocupação é real. É possível que o salário vinculado aos dependentes induza alguns casais a ter um número maior de filhos. No entanto, embora possível, isto não me parece provável por várias razões. Em primeiro lugar as taxas de crescimento demográfico têm caído no Brasil nas últimas décadas, fenômeno associado ao intenso processo de urbanização que vivemos. Em Segundo lugar, em todos os países onde o nível de vida da população melhorou, a taxa de crescimento demográfico tendeu a cair a tal ponto que países como a França e a R.F.A. enfrentam agora o problema de coma evitar a diminuição absoluta de suas populações. E, o objetivo do salário família é exatamente esse: aumentar o nível de renda dos setores mais pobres. Em terceiro lugar, a proposta supõe um processo gradual de elevação deste salário partindo de uma porcentagem modesta, como assinalamos anteriormente, o que permitirá um acompanhamento, de seus efeitos sobre o crescimento populacional. Se houver uma inesperada explosão das taxas de natalidade esta política salarial poderia ser balizada estabelecendo-se porcentagens inversamente proporcionais ao número de dependentes, ou mesmo um número máximo de dependentes protegidos pelo salário família.

Epílogo

A discussão dos pontos anteriores apenas inicia um processo de aprofundamento de questões que cedo ou tarde teremos que enfrentar em termos práticos. Estão longe de esgotar qualquer coisa, mas talvez sirvam como um estopim. O PT deve se preparar, porque afinal de contas, corre o risco de vencer as próximas eleições presidenciais. Não é um risco grande, mas...

Paulo Sandroni é professor de economia da PUC e da FGV de São Paulo e pesquisador do CEDEC.

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