Nacional

Dentro de poucos meses, ele receberá a patente de general-de-brigada, conforme a anistia aprovada para os militares. Será o primeiro general do PT. Em seu formidável depoimento à Teoria e Debate, Apolônio relembra sua militância de comunista internacionalista, que lutou no Brasil, na guerra civil espanhola, na resistência francesa. A entrevista que se segue, com esclarecimentos inéditos de fatos históricos, só faz dignificar as 21 páginas abertas excepcionalmente para a seção "Memória"

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Figura legendária, a trajetória de vida do primeiro general do PT se confunde com o roteiro de um romance épico. Oficial do Exército brasileiro, engaja-se na luta democrática contra a ditadura getulista. Preso em 1935 como membro da Aliança Nacional Libertadora (ANL), vive, com centenas de outros presos políticos, o drama retratado por Graciliano Ramos, em Memórias do Cárcere.

Libertado, filia-se ao PCB e segue para a Espanha juntamente com outros milhares de revolucionários internacionalistas de todas as partes do mundo para lutar contra as tropas nazi-fascistas de Franco, em defesa da República popular; como os personagens de Por quem os sinos dobram, de Ernest Hemingway.

Derrotado na Espanha, Apolonio, o "Apolinário" de Jorge Amado em Subterrâneos da liberdade, asila-se na França, junta-se à Resistência e participa da guerrilha dos maquis, responsável por importantes e decisivas derrotas das tropas de ocupação alemãs.

Apaixona-se por Renée, sua mulher até hoje, na época adolescente de uma família de comunistas franceses. Na companhia dela, retorna ao Brasil em 1947, participando da militância clandestina do PCB. Mais tarde, os "rachas" do partido o levaram a fundar o Partido Comunista Brasileiro Revolucionário (PCBR). Enfrentando a ditadura militar, sofre torturas na prisão, até ser resgatado por um comando guerrilheiro em troca do embaixador alemão.

Exila-se na Europa onde reflete, reexaminando criticamente a trajetória das esquerdas brasileiras. Vem desta época a decisão de luta pela formação de um partido de massas, democrático e revolucionário, sem os ranços da esquerda tradicional.

Durante dois dias, Teoria e Debate compartilhou do carinho e abusou da generosidade do casal de revolucionários. Desta conversa, nasceu esta entrevista com Apolonio de Carvalho, um dos fundadores do PT, lúcido em seus 78 anos.

TeD - Apolônio, sabemos que, em 1935, boa parte do Exército do Rio Grande do Sul estava envolvida no processo insurrecional, mas acabou não participando. Assim mesmo, você foi preso e transferido para o Rio de Janeiro. Como oficial do Exército, como foi seu engajamento na Aliança Nacional Libertadora (ALN)? Você já era do PCB?

Apolônio de Carvalho - Antes de tudo, foi uma opção voluntária muito colada a problemas e impulsos muito particulares e ligados a uma época muito original. A minha geração foi uma geração privilegiada, porque ela abarcou três das fases mais altas de presença popular na vida do país e de crises econômicas que agitaram inteiramente a vida nacional: as fases de 1930, 1960 e a fase nova, que nós estamos vivendo desde o final dos anos 70. A geração de 1930, eu considero uma geração privilegiada: tivemos diante de nós os grandes dilemas do mundo e da humanidade. Dilemas que não se limitaram apenas a exigir opções, mas que exigiram soluções imediatas ou a muito curto prazo. Por exemplo: o problema da paz ou da guerra nos anos 30. O problema da democracia, da liberdade ou dos regimes totalitários (o nazismo alemão, o fascismo italiano, o franquismo na Espanha, [o Marechal] Pétain na França) ou, dentro das características nacionais, o Estado Novo brasileiro. Também tivemos o problema da crise econômica e a grande questão: sobre quem recairiam os efeitos da crise econômica.

Esses eram os grandes dilemas da época que vinham um pouco das agitações que tinham ocorrido em anos anteriores. No Brasil, os anos 20 são anos de governos autoritários no mais alto nível: quatro anos de Estado de sítio no governo [Artur] Bernardes, de 1922 a 1926; o governo Washington Luís, que considerava o movimento social, o socialismo e o comunismo questões de polícia; como reação houve a primeira tentativa de uma Frente Única de caráter popular que o Bloco Operário e Camponês, dos anos 1926 e 1927, tentou ressuscitar depois e não conseguiu. Essa situação nova impunha a predisposição para a participação na vida política. Mas também havia outros elementos: havia a presença política organizada da classe operária na cena política nacional. A presença do PC, fundado em 1922, que só aparece verdadeiramente como uma força política organizada e independente, trazendo mensagens próprias, na primeira metade dos anos 30. Inclusive com a versão brasileira da política das frentes populares: a Aliança Nacional Libertadora em 1935. Tudo isso determinou que a minha geração participasse mais diretamente dos acontecimentos. Na minha família havia também os efeitos, desde a infância, de um outro momento muito particular na história do país, que vinha do final do século passado, das grandes crises políticas, da crise geral do escravismo, da crise geral do regime de monarquia, dos anseios de mudança e da modernidade, a busca da República e de um pouco de liberdade e de participação, dentro dos limites e da consciência trabalhadora da época.

Foi a primeira ruptura com o passado e o primeiro ensaio de entrada na era contemporânea de nosso país, porque estávamos muito atrasados. Tudo isso contribuiu para formar uma idéia de liberdade, de apego à idéia republicana, aos princípios dos direitos humanos e, sobretudo, a recusar regimes de força. Todos esses, também, são elementos que conduziam para um afluente a disponibilidade interna da vida política, dentro de uma organização revolucionária contestatória. Não ainda socialista.

TeD - O positivismo era muito forte nesse momento e, principalmente, junto ao Exército brasileiro, às Forças Armadas. Como é que você tratou esta questão, ou até 1935 isso não teve força maior?
Apolônio de Carvalho - Há os que dizem que na própria existência, no próprio espírito das concepções que, em parte, geraram a vida do Partido Comunista nos primeiros anos a influência positivista estava presente, inclusive nos setores das Forças Armadas, da oficialidade. E meu pai, que tinha sido cadete de Benjamin Constant, uma das figuras mais conhecidas dos adeptos do positivismo naquela época, nunca revelou simpatia por regimes autoritários. Pelo contrário, prevalecia a visão de espírito de liberdade, de espírito de apego aos princípios republicanos, dos direitos humanos e, sobretudo, a recusa do regime de força. Talvez o velho refletisse alguns elementos herdados de sua origem: filho de camponeses pobres, migrado para Salvador para poder viver, operário em Salvador, foi soldado do Exército. Depois, fazendo exame na Escola Militar da Praia Vermelha, saindo oficial e continuando com este espírito, apesar de se dizer e se sentir positivista. Como eu vou para a Escola Militar do Realengo...

TeD - Em que ano?
Apolônio de Carvalho - Em 1930. Então, eu vou para a Escola Militar do Realengo e encontro estímulos a este espírito. Por quê? Porque todo o Exército, neste momento, e a juventude da Escola Militar, em particular, todos nós sofríamos influência muito grande dos estados românticos e da trajetória de lutas e heroísmo dos combatentes da Coluna Prestes, do tenentismo e de suas bandeiras. Eram bandeiras de austeridade dos governos, de respeito ao povo de uma maneira geral, de democracia, sobretudo de recusa aos regimes de força: dignidade, liberdade e democracia. Então, na Escola Militar, a gente encontra este ambiente gerativo da democracia. É um Exército que está muito envolvido por uma contestação armada que percorre o Brasil durante dois anos, em novos ensaios de contestação que se repetiram em 1928 e, também, toda uma crise política que prepara o movimento armado no país, que é o movimento de 1930. Essa situação abre campo para debates, uma certa liberdade de opinião e de pensamento no interior da Escola Militar.

TeD- A Coluna Prestes teve grande participação de militares. Esse fato não desencadeou uma ação repressiva nos quartéis, como ocorreu depois de 1935, depois de 1964 mais ainda, aumentando o rigor no processo de seleção dentro do Exército?
Apolônio de Carvalho  - Eu creio que os efeitos foram outros porque a crise política que intervém, no momento, tem um caldo de cultura extraordinariamente forte. É a maior crise cíclica, a mais brutal das crises econômicas de que se tinha conhecimento. A crise de 1929 é, portanto, algo que abala, inclusive, a rotina da vida de cada cidadão. Estamos entrando na preparação de grandes choques, das eleições, do movimento político-militar de 1930. Ao mesmo tempo, nós temos o Exército dividido e marcado por um certo mal-estar, porque a Revolução de 1930, que iria dar lugar especial aos tenentes, e, também, a revolução da burguesia industrial, que fez sua revolução democrática neste momento. Então você tem, além dos tenentes, a co-autoria dos capitães que são generais. Cordeiro de Faria, num trabalho muito interessante sobre sua biografia, fala da divisão relativa entre certas esferas da oficialidade: as que tinham participado dos círculos oficiais e as que vinham dos círculos contestatórios, que eram os círculos dos tenentes. O movimento de 1932 iria colocar em choque as duas alas do Exército. Mas, em cada uma delas, haveria os que antes eram partidários da rebelião e os que eram partidários do círculo de oficiais, portanto legalistas. Então, cada lado uniu estas forças que estavam antes taticamente contrapostas. Era um período de transição na vida política do país. O movimento de 1932 permitiu amenizar esta situação e buscar o rumo para a homogeneidade do quadro da oficialidade que se veria de maneira mais completa e categórica diante dos acontecimentos de 1935.

TeD - Getúlio Vargas é uma figura polêmica na história do Brasil. Qual o papel que ele desempenhou nesse período?
Apolônio de Carvalho - Cada figura tem seus dois lados. Os anos 30 não têm um momento político-militar arbitrariamente escolhido por esta ou por aquela personalidade ou grupo político ou grupo econômico. São anos que marcaram a escalada do capitalismo no Brasil. É a revolução democrática no país, ocupação de postos importantes e determinantes no aparelho de Estado por sua parte mais forte e mais voltada para as mudanças, que era a burguesia industrial. Getúlio tem um papel de agente ativo, participante, que dá fim à República Velha e que deve criar uma situação nova. É quando entra na cena política e inicia o seu governo, numa situação em que o Brasil está com uma imensa onda de inconformismo diante dos regimes de força. É, ao mesmo tempo, o período em que o movimento operário faz avanços e levanta problemas de tática e de estratégia que não levantava antes e em que o Partido Comunista busca a aliança com o tenentismo. A primeira medida tomada por Getúlio, após a vitória em novembro de 1930, é uma lei que estabelece o regime autoritário no país. Não se diz um governo ditatorial, mas um governo dotado de poder discricionário no país. Fica anulada a presença do Parlamento, do Poder Judiciário, a Constituição, com o absoluto arbítrio dos novos governantes etc. Isso ajuda a compreender por que certas áreas se sentem prejudicadas, como em São Paulo, fazendo com que o movimento popular alcance a classe operária, as classes médias, profundamente influenciadas pelo movimento constitucionalista. E assim se tem, também, uma idéia de que há razões dentro do Brasil para querer um governo democrático que ouça as aspirações populares de liberdade e mudanças dentro do país, como prometia o antigo programa da Aliança Liberal.

TeD - Como é que se formou e como foi a sua inserção na ANL? Como é que a ANL chegou aos quartéis, como essa proposta era recebida e o que representava nesse momento?

Apolônio de Carvalho - Eu saí da Escola Militar no final de 1932, em fins de 1933 eu já era oficial. Eu não era de tendência socialista, não tinha a visão de um regime diferente, mas o período da Escola Militar me ajudou muitíssimo a ter uma idéia contestatória desse período. Eu não tinha a alternativa, não tinha uma visão do socialismo, conhecia vagamente o que se dizia sobre a Rússia socialista da época etc. Mas achava, primeiramente, que era necessário mudar a sociedade brasileira. Ao sair da Escola Militar, eu já levava uma visão muito clara de que essa sociedade era muito injusta e de que era preciso modificá-la. Um colega do Rio Grande do Sul, um capitão do Exército, Rolim, muito amigo, me falou da ANL, o que era essa frente popular, o que era esse movimento democrático nacionalista, voltado naturalmente para profundas modificações econômicas mas também com muitas possibilidades de participação na sociedade, na vida política do país etc. E eu gostei do quadro geral, mas achei que era, ainda, pouco profundo e pouco avançado em relação à visão genérica que eu tinha das pessoas dessa época. Mas fiquei, mais ou menos, “ganho”. Logo depois, as circunstâncias me levaram a participar mais ativamente da criação da ANL. Então, eu participei da organização dessa frente popular, dessa organização de frente única, ampla, dentro da cidade de Bagé e outras cidades próximas.

TeD - O que fez com que você se engajasse na construção da ANL?
Apolônio de Carvalho - Foi mais um problema de tática, de compromisso humano. Porque esse amigo meu, capitão Rolim, enfrentava discussões muito sérias nos sindicatos dirigidos pelos anarquistas, que tinham dúvidas sobre uma tática de frente popular. Ele me pediu ajuda nas tarefas de organização da ANL. E eu pensei que iria ajudá-lo apenas materialmente, cedendo casa, local, facilitando outras possibilidades etc. Mas, na realidade, ele queria que eu o acompanhasse aos sindicatos, fizesse debates, apresentando a ANL.

TeD -Isso em 1935?
Apolônio de Carvalho - Sim. A Aliança existiu em 1935, de março a junho de 1935. Acontece que, ao acompanhar aquele companheiro aos debates que ele fazia, fui levado normalmente por ele, pelas circunstâncias, pelo meu compromisso moral de ajudar, a participar do debate. A prática fez com que eu me engajasse na luta, mergulhasse fundo no trabalho político.

TeD - E o papel do PC?
Apolônio de Carvalho - Não existia naquela época. Pelo menos na minha cidade não existia. Eu não conhecia o PC até aquele momento. A ANL era uma frente popular, uma formação de frente única, de frente ampla, com a presença e influência crescente dos comunistas. Mas sem ter sido criada pelos comunistas. Criada pelo movimento do inconformismo, pela luta contra as ameaças do regime de força, pela luta contra as ameaças de uma organização de tipo fascista, que se apoiava, em 1932, no que se chamava Ação Integralista Brasileira. Dentro desse quadro, havia o movimento operário combinando temas e bandeiras econômicos com temas e bandeiras políticos. A ANL surgiu dentro de um momento de preparação da primeira Lei de Segurança Nacional, da luta contra as ameaças de um regime de força, da luta contra o imperialismo. Havia uma corrente muito grande de movimentos, do movimento sindical, do movimento operário, da intelectualidade. O PC integrou-se a esse movimento, influenciou esse movimento. Mas, no Rio Grande do Sul, onde eu atuava, não existia o PC. Não existia em Bagé nem em Pelotas. É possível que existisse clandestinamente, mas não tinha expressão. Os que falavam comigo em nome da ANL não se diziam comunistas: Rolim devia ser comunista, membro do PC, mas não se apresentava como comunista.

TeD - Quando se deflagrou o movimento armado, vocês foram surpreendidos?
Apolônio de Carvalho -Nós fomos surpreendidos.

TeD -  É curioso, porque eu fiz uma matéria com Armando Mazzo, um operário que foi o primeiro prefeito comunista do Brasil, e ele se referia a 1935 como uma quartelada, mostrando que o movimento operário em São Paulo já era organizado e que eles foram pegos totalmente de surpresa. E você afirma que, lá no Sul, o pessoal ligado às Forças Armadas, no seu caso, a ANL, que tinha esse ramo militar, também foi pego de surpresa. Então, como é que foi esse processo que levou a detonação do movimento armado a ser tão fragmentada e sem maior expressão?
Apolônio de Carvalho - A pergunta está muito ligada ao que verdadeiramente deve ser debatido em bases mais amplas: a uma velha dúvida das esquerdas. A esquerda não explicou ainda, para o nosso povo, as origens, as condições, os erros e os acertos de sua trajetória, sobretudo em momentos altos de sua participação na vida política do país. Isso é real para 1935, é real para 1947, 1948, até 1957. Para depois do fim do Estado Novo. Real também para os anos 60. Nós temos ainda uma dúvida muito grande para explicar as razões de nossa luta e as razões de nossa derrota, e a justeza e dignidade de nossa luta. O que posso dizer é que, em 35, o erro principal não vem de novembro. O erro principal vem de julho, no momento em que se dá de mão beijada ao poder de Estado a possibilidade de jogar a ANL na ilegalidade: é o manifesto de 5 de julho. Na realidade, é uma verdadeira declaração de guerra a Getúlio. E aí...

TeD - Cutucar a onça com vara curta?
Apolônio de Carvalho - Eu não diria nem isso. Não foi feito também com o desejo de espicaçar o adversário, de provocar o adversário. Foi feito, naturalmente, dentro de uma imensa vontade de acertar e depois de uma enorme convicção de que havia condições para isso. Mas aí é que eu lembro para vocês a nossa dívida da esquerda: o erro estava em avaliar mal e subestimar o adversário. Essa confusão entre desejo e realidade é uma das fontes de erro da esquerda em todas as fases de nossa vida, de nossa trajetória.

TeD - Será só isso?
Apolônio de Carvalho - Não. Em 1935 houve esse erro fundamental e também outras causas de erro: o manifesto de 5 de julho poderia se chamar “luta armada”. Havia, assim, uma espécie de continuidade do espírito tenentista na visão preferencial da luta armada como forma de luta política, sem ter em conta os níveis da luta de classes e das ações de massa. E sem a visão de que, se o adversário pode precipitar os gestos de violência e instaurar um regime autoritário, nós poderíamos impedi-lo e fazê-lo antes. Acreditávamos que tínhamos condições para isso. A alternativa do poder antecipava-se à alternativa de governo. Antecipava-se à visão das possibilidades novas que poderiam se abrir com as eleições...

TeD - Mas havia também uma situação internacional presente, havia uma estratégia da III Internacional*, idêntica para outros países. Essa orientação teria influenciado a decisão de 1935?
Apolônio de Carvalho - Eu creio que havia a vocação para a solução armada, própria do nosso país. Nós viemos da experiência do tenentismo dos anos 20, da solução armada para as crises de 1929 e 1930 e de uma situação em que as soluções armadas se colocavam como caminhos obrigatórios no quadro das contradições internas, como foi a guerra civil de 1932, o movimento armado constitucionalista.

Agora, a situação internacional pesou particularmente nessas decisões em virtude das orientações que certas forças políticas, no Brasil, procuraram dar aos choques que estavam em curso. E, naquele momento, só havia uma força de esquerda no Brasil: o Partido Comunista Brasileiro. O Partido Socialista existia, mas era relativamente fraco. O peso da orientação do PC nessa visão da solução armada foi determinante nos anos 30 como o caminho privilegiado, o caminho preferencial e mesmo como o caminho necessário e único para a solução dos problemas do povo. Foi uma concepção que a Internacional Comunista trouxe, a partir de 1928, no seu VI Congresso, para partidos comunistas em todo o mundo: o mundo estava verdadeiramente às vésperas de uma deflagração geral revolucionária. A Europa estava em marcha para uma revolução depois do hiato que foi de 1923 a 1928. E, no Brasil, também se tinha a impressão, por intermédio da Internacional Comunista, de que havia uma situação revolucionária em gestação. O caminho natural, portanto, era não esperar que o adversário — que poderia estar preparando um golpe de Estado, um regime de força — se antecedesse às forças populares. Na Conferência dos Partidos Comunistas da América Latina, em agosto ou setembro de 1929, esses preceitos e essa orientação tornaram-se efetivos e chegaram ao nosso partido. No início de 1930, uma resolução do Comitê Executivo — talvez o primeiro documento da Internacional Comunista voltado para o Brasil especificamente — condenou qualquer participação nas eleições de março de 1930, qualquer ilusão não ligada à via armada, à violência, assim como qualquer frente única com as forças pequeno-burguesas. Também proclamou que estariam sendo criadas condições para, de um momento para outro, deflagrar espontaneamente a insurreição popular. Essa orientação explica 1935, e explica por que se precipitaram os acontecimentos.

TeD - Mas como se explicam o descompasso e o desentrosamento do Rio Grande do Norte e do Rio de Janeiro com os demais estados? Por que o movimento ficou restrito aos quartéis? Por que não houve uma reação das forças populares, já que a Aliança tinha grande penetração nos setores populares?
Apolônio de Carvalho - Acontece que o manifesto de 5 de julho abriu espaços à clandestinidade. Com a decretação da ilegalidade da ANL, não havia mais contato com a sociedade. A polícia e os integralistas vinham, desde 1933, 1934 e nos meses iniciais de 35, fazendo todo o possível para perturbar os comícios, as demonstrações e as manifestações de massa. Após a criação da ANL, a força conjugada da polícia e dos integralistas tornou-se ainda mais aguda, mais corrente, mais constante. A ilegalidade da Aliança a impossibilitou de atuar legalmente com suas bandeiras e suas forças de articulação. Houve, então, uma orientação dos comunistas e da ANL para preparar o movimento armado para o final do primeiro trimestre de 1936 e não em 1935. Contava-se que ele seria o detonador de uma grande faixa de insurreições parciais. Mas o quadro de apelo à grande derrubada do governo, com o manifesto de 5 de julho, provocou o movimento em Natal, com alguma participação popular, que se expandiu para Recife e, em última instância, o movimento do Rio, que se reduziu à atuação em dois quartéis.

TeD - Qual a repercussão no Sul?
Apolônio de Carvalho -De nossa parte, surpresa, da parte do governo, do poder constituído, a repressão. Nós, que participávamos da faixa legal da ANL, fomos presos.

TeD - E não houve esboço de reação?
Apolônio de Carvalho - Não. Não havia possibilidade, não havia nenhum desejo de fazer qualquer coisa improvisada, em função do que se passava em outras áreas do país.

TeD - Você já era oficial quando foi preso?
Apolônio de Carvalho -  Era tenente. Já tinha dois anos de tropa. Eu fui preso e fiquei de fim de novembro até metade de março em Bagé, preso nos quartéis. Depois fui transferido para as prisões do Rio.

TeD -  Fale um pouco das prisões do Rio. Você concorda com a visão de Graciliano Ramos no seu famoso Memórias do cárcere?
Apolônio de Carvalho -  Eu tenho grande carinho pelas Memórias... do Graciliano, eu tive a alegria de conhecê-lo na Casa de Correção do Rio, estudamos juntos e eu tenho respeito enorme pela sua condição de romancista, de mestre, sua força, a riqueza de criação que ele apresenta... Mas eu não estou de acordo, absolutamente, com a visão que ele tem do espírito das prisões, das tropas que estavam nas prisões e de qual era o nosso espírito em 1936. Nós estávamos contaminados pela idéia de que o movimento de 1935 era legítimo, a Aliança Nacional Libertadora era uma iniciativa inteiramente legítima e necessária e seu programa correspondia às necessidades do país e que, embora derrotado em novembro daquele ano, havia forças que acreditavam na continuidade desse movimento. Cheguei ao Rio como um simples militante da Frente Popular da Aliança Nacional Libertadora.

TeD - Você estava com quantos anos nessa época?
Apolônio de Carvalho - Eu estava com 25 anos. Na prisão, eu encontrei companheiros da Escola Militar. Passei a conhecê-los como comunistas, como membros do PC. Os comunistas tinham a visão de que a revolução não estava derrotada, o movimento revolucionário não estava derrotado, que 1935 era apenas um episódio e que viriam muitos outros episódios. Esse sentimento persistiu até agosto de 1936. Eu vivi esse ambiente, parte na Casa de Detenção e parte na Casa de Correção. Graciliano olhou todo esse movimento com espírito crítico muito acentuado e seguramente com muitas razões para criticar essas ilusões. Agora, é preciso compreender o espírito dos jovens que estavam ali. Nós acreditávamos, uma certa faixa ainda não engajada no PC, na justeza da luta da Aliança Nacional Libertadora e, portanto, embora surpresos, nós pensávamos que haveria ainda a continuidade do movimento revolucionário.

TeD - Em função do quê?
Apolônio de Carvalho - Em função do idealismo dos jovens e, também, em função da mística entre os militantes comunistas da infalibilidade das direções do PC, da infalibilidade das orientações vindas da Internacional Comunista. Havia, também, uma grande diversidade de presos: companheiros que participaram diretamente da luta armada, companheiros vindos de outras áreas, como nós, oficiais e, também, uma parte da antiga direção da Aliança Nacional Libertadora. Aí havia profissionais liberais, políticos que seriam conhecidos de maneira mais direta mais tarde, dirigentes da ANL do mais alto nível: Ercolino Cascado, presidente executivo da Aliança Nacional Libertadora; Roberto Sisson; Benjamim Cabejo, como secretário-geral; professores como Castro Rabello, Leônidas de Rezende, Hermes Lima; jornalistas do Rio e de São Paulo; e professores, como Febus Gikovate; políticos como Francisco Mangabeira.

Renée - Havia uma perplexidade muito grande. Afinal de contas, eles aderiram a um movimento, uma frente ampla que tinha objetivos nacionalistas e democráticos em geral e talvez nas próximas eleições. E, de repente, são postos na clandestinidade por causa de um manifesto feito à revelia deles e também por um movimento revolucionário do qual não participaram.

TeD - Você concorda, Apolônio?
Apolônio de Carvalho -  Eu é que contei a ela. Acontece que essas coisas ficavam no quadro das discussões internas. O problema era o seguinte: havia divergências porque membros da direção da ANL estavam, como diz a Renée, em desacordo com o curso tomado pelos acontecimentos, como o manifesto de 5 de julho e os movimentos armados. Nós, na Casa de Correção, sentíamos isso de longe, porque eram discussões internas, que se davam entre dirigentes do PC e a direção da ANL, quer dizer, os elementos correspondentes à antiga direção da ANL. Isso, como era natural, influenciava amplamente a visão do velho Graciliano, sem dúvida nenhuma, a visão real. A única reserva que faço a Graciliano é o fato de não ter sentido o porquê de um entusiasmo de jovens e o porquê de novas ilusões. Ele não aprofundou essa questão e, no entanto, estava muito presente em todo o período da prisão. Isso faria com que muitos de nós entrássemos para o PC no período da prisão. Eu entrei para o PC nesse período. Não me inscrevi no partido porque, no período de prisões em 1936, 1937, não se fazia recrutamento para o partido. Mas no primeiro dia de liberdade eu já era membro do partido. Saí em junho de 1937 e, no dia seguinte, eu me inscrevi no partido. Esse entusiasmo, essa confiança na capacidade do partido, apesar da derrota sofrida, era uma coisa que nos marcava. Era a visão mística do partido que marcou a geração que verdadeiramente participou da luta de classes, da política do proletariado dos anos 1936, 1937, tendo como pano de fundo a direção bolchevique que fez a primeira revolução mundial, o primeiro Estado socialista.

TeD - Foi durante esse período de prisão que você avançou na sua formação?
Apolônio de Carvalho - Eu conheci a existência do PC na prisão, a grande escola de formação política. Lá eu entrei em contato com o dirigentes internacionais que participaram da luta: Rodolfo Ghioldi, Olga Benário, [Luís Carlos] Prestes. De longe na prisão, conheci Lise Berger, esposa do Harry Berger. Conheci Eneida, Rosa Meireles, Maria Werneck. A intelectualidade que estava engajada na luta ampla da ANL. Conheci os grandes catedráticos das faculdades do Rio, esse quadro todo que não era comunista. Mas foi, sobretudo, a faixa comunista que me fez conhecer a sociedade, as classes da sociedade, a luta de classes, um pouco da luta operária no mundo e no Brasil, e a razão de ser... E aí eu me senti já no caminho do militante comunista.

TeD - A saída da prisão foi provocada pelo quê? Anistia?
Apolônio de Carvalho - Não, foi a volta da vigência da Constituição brasileira. A Constituição de 1934 voltou a vigorar. Macedo Soares, ministro da Justiça, foi o instrumento, o artesão, que refletiu a recusa, inclusive de setores amplos das classes dominantes, de se manter um regime de força. Não havia mais estado de guerra no Brasil nem estado de sítio. Então, a Constituição voltou a vigorar. E os que estavam sem processo foram postos em liberdade, centenas de companheiros soltos. Talvez milhares no Brasil. Mas centenas ali.

TeD - Ao sair da prisão, você foi expulso do Exército brasileiro?
Apolônio de Carvalho - Não, fui expulso quando ainda estava preso em Bagé, em 9 de abril de 1936, sem processo, sem ser ouvido.

TeD - E quando você foi para a Europa?
Apolônio de Carvalho - Eu fui poucas semanas depois.

TeD - Como foi esse período de definição para ir à Europa?
Apolônio de Carvalho - Na prisão, o processo de formação política estava ligado também à prática geral, à discussão dos problemas gerais, acompanhando os acontecimentos internacionais por meio da imprensa, das visitas. Acompanhamos a vitória da Frente Popular em fevereiro na Espanha e em maio na França e depois o levante dos militares do coronel Franco, depois generalíssimo. Estávamos identificados com a luta da República espanhola e com o seu programa, que era muito parecido com o da ANL: contra os monopólios estrangeiros, pela reforma agrária, pela autonomia sindical, pelas liberdades sindicais, pelas amplas conquistas sociais etc. O fascismo ameaçava alastrar-se em todos os países. A luta antifascista era uma bandeira universal naquele tempo e eu estava apaixonado pelos problemas da luta antiimperialista. Ao sair da prisão, houve uma reunião do Comitê Central do PC em que se decidiu participar da luta internacional contra o fascismo e recrutar voluntários. Havia uma boa leva de militares, desde cabos, sargentos, até oficiais, todos excluídos da Forças Armadas, convidados para ir à Espanha.

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TeD - Esse grupo de oficiais se integrou às brigadas internacionais?
Apolônio de Carvalho - Claro! Em defesa do governo republicano, da República Popular da Espanha, uma das mais belas conquistas da história do movimento popular. A República espanhola foi eleita pelo povo em fevereiro de 1936. Em julho de 1936, ela passou pelo choque, pela surpresa de um levante militar que a deixou sem Exército e sem polícia. Só a Marinha ficou com a República. A classe operária, por meio de uma grande mobilização, tinha feito abortar, nos quartéis de metade da Espanha, o golpe de Estado. Então, começou a luta do Exército contra as milícias improvisadas da República. Era preciso ajudar. Daqui, saiu um grupo de 20 militantes. Deveriam ser muito mais.

TeD - Eram oficiais?
Apolônio de Carvalho - Alguns oficiais, outros sargentos e cabos de todas as armas: infantaria, cavalaria, artilharia, aviação.

TeD - Na Espanha, vocês se engajaram no exército da República que já estava combatendo o Exército franquista?
Apolônio de Carvalho - Chegamos em julho de 1937, em Valência. Já havia um exército republicano formado a partir das milícias revolucionárias com um comando único, unidades engajadas e articuladas sob um plano comum. Quando cheguei, já encontrei os exércitos mais ou menos com equilíbrio de força. Para nós que chegávamos, isto foi um estímulo extraordinário. Eu saberia depois que, no plano político, a República começou a ser derrotada nesse momento, porque se rompeu a condição fundamental das vitórias anteriores: a unidade de ação das forças políticas e sindicais dos trabalhadores da cidade e do campo, num país de imensa diversificação das correntes políticas - anarquistas, socialistas, comunistas e comunistas dissidentes. A partir de maio de 1937, a crise política determinou a saída do governo das centrais anarquistas, a perseguição política e a repressão direta às forças do POUM, formadas por comunistas dissidentes, que não eram sequer trotskistas, apenas tinham reservas e críticas à política do Estado soviético. Saíram estas forças e o dirigente dos socialistas de esquerda, Largo Caballero, a mais alta e mais bela figura da esquerda espanhola nessa época, foi substituído na direção do governo.

TeD - Era dirigente do PC?
Apolônio de Carvalho - Não, da ala esquerda do Partido Socialista Espanhol. Nesse momento, nós passamos a ter a divisão das forças de esquerda e o reflexo dessa divisão sobre as organizações e sobre as unidades militares, provocando mal-estar no quadro geral dos trabalhadores e da população. A partir desse momento, a República estava verdadeiramente ameaçada. Outro fator da derrota teve caráter internacional: mudou a política externa da União Soviética, que, até esse momento, lutava por uma unidade de ação do socialismo e das chamadas potências democráticas ocidentais, a França, a Inglaterra, os Estados Unidos etc, para isolar a Alemanha de Hitler e a Itália de Mussolini. A URSS começou a sentir as flutuações das potências ocidentais européias e a se aproximar de Hitler, o que a levaria mais tarde ao pacto com a Alemanha. Passamos a não receber armas entre abril e maio de 1938, enquanto a Alemanha de Hitler e a Itália de Mussolini multiplicavam o envio de tropas e material bélico. A partir daí, o combate ficou desigual, com a penetração das tropas de Franco até a área do Mediterrâneo em Castellon de La Plana, dividindo a Catalunha e o centro da Espanha. Antecipando-se à ofensiva de Franco contra a Catalunha, a ofensiva republicana do Ebro gastou as últimas armas e recebeu uma contra-ofensiva extremamente violenta. As baixas foram muito grandes, fomos obrigados a recuar dessa ofensiva do Ebro, e os franquistas prepararam a ofensiva sobre a Catalunha. Essa ofensiva se fez dentro de condições extremamente desiguais. A derrota era inevitável.

TeD - Não havia células comunistas dentro do Exército?
Apolônio de Carvalho - Devia haver em certas unidades. Mas não havia comissário político na primeira bateria que eu comandava. Passei a ser o comissário político, acumulando as funções de oficial da artilharia.

TeD - Qual era o seu cargo?
Apolônio de Carvalho - Eu fui tenente todo o tempo na Espanha, mas tive funções de major, de capitão, de coronel e teria de general se continuasse. Eles precisavam de quadros e eu trazia conhecimentos profissionais do Brasil e desenvolvi-me muito lá, porque eu era pesquisador, um criador de métodos e tudo o mais. Era muito ativo, então fui ver o partido só para engajar colegas meus, companheiros oficiais. O partido nem sequer me procurava, talvez nem soubesse que eu estava por ali. Agora, Andres Nin já estava preso e o POUM já estava condenado à ilegalidade, sujeito a uma ferocíssima repressão, antes da nossa chegada, dos primeiros que chegaram lá em julho de 1937. E nós só soubemos disso depois que saímos da Espanha.

TeD - A que você atribui essa perseguição? Orientação da III Internacional? Como repercutia na frente de batalha?
Apolônio de Carvalho - Era o produto da fobia, da insensata postura antitrotskista do Partido Comunista da União Soviética, dos bolcheviques da época, influenciando o conjunto da Internacional Comunista, isto é, os partidos comunistas de cada país. Isso deveria repercutir de várias maneiras. Mas eu tive poucas oportunidades de sentir de perto. Nutria apenas imensa simpatia pelo POUM, não só pelo Andres Nin, que era um teórico, elaborador, pesquisador, uma grande figura cheia de promessas, mas também porque a mais bela figura de jovem comunista que eu conheci chamava-se Alberto Bomílcar Besouchet, trotskista, militante do PC e combatente na Espanha. Participou da rebelião de Recife, foi para a Espanha, apresentado a Andres Nin pelo velho Mário Pedrosa, era oficial do exército republicano, foi preso e acabou assassinado na prisão como figura ligada ao trotskismo, portanto ao POUM. Eu tive contato com os anarquistas, mas não entrei em contato com o PC espanhol e suas problemáticas internas. Eu não admitia, de maneira nenhuma, o choque com os anarquistas, com os poumistas, com a dissidência. Eu recebi, por exemplo, um oficial anarquista. Nós cuidamos desse oficial como uma cria da casa, meus soldados o cercaram de solidariedade e carinho. Quando quiseram retirá-lo, fizemos o possível para que ele não fosse, e retardamos ainda por meses e meses a sua saída. Mas eu senti que era problema das divergências, das desconfianças no interior do exército em casos profundamente isolados.

T&D - E na frente de batalha, você participou de muitos combates na Espanha?

Apolônio de Carvalho - Participei de muitos. Eu estive praticamente nas frentes de julho de 1937 a outubro de 1938, quando nós fomos retirados, e voltei para as frentes em dezembro, janeiro de 1939.

TeD - Como eram as tropas franquistas?
Apolônio de Carvalho - Havia combinação de tropas franquistas espanholas, de tropas italianas e de técnicos de artilharia e da aviação alemã. A artilharia da República era menos numerosa do que seria necessário, então, cada uma de nossas tropas estava em mobilização constante para várias frentes. Percorríamos cem, 150, 200 km para participar das outras lutas.

TeD - Quando vocês foram retirados da frente de batalha?
Apolônio de Carvalho -No início de fevereiro de 1939, nós fomos jogados na fronteira da França. O centro da Espanha continuou sua luta até a traição do coronel Cassado e a entrega e capitulação do exército republicano, mas isso nos primeiros dias de maio de 1939. Nós éramos 300 mil soldados na fronteira e quase 500 mil civis que não queriam ficar na Catalunha sob o regime de Franco.

TeD - E o que aconteceu com essa multidão?
Apolônio de Carvalho - Nós fomos conduzidos para o campo de internamento francês. Imensos campos de internamento distantes da população. Aquela invasão de quase 1 milhão de pessoas era chamada de “peste vermelha”.

TeD - Você ficou quanto tempo nesse campo?
Apolônio de Carvalho - Eu fiquei de fevereiro de 1939 a dezembro de 1940.

TeD - Como eram esses campos?
Apolônio de Carvalho - Eram grandes áreas descampadas, cercadas de alambrados. Nos primeiros campos não havia barracas, tínhamos dificuldades muito grandes em sobreviver, havia famílias inteiras, militares e civis, todos juntos. Mais tarde, eles fizeram grandes campos para os militares espanhóis e para os militares das brigadas internacionais. Nós éramos 8.000 voluntários estrangeiros que estávamos ainda nos campos de concentração.

TeD - Como é que vocês sobreviviam nesses campos, de onde é que vinha a alimentação?
Apolônio de Carvalho - Eles nos davam alimentação, mas nós tínhamos a nossa cozinha, os nossos cozinheiros. Na realidade, os campos de internamento na França eram no início um espaço descampado, boa parte à beira do Mediterrâneo, e completamente desprevenidos para receber essa massa de visitantes, de “convidados especiais”. As condições eram extremamente difíceis, porque nós chegamos lá no começo de fevereiro, em pleno inverno, e não tínhamos casas nem barracas. Estávamos ilhados, mas tínhamos nossos comandos, organização própria. Eu me lembro de que, como parte das equipes de propaganda, saíamos às cinco da manhã e, diante de cada agrupamento, dávamos as notícias de jornais da França, jornais comunistas, socialistas e outros, jornais ingleses de esquerda. Para manter um pouco o fôlego, o moral sobretudo. Nós estávamos sofrendo uma derrota em condições muito duras, o inimigo ainda veiculava e infiltrava notícias profundamente deformadoras. Nessas incursões, nossas equipes de propaganda encontravam muitas vezes grupos de choque que nos atacavam. Mas o pessoal das Brigadas estava ali, disposto para todas as eventualidades [risos]. Por fim, o governo francês ofereceu-nos barracas e nos transferiu para os Baixos Pireneus em Gurs. Ao nosso lado havia os campos de militares espanhóis e, mais longe, uma imensa massa da população espanhola. Nós vivíamos um pouco a nossa lei. Não podíamos sair, nem fazer qualquer coisa que fosse contrária ao bom relacionamento com as autoridades policiais que tinham contato conosco. O isolamento só não era completo porque, nesse momento (de fevereiro/março até setembro de 1939), as organizações de esquerda eram legais na França. Então, nós recebíamos uma ajuda considerável das organizações de massa, das organizações especializadas em medicina, em solidariedade, em cuidados médicos etc.

TeD - Apolônio, juridicamente vocês estavam presos?
Apolônio de Carvalho - Nós éramos prisioneiros do governo francês na prática. Nós éramos cidadãos sem endereço de volta. Os voluntários internacionais, saídos da Espanha nas mesmas condições que nós, tinham possibilidade de sair porque possuíam documentos para poder estar na França por certo período. Aí era um problema das autoridades francesas. Nós fazíamos um esforço muito grande para que a embaixada brasileira desse uma saída para nós, mas a embaixada brasileira sequer foi nos visitar. O partido francês, as organizações democráticas francesas, atuaram junto a certas embaixadas, solicitando soluções provisórias. Em setembro, os caminhos se fecharam completamente na Europa. Na América Latina já estavam bastante fechados.

TeD - Mas na América Latina havia o México...
Apolônio de Carvalho - Havia o México, mas estavam recebendo a massa de espanhóis. Era difícil o retorno. Enfim o PCF nos dizia que não valia a pena fugir. O partido tinha senadores, tinha deputados, tinha uma presença política e uma audiência política muito alta na França, nesse momento ainda. Era uma força, portanto, a nosso serviço. Em fins de 1940 o partido estava na clandestinidade e nos aconselhou: “Agora vocês devem começar a fugir, buscar caminhos junto aos consulados de vocês, porque nós não sabemos onde vão parar as coisas com a guerra.” Eu fugi do campo.

TeD - Quando foi essa fuga?
Apolônio de Carvalho - Isso foi em dezembro de 1940. Praticamente dois anos depois.

TeD -Você trabalhou no consulado do Brasil?
Apolônio de Carvalho - Exatamente. Em Marselha, onde uma parte do consulado era contra a política de Getúlio Vargas.

TeD - E como se dá seu contato com a Resistência?
Apolônio de Carvalho - Se dá por meio do trabalho de assistência que o consulado oferecia ao pessoal que estava preso. A partir de determinado momento, a resistência armada em Marselha começa a se desenvolver, depois de Paris, que estava ocupada pelos alemães desde maio de 1940. Marselha só foi ocupada em novembro de 1942. Havia um governo francês, uma aparência de independência francesa, com o governo de Pétain. Havia um sistema administrativo francês profundamente influenciado pelos alemães, a serviço dos alemães, uma polícia francesa completamente a serviço dos alemães e mais inimiga da esquerda francesa do que a Gestapo.

Renée A maior parte dos resistentes franceses no Sul foi presa pela polícia francesa. Minha irmã, minha tia, meu pai foram presos pela polícia francesa. Muitas vezes se diz que o PCF só começou a luta armada depois que a URSS entrou na luta. Agora, é difícil se ver que era tudo uma progressão da luta. Por exemplo, em 40, a maior parte da população do Norte da França estava jogada nas estradas. Tudo era caos e pânico. O próprio PCF, dissolvido em setembro de 1939, também reflete isso. Uma parte dos seus militantes tornara-se prisioneira de guerra, ou ainda nos exércitos derrotados ou jogados nas estradas do país. Houve necessidade de tempo para se reorganizar. Na minha cidade, em Marselha, as mulheres tiveram um trabalho muito grande na reconstituição do partido, de seus grupos, de suas células etc., porque justamente os homens estavam fora. Então, eu não sei se houve uma decisão de começar a luta armada depois que a URSS entrou em guerra. Eu creio que não. A reconstituição do partido foi progressiva.

TeD -  Como foi essa fase de reorganização?
RenéeOs alemães tiraram tudo que havia. Não havia mais comércio com a África do Norte, com o exterior; os navios começaram a não sair mais dos portos, a população passava fome. Tinha tíquete para tudo. A vida da população começou a se organizar em torno das filas que se faziam. Fila para comer. A população tentava sobreviver, sobreviver a seu modo. Além disso, o trabalho voluntário tornou-se obrigatório. Isto é, um trabalhador francês, homem ou mulher, que quisesse trabalhar voluntariamente na Alemanha libertava um prisioneiro de guerra. Mas as pessoas viram que esse prisioneiro francês não voltava. Se a mulher dele se prontificasse a ir trabalhar voluntariamente, aí ficavam os dois trabalhando na Alemanha. As pessoas começaram a sentir que estava tudo errado. Os alemães passaram do voluntariado à obrigação, estabelecendo um serviço de trabalho obrigatório para todos os homens de 18 a 60 anos. Com isso começam a crescer os maquis com os camponeses e com os trabalhadores ameaçados pelo trabalho obrigatório na Alemanha.

TeD - O que quer dizer maquis?
Renée - Maquis é um acidente geográfico, uma região geográfica com um determinado tipo de clima e de vegetação, típico da Córsega. Na Córsega havia a tradição da vendeta para o crime de honra. Quando um cidadão matava para salvar a honra da irmã ou do pai, a polícia francesa o perseguia, e ele se refugiava nos maquis.

TeD -  Ou seja, a resistência ia para o campo. E essa organização da resistência armada tem um marco especial?
Renée - Sim. As pessoas - militantes, claro - começaram a resistir, individualmente, recolhendo armas que tinham sido jogadas fora pelo Exército francês, debandando. Ocorreram pequenas ações. Começou a haver pequenas coisas quase espontâneas. Depois, se formou a Organização Especial (OS), uma organização específica dentro do partido, desde 1940.

Apolônio - Quando eu estava no consulado brasileiro em Marselha. Eu dizia que a resistência armada na França era uma forma de resistência que começou no primeiro dia, e a família da Renée era uma família comunista de muito antes. Renée, aos 13 anos, já estava na Juventude Comunista francesa. Em 1940, ela tinha 15 anos. A família dela participava muito do trabalho clandestino de coleta de informação e garantia de segurança para os viajantes do partido que procuravam reunir forças, rearticular núcleos dirigentes, companheiros etc. A família se envolveu mais ainda na luta porque passou a trabalhar pela articulação do PCF como centro de recepção e transmissão de informações, de diretivas etc. E Renée passou a trabalhar diretamente na organização de jovens comunistas. A resistência armada começou em Marselha, em meados de 1942, de maneira intermitente, parcelada, mas Renée já acompanhava a luta de resistência armada que se fazia desde 1941 em Paris, na zona norte. Então no início, maio/junho de 1942, eu fui mobilizado para ajudar em certas ações armadas que se preparavam.

TeD -  Vocês já se conheciam ou não?
Apolônio - Não, nós nos conhecemos em novembro de 1942. Eu participei de algumas operações, mas ainda com certo cuidado, porque era importante a minha presença no consulado, por causa da posição legal e a possibilidade de viagens, deslocamentos, defesa de companheiros etc. Mas acontece que, em julho de 1942, o Brasil entrou em guerra contra a Alemanha. A partir desse momento, a Alemanha passou a reprimir a representação consular e diplomática brasileira: os consulados e a embaixada seriam fechados e os funcionários deslocados para uma cidade na Alemanha que não seria bombardeada pelos ingleses, nem americanos, nem franceses. Ficariam ali como reféns. Nesse momento, o partido francês me avisou e eu avisei a embaixada. Mas eles não acreditaram. Eu não fiquei no consulado. Este foi fechado, e os funcionários levados para a Alemanha. Eu fiquei no trabalho clandestino, já mergulhado na luta armada. Eu participei da luta armada em Marselha até os primeiros dias de 1943. Nesse ano, fui mandado a Lion, para o comando de toda a zona sul, até o início do ano seguinte. Em janeiro de 1944, Renée e eu passamos a viver juntos e a atuar em outras cidades, nas zonas mais policiadas onde a organização armada tinha sido mais maltratada.

TeD -  Mas como foi esse romance em clima de guerra que resistiu até hoje?
Renée - Ele passou a vida sumindo...

Apolônio — Era uma situação delicada, porque eu já estava mergulhado na luta armada, na guerrilha urbana e, naturalmente, estávamos sendo procurados. Por outro lado, era a casa de uma família comunista, também particularmente marcada.

TeD - Essa militância era conhecida na cidade?
Renée - O problema era esse. Nós éramos militantes antigos.

Apolônio - Em 1942, quando a gente se conheceu, a irmã e a tia estavam presas.

Renée - Nós éramos conhecidos antes da guerra, durante a guerra, no final da guerra. E o pessoal da direção central ia a nossa casa. Depois das prisões da minha irmã e da minha tia, a gente continuou vivendo no mesmo lugar.

Apolônio - Isso explica por que ela disse que eu sempre sumia. Eu estava sendo perseguido, procurado, todos nós éramos procurados. Tinham ido me procurar no consulado. Não tinham me achado porque eu já tinha saído. A casa dela era marcadíssima. Eu não podia procurá-la em casa. Eu tinha de me encontrar com Renée através das operações de guerrilha. Apanhá-la no caminho do trabalho, fora de casa, na rua.

Renée - Meu pai era meio bravo também.

Apolônio - O papai tinha certas dúvidas sobre o meu estado civil. O estrangeiro aparecia para o francês como uma figura assim meio suspeita. O estrangeiro que queria levar a caçula, a menina querida da casa.

TeD -  Os franceses eram conservadores?
Apolônio -  Não, absolutamente. Em certas famílias, sim. A minha grande força foi que a avó de Renée, uma matriarca, uma figura maior de todas as nossas boas famílias reunidas, a dela por lá e a minha aqui, me adotou como neto e eu topei todas as jogadas. A Meme (como a gente a chamava) realmente foi solidária, cúmplice. Depois, inclusive, viveu conosco. Imagine que nós íamos morar juntos, sem casar e com documentos falsos, na resistência. Tudo isso agravava os escrúpulos e o faro do pai, o velho marinheiro. Para a Juventude Comunista, a situação dela ficava muito difícil, numa casa conhecida da polícia e seguramente vigiada em certa medida. Era preciso, portanto, também sair. Nesse momento, eu já não estava em Marselha.

TeD -  Você saiu de Marselha para morar com Renée?
Apolônio - Não. Eu saí antes, fui trabalhar em Lion. Voltava para Marselha para vê-la. Eu estava em funções variadas no trabalho militar. Eu comecei no comando de uma esquadra, quatro homens na guerrilha. Depois, passei a comandar um grupo de combate. Logo depois, um destacamento de três grupos em Marselha. Na guerrilha urbana, um destacamento de três grupos equivale a uma divisão. Nas cidades, você não pode ter grandes forças. Você tem de trabalhar de maneira muito especial na cidade. Eu passei a ser o responsável militar de todo um conjunto de departamentos, ou seja, de toda essa parte sul, sudeste de Marselha, até Nice etc. Eu comandava os franco-atiradores e guerrilheiros estrangeiros - FTP-MOI -  em que havia uma parte de companheiros, filhos de imigrantes, uma parte de imigrantes e, em funções de direção, antigos combatentes da Espanha.

TeD - Que tipo de operações vocês faziam?
Apolônio - Nós fazíamos operações de sabotagem de fábricas, sabotagem de transportes, de locomotivas, de transmissão de energia, ataques a quartéis, a destacamentos na rua, justiça para colaboradores.

TeD - Resgate de presos?
Apolônio - Resgate de presos. Em Nimes, nós fizemos uma operação de libertação de presos políticos. A prisão era uma fortaleza, chamava-se o Forte de Nimes. Entre os presos encontravam-se dirigentes franceses e das brigadas, que depois seriam dirigentes do PC italiano. Eu deixei o comando da zona sul porque os companheiros, que estavam presos numa cidade no Sul da França, tinham feito uma rebelião e tinham fugido; entre esses companheiros havia um velho comandante guerrilheiro, um iugoslavo, que depois seria um general iugoslavo. Eu, que tinha ouvido falar dele como um guerrilheiro experimentado, concluí que ele devia ocupar o meu lugar e convenci os meus dirigentes civis. E aí fui para Nimes, onde estivemos, Renée e eu, trabalhando juntos.

TeD -Já casados?
Apolônio - Já casados, em janeiro de 1944. Depois fomos para o sudoeste, mais longe ainda, e aí vivemos um período de libertação na França, um país onde a quarta parte do território foi libertada por seus combatentes. Os combatentes formavam os exércitos do interior. Um exército de 600 mil homens em toda a França no momento da libertação. Então, a libertação foi um produto de dois elementos fundamentais: o desembarque das tropas aliadas, sob o comando do general Eisenhower, e as insurreições nacionais nas grandes capitais.

TeD -Você participou de ações de maior envergadura?
Apolônio - Eu participei em todo o sudoeste, não só da libertação, mas também da limpeza de áreas ainda infestadas de soldados alemães. Eu comandava 2 mil homens no momento da libertação da zona sul.

TeD - Como coronel?
Apolônio - Não, a gente não tinha patente. Eu dizia que a libertação tinha sido produto do desembarque das tropas aliadas, de seu avanço. Esse avanço foi facilitado porque nossos guerrilheiros cortavam os transportes dos alemães, isolando-os. O desembarque das tropas aliadas facilitava o deslocamento de nossas tropas pelo interior. As insurreições nas cidades contavam com a participação direta das Forças Francesas do Interior (FFI). Essas insurreições eram baseadas em greves gerais. O comando das ações era ligado ao chamado Conselho Nacional de Resistência, organização de frente única que unia os combatentes do interior e os do exterior. E no exterior havia o governo da França Livre, do qual os comunistas participavam. Esse governo começou em Londres logo depois de 1940 e, em 1942, transferiu-se para Argel — depois da libertação da Argélia pelos franceses e americanos. Esse governo, na Argélia, estava mais perto da França, e o Conselho Nacional de Resistência outorgava toda autoridade a esse presidente da França Livre e comandante das Forças Armadas do exterior e interior, que era o general De Gaulle.  Os chefes de Regiões Militares, os prefeitos, tudo estava preparado — e eles "caíam de pára-quedas”. Nós tínhamos um instrumento positivo, os Conselhos de Libertação Nacional da frente única em cada local. Portanto, devíamos tomar conta do poder municipal e estadual com esses conselhos.

TeD - Como a esquerda via a direção do general De Gaulle?
Apolônio - A esquerda tinha de aceitar, porque verdadeiramente era o governo da França Livre, que se formou no exterior e concentrou-se em Argel, também com seus dispositivos na França, meio camuflados. Havia o compromisso político, assumido na luta de frente única. O presidente do Conselho Nacional de Resistência, que atuava dentro e fora da França, era o chefe das forças francesas em geral; portanto, o presidente dessa França Livre era o general De Gaulle.

TeD - Esse conselho unificava o comando?
Apolônio - Era uma organização política. Unificava as forças da frente única. Os partidos políticos que participavam desse Conselho Nacional de Resistência estavam também no governo De Gaulle, os comunistas participavam e os socialistas, também.

TeD - E a história de que teria havido condições para que os comunistas recusassem De Gaulle e chamassem uma insurreição popular?
Renée - Há certas regiões que, de fato, poderiam ter ido mais longe. Talvez Toulouse, porque nessa região nós tivemos tropas do Exército soviético que foram capturadas e transformadas em exército a serviço dos alemães e que, depois, passaram para o nosso lado. Então nós tínhamos um exército. Mas havia acordos internacionais.

TeD - Mas houve também o acordo em relação à Iugoslávia, e Tito se colocou contra os acordos.

Renée- Pois é, mas os guerrilheiros são diferentes.

TeD -  Mas na Iugoslávia conseguiram inverter, na China também. A questão é se na França havia condições populares para isso.

Renée - Não, na França toda, não. Havia certas regiões que se libertaram sozinhas e com condições particulares, como Toulouse.

Apolônio - O mundo estava dividido entre duas superpotências. Ali, onde os soviéticos estavam presentes, a rebelião de Tito poderia seguir-se a um compromisso com os soviéticos. Participariam na libertação de certas áreas da Iugoslávia, enquanto os soviéticos fariam a outra parte e continuariam a caminho da Hungria ou Tchecoslováquia.

Renée - Mas a Iugoslávia se libertou...

Apolônio - Quase toda, não toda. Tito era um elemento que poderia fazer esse acordo, que seria garantido pelos PCs. Mas não ali, onde havia forças de ocupação americanas, inglesas ou canadenses e hindus. Toulouse era, para a esquerda, ponta-de-lança de toda a França para a libertação de uma quarta parte da França sem um soldado americano ou inglês, só com as forças francesas do interior. Nas outras grandes capitais, Lion, Marselha, Paris etc, a insurreição abriu caminho. Os alemães teriam podido destruir Paris antes de sair. A insurreição não permitiu.

TeD - Mas quem liderou a insurreição?
Apolônio - O partido, as forças de esquerda, as forças de libertação, o Conselho Regional de Resistência, na parte de Paris, com a presença muito forte dos franceses do interior e do partido.

Renée - De Gaulle sabia que a resistência e a libertação eram obra dos comunistas, e ele tinha medo. Esse medo fez com que ele não viesse diretamente para Paris e parasse em Versalhes, uma cidade bem reacionária.

TeD - Que tipo de tropa você comandava?
Apolônio - Nesse momento comandava soldados franceses e imigrados. Eu tinha ainda quase 2 mil soldados, que eram do Exército de Vlassov.

TeD - Seria possível traçar o perfil de quem colaborou com os alemães e de quem lutou na Resistência?
Apolônio -  Só uma parte mínima colaborava de maneira efetiva e aberta, correndo riscos e exercendo funções importantes. Em Marselha, por exemplo, havia essa milícia paramilitar. Um dos chefes era um cara que trabalhava tão bem que a Resistência se encarregou de eliminá-lo. Havia justiça popular, começando lá de cima.

Renée - A situação era muito complexa. Havia aqueles que faziam altos negócios com os alemães, que faziam câmbio negro. Outros, que eram agentes, informantes. Toda a polícia francesa trabalhou a serviço dos alemães.

TeD - A resistência ativa era uma minoria?
Renée - Sim, mas é preciso entender a situação naquele momento. Você ouve as botas dos alemães pisando as calçadas. Você tinha de descer do meio-fio para dar lugar a eles. Tudo isso foi criando um clima de perplexidade terrível, de desânimo, as pessoas procuravam sobreviver. Quando os alemães foram derrotados em Stalingrado, o ânimo das pessoas começou a mudar, a Resistência passou a se organizar e a promover ações. Pouco a pouco, essa combinação de forças começou a se transformar. A maior parte das pessoas não participava da Resistência, mas quando você passava, de noite, diante das janelas das pessoas que tinham de obedecer ao toque de recolher e estavam proibidas de acender as luzes, se prestasse atenção você ouvia a rádio BBC de Londres...

Apolônio - Fazendo propaganda da Resistência. Os alemães não podiam entrar nas casas para impedir isso, as viaturas passavam e ouviam de casa em casa a rádio de Londres e todo mundo ouvindo. O ritmo crescente de vitórias das forças nazistas e fascistas diminuiu no final de 1942. A partir daí, você tem a confiança. Eles já poderiam ser batidos na França. Então, aquela imagem de uma força extraordinária e imbatível que o Exército alemão tinha nós demolimos matando os oficiais alemães. O povo sentiu que podia fugir do trabalho obrigatório na Alemanha, escapando para os maquis. Cresceu a idéia de resistência. Em Paris, eram praticadas ações nas ruas contra os alemães, a polícia queria perseguir os combatentes, mas a população executava a polícia como quem não quer nada. Os alemães estavam derrotados.

TeD -Qual o seu vínculo com o PCF?
Apolônio - Desde que entrei na França, fui militante na seção dos Imigrados (MOI), que era parte do PCF e por ele dirigido.

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TeD - E sua antiga ligação com o PCB?
Apolônio - Perdi completamente o contato com o PCB durante todos os anos em que estive na Europa. Eu penso que os companheiros que estavam no Brasil não sabiam de nada do que acontecia comigo. Eu fui descoberto pelos companheiros do PCB só após o término da guerra, quando o Samuel Wainer, que era correspondente de guerra e um dos editores da revista Diretrizes, encontrou-me em Paris. Ele fez uma matéria a meu respeito, o que permitiu que a direção do PCB soubesse que eu estava vivo.

TeD - Foi tranqüila a decisão de retornar ao Brasil casado com uma companheira francesa que não falava o português?
Apolônio - Houve problemas porque eu estava muito preso politicamente à França e distante do Brasil. Desde que deixei o trabalho no consulado brasileiro em Marselha, não mantinha mais contatos brasileiros e menos ainda com militantes ou dirigentes do PCB.

TeD - Qual o balanço que você faz desse período?
Apolônio - Eu tenho três imagens de militante, e esses dez anos iniciais marcam a primeira imagem. Aquela em que eu trazia muito de mim mesmo, guardando um contato ao mesmo tempo estreito, solidário com o partido, mas conservando todas as minhas características pessoais, minha personalidade, minhas preferências e com possibilidades muito amplas de iniciativa. Não era um dirigente político, cumpria tarefas políticas e militares. As exigências da atividade política e da prática de organização do partido não se chocavam com aquilo que seriam as preferências e a rotina da minha vida pessoal e familiar, da minha alegria de trabalhar e de criar. Esse foi um período muito rico da minha militância. Quero lembrar isso, porque é a minha primeira imagem de militante. Eu tinha relações muito estreitas, integradas com a organização, mas que permitiam que a figura do militante, a sua personalidade, as suas características tivessem pleno campo de desdobramento e de iniciativa. Eu passei, depois, por certo período de militância na legalidade e, dessa fase, para uma outra, que foi a da clandestinidade levada ao exagero no interior do partido. Uma fase em que a imagem do militante, já inteiramente transformada, passou a ser a de um militante que se despersonalizou diante das exigências e necessidades da organização, que assimilou todas as características da mística e da visão do partido como uma entidade dirigida por figuras infalíveis, por semideuses da teoria e da prática revolucionária. A imagem da organização e suas direções reduz, elimina os pruridos, as exigências, os escrúpulos pessoais, mesmo no quadro afetivo, no quadro familiar e no quadro social. Quando falo de escrúpulos, não me refiro a ter sido em qualquer momento ferido na minha dignidade, mas na minha personalidade, na minha visão das relações de família, amizade, na minha visão também do que seria a complementação natural de uma atividade política no mundo da cultura, do estudo, do enriquecimento da visão da sociedade, do mundo, das idéias e das vocações.

TeD - Como foi sua chegada ao Brasil na clandestinidade?
Apolônio - Não, não, foi na legalidade. Nós chegamos ao Brasil com Renée, grávida do nosso primeiro filho, em dezembro de 1946. Encontramos uma situação inteiramente nova: o partido na legalidade, com 14 deputados e um senador e presença marcante nas câmaras municipais do Rio e Recife. Quer dizer, um partido já colocado no plano institucional. Eu me integrei imediatamente ao partido, como auxiliar da direção. Aí eu já comecei a sentir uma capacidade de absorção do indivíduo extremamente exagerada.

T&D - Você ocupou que funções?
Apolônio - Nenhuma função específica. Mas fiquei ao lado do secretário de Organização, Diógenes de Arruda Câmara, e ele passava das seis da manhã às 11 da noite visitando o partido, discutindo com os companheiros. Convidou-me a ser o seu acompanhante, para eu conhecer o partido, integrar-me a sua vida, sua imagem, sua organização e seus militantes.

TeD - O que era fundamental. Afinal, você estava há dez anos fora do Brasil.
Apolônio - Pois é. Era terrivelmente absorvente. Renée ficou inteiramente isolada nesse período. Eu saía de manhã cedo, muito cedo, e só voltava tarde da noite. Houve um isolamento muito grande da Renée, que estava esperando o Raul para três meses depois, março. Foi um período em que eu comecei a sentir que a direção do partido tinha uma dinâmica muito especial, admirável, extremamente particular, rica, mas que me arrastava a um ritmo de vida e de participação que praticamente eliminava a minha presença do ponto de vista pessoal, de estudo, amizades, visitas e, antes de tudo, da vida familiar, reduzida ao final da noite. Os filhos eu via muito pouco. Esse foi um período duro. Foi quando fui convidado para ser o presidente da União da Juventude Comunista (UJC), numa tentativa de ampliar o campo de ação do partido, abrir espaços de audiência junto à juventude. Tivemos como secretário da UJC João Saldanha, que, nesse momento, era o dirigente do PCB na zona da Lagoa. Iniciei meus trabalhos de elaboração sobre a juventude, suas condições, sua tradição de organização muito limitada, muito localizada, muito atomizada, baseado na memória da UJC dos anos 30. O primeiro trabalho seria publicado depois na revista Problemas.

TeD - E o que era prioritário na UJC?
Apolônio - Eu imaginava a UJC em bases amplas, ganhando elementos que não fossem marxistas nem comunistas, mas que quisessem algo no sentido da esquerda. Era uma idéia que tinha um imenso espaço, um imenso campo de audiência. Fui visitado por companheiros que trabalhavam na Associação Cristã de Moços e nunca haviam militado politicamente, mas que eram ligados a grupos muito grandes de moços e moças que queriam participar. Passamos imediatamente a ter uma espécie de panorama, um panorama inicial, procurando incorporar alguns companheiros que trabalhavam no rádio, como o Mário Lago.

TeD - E por que durou pouco?
Apolônio - Em 1947 a esquerda estava condenada, tinha seus dias contados. A UJC viveu legalmente 28 dias. Do primeiro ao último dia de fevereiro. Foi o prenúncio da ilegalidade do partido.

TeD - Qual foi o argumento utilizado para fechar a UJC?
Apolônio -Que esta era um elemento de deformação e degradação do espírito da juventude. Uma das coisas mais elementares e mais vis em relação à organização dos jovens.

TeD - Ela foi fechada antes do PCB ser posto na ilegalidade?
Apolônio - Foi. A partir do seu fechamento, eu comecei a sentir que a legalidade do partido estava em perigo. No dia 7 de maio de 1947 houve o processo sobre a legalidade do registro eleitoral do PCB. Havia uma massa imensa de policiais nos cercando. Eu estava extremamente preocupado, porque achava que o partido ia ser colocado na ilegalidade. O partido foi surpreendido pelos acontecimentos porque não acreditava na supressão de sua legalidade. Essa é uma das características de nossa esquerda, do PCB e de outras organizações que existem hoje. Essa ausência de visão das realidades, essa distância das características da conjuntura e de suas tendências determinantes marcariam, em seguida, as ilusões do partido quanto à continuidade do mandato de seus parlamentares. Em 1947, o partido foi colocado fora da lei, mas os seus parlamentares continuavam no Congresso e no Senado, e os dirigentes acreditavam que isso iria continuar até o final do seu mandato. Não pensavam que haveria, em 1948, uma cassação taxativa e fria. Como disse antes, é a ausência de contato com a realidade do movimento, a confusão entre desejo e realidade que caracterizaram sempre a nossa esquerda. No fundo, a subestimação do adversário, de um lado, e a supervalorização de nossas forças, de outro. É um fenômeno que se repete nos anos 60. Isso fez com que a direção fosse apanhada de supetão. As organizações de base reduziram-se a núcleos de três pessoas no máximo para uma situação de clandestinidade muito parecida com a que nós adotamos na França, no PCF, no momento da ocupação militar alemã. Dentro desse quadro, Renée, eu e os garotos entramos no trabalho de segurança dos organismos de direção. Nós fomos, durante um ano e meio, “caseiros” de João Amazonas, com quem tivemos relações extremamente boas, íntimas, fraternas, que guardamos até hoje, independentemente das nossas divergências. Depois eu passei a ter algumas funções de atividade clandestina, ligadas ao trabalho de organização. Isto durou de 1947 a 1957.

TeD - O PCB passou por várias mudanças políticas após ser golpeado na sua legalidade, desde propostas visando a radicalização do processo até a concretização de acordos políticos com Getúlio Vargas. Como é que isso se refletia dentro do PCB?
Apolônio - O partido, em 1945, tinha adotado, praticamente, a visão da via pacífica para o socialismo, uma visão de concessões, de confiança e de colaboração com a burguesia chamada progressista (depois se chamaria nacional) na solução dos problemas brasileiros. Uma atitude que refletia certas ilusões sobre o caráter transformador revolucionário de uma grande burguesia em nosso país. Isso ficou patente em 1945 e 1946. O partido esqueceu que essa burguesia, em 1929 e sobretudo em 1930, fez a sua revolução democrática e assegurou o seu papel determinante no aparelho do Estado. O partido, em 1945, a meu ver, pôs por terra a sua condição de organização superior revolucionária da classe operária para ser mais um partido político participante da vida nacional em colaboração com a burguesia nacional. Esse partido deu uma virada muito séria em 1948, como resposta à situação de ilegalidade, de clandestinidade, que o partido levou muito longe. Havia também a tendência ainda presente do que era a vocação militar herdada dos tenentes, presente em boa parte dos componentes do nosso partido. O manifesto de agosto de 1950 foi um chamado à luta armada.

TeD - O partido viveu, em vários momentos, essa oscilação: de um lado, ajudando a administrar o capitalismo, a desenvolver o capitalismo, e do outro, quando revertia o quadro político, colocando a luta armada no horizonte imediato. A situação sempre saía de um pólo e ia para outro, até 1964.
Apolônio - É preciso enriquecer esse quadro com uma terceira faixa de tendência e de vocação, que foi a busca de uma posição de equilíbrio dentro da visão de um caminho nacional para o socialismo, que eu colocaria, historicamente, em primeiro lugar. Na segunda metade dos anos 20, o partido ganhou posições em relação ao domínio anterior do anarquismo e de sua influência na classe operária. Isso apenas nas cidades, já que os anarquistas não se preocupavam com o campo. Depois do seu II Congresso, em 1925, o PCB teve uma orientação que, a meu ver, deveria ser muito estudada por toda a esquerda, porque, segundo penso, foi o único momento em que o partido teve, apesar de sua adolescência, quase infância, uma visão aproximada da realidade brasileira. Quando procurou ter uma orientação, uma estratégia e uma tática adequadas à conjuntura da época. O partido não só procurou a unidade da classe operária e dos trabalhadores em geral, por meio do Bloco Operário e Camponês (BOC), com os grupos e entidades de influência da intelectualidade e pequena burguesia da época, de parlamentares do Rio e de outros lugares, mas também definiu uma tática que combinou o trabalho parlamentar com a preparação para a luta armada e definiu um arco de alianças sem se apoiar cegamente nas diretivas da Internacional Comunista moldadas num modelo bolchevique.

TeD - Mas isso não vai se repetir ao longo da história.
Apolônio -Por isso eu estou dizendo que foi um caso raro dentro da história do partido e na história da esquerda. Nós, da esquerda, temos de estudar isso que é algo marginal na pesquisa das esquerdas. O PCB anulou essa questão.

TeD - Por quê?
Apolônio -Em março de 1930 nós tivemos eleições e o partido tinha um candidato, expressão dessa aliança, que era Luís Carlos Prestes. A discussão com os tenentes girava em torno do programa dessa candidatura. Era um elemento extremamente novo que se chocava com as diretrizes da Internacional Comunista. É na segunda metade de 1929 que a Internacional Comunista se volta para a América Latina, e em particular para o Brasil. Em princípios de 1930 havia uma resolução da Executiva da Internacional Comunista sobre a situação do Brasil em que se definia uma situação pré-revolucionária, na qual qualquer manifestação de desempregados, qualquer greve, qualquer manifestação estudantil podia transformar-se num início de uma insurreição.

TeD -Voltando para os anos 50, então, o que você fazia, qual era a sua posição?
Apolônio - Eu, Renée e os garotos tínhamos virado “caseiros” de elementos da direção e depois eu havia trabalhado no quadro de organização do partido. Trabalho clandestino. A partir de 1954 eu passei quase três anos na URSS, num curso. Nesse momento, o partido organizava, com a ajuda do  PC da URSS, cursos de formação política, começando de nível médio, para operários, camponeses, estudantes, antigos militares. Eu e Renée fizemos esse curso entre final de 1954 e 1957. Eu voltei para o país em fevereiro de 1957, no momento de grande crise interna do PC decorrente das resoluções do XX Congresso do PCUS, que definiam a visão preferencial de um caminho pacífico para o socialismo.

TeD -E as denúncias dos crimes de Stalin....
Apolônio - As denúncias e a crise abalaram o nosso partido.

TeD - Como é que você recebeu, não só as resoluções do XX Congresso, mas as denúncias dos crimes de Stalin?
Apolônio - Eu tinha uma visão muito mística do partido, mas não tinha o culto das personalidades: não tive de Prestes como não tive de Stalin. Eu tinha uma visão do organismo dirigente, do partido, da sua expressão. Para mim o que ocorreu foi uma revelação, não foi nenhuma angústia nem qualquer dano particular.

TeD - De qualquer forma houve um choque em muitos dirigentes do partido. Marighella contava que passou três dias e três noites sem dormir, sem comer, profundamente angustiado porque as denúncias derrubavam todos os mitos, todas as imagens a respeito do partido, de Stalin, da Revolução. A que você atribui esse comportamento tão diferenciado?
Renée — O fato de estarmos também na URSS nessa época deve ter contribuído. Essa bomba surgiu fora da URSS. Lá, já havia certa abertura discreta, por parte dos professores, em relação a esses assuntos. Os professores de filosofia já estavam pesquisando certas coisas que tinham sido tabu até aquele momento. O pouco que a gente conversava com as pessoas — porque a gente começava a aprender algumas palavras em russo — mostrava que as pessoas não estavam contentes no tempo de Stalin, com a fome daquela fase. Para nós, a visão da URSS, de como viviam as pessoas, foi muito reveladora. A URSS não era o paraíso que a gente imaginava desde o tempo de criança. Talvez, por isso, o choque não tenha sido tão grande.

TeD - Isso pode ser estendido para todos os brasileiros que estavam lá ou estava restrito a vocês, que já tinham uma experiência européia?
Apolônio - Quase todos. Era a atmosfera que se respirava.

Renée - Em uma viagem que fizemos através da URSS, nós fomos recebidos por procuradores da República, por várias personalidades que já falavam das arbitrariedades, das distorções da realidade socialista. Então, ficamos sabendo de muita coisa. Para nós não houve aquele choque brutal da bomba que arrebentou nos jornais europeus e que se refletiu no Brasil.

Apolônio - Foi bom que a Renée falasse, porque ela sempre teve, na minha vida pessoal e política de militante, uma influência muito grande. Lá na URSS, ela me ajudou muito a começar a corrigir a visão ilusória da realidade e a posição do crente, do místico que acredita na infalibilidade, no lado róseo das coisas prescritas, nos dogmas e na religião, e que não quer olhar a realidade. Na URSS eu já tinha esses dois lados contraditórios. No momento da morte de Stalin, em 1953, eu não tive também nenhum choque particular nem nenhuma angústia. Talvez, no fundo de mim mesmo, remoendo, tranqüila e silenciosamente, certas ilusões anteriores, eu tenha guardado um pouco das minhas dúvidas em função da Espanha, do sofrimento da Espanha, do abandono da Espanha pela URSS. E Stalin era a figura que simbolizava a URSS no final da guerra da República. Esse era um lado. O lado das pessoas não me tocava particularmente. Eu tinha a sensação da perda, a angústia do que isso poderia representar e isso não pesava sobre mim de maneira especial. Mas sim a visão da URSS, o primeiro Estado socialista, o símbolo do mundo novo, da sociedade nova que eu tinha idealizado. Um dos trabalhos de Jorge Amado (O mundo da paz), por exemplo, era a anti-realidade da URSS, uma visão acientífica, acultural, a visão elementar e, vamos dizer assim, muito pouco apoiada num mínimo de conhecimento do socialismo, do marxismo. Isso nos marcava muito. Afinal de contas, o que Marx e Engels, e depois Lenin e os grandes escritores, disseram sobre o socialismo era que ele seria uma escala intermediária, a passarela entre o capitalismo e o comunismo, com todas as mazelas do capitalismo e um esforço imenso por adquirir os elementos novos do comunismo e a convivência desses elementos.

TeD - Vocês tinham, de um lado, um verdadeiro bombardeio de propaganda que criava essa visão mística do socialismo na URSS e, do outro, o socialismo real, com suas dificuldades e obstáculos enormes para vencer, o país ainda não reconstruído do período pós-guerra, em fase de reconstrução. Isso chegou a ser um abalo nas suas convicções?
Apolônio - Era aí que eu queria chegar. Eu tive muita dificuldade para abrir os olhos para o lado negativo do socialismo, para as mazelas naturais, hereditárias, objetiva e imperiosamente necessárias num regime socialista. Necessárias no sentido de que elas não poderiam deixar de existir. Eu não queria abrir os olhos. Era Renée que me forçava a abrir os olhos. E havia coisas muito chocantes. Em 1955, 1956 o socialismo já tinha 40 anos de construção. Uma vez, nós fizemos viagens em barcos, onde nós sentimos não a existência de duas classes, mas a existência de três classes.

Renée - Até de cinco classes...

Apolônio - Nós passamos por certas áreas onde vimos a condição do trabalhador dos colcoses, das famílias dos colcoses.

TeD - Mas e essas três ou cinco classes, como Renée coloca?
Apolônio - Três classes bem definidas, em função do local, do camarote, do lugar que tinha no barco. Falando nos transportes. Nós sentimos esse choque, choques flagrantes, que eu comecei a perceber apesar da imensa recusa em ver o lado negativo. Renée me ajudou de forma extraordinária. Eu era mais doentiamente embutido dessa visão ilusória, irreal do socialismo, fantasiada. Mas por que eu não tive a mesma reação do Marighella?

Renée deu a primeira explicação que vale muito. É um dos componentes. Eu daria um outro componente. É que, justamente nesse momento, a gente começou a perder, eu em particular, a visão mística das direções do partido. Não somente de Stalin. Para nós, Krushev havia cometido também crimes, assim como todos os membros do Comitê Central. Então, a gente começou, nesse momento, a perder as ilusões, a mística da infalibilidade, não da URSS, mas do partido no nosso país. E, aqui no Brasil, houve uma luta interna que marcou todas as atrocidades que, do ponto de vista de democracia interna, o partido tinha vivido, com a responsabilidade máxima de seus dirigentes. Esse fato levou uma parte sensível dos militantes e dos dirigentes a descrer dos organismos de direção também no nosso país. Agora, por que não nos levou a descrer do partido? Porque Stalin e o Comitê Central não eram nosso referencial. Nós estávamos em contato com o povo soviético, com os jovens soviéticos, com os jovens intérpretes que trabalhavam conosco, seus lados positivos, seus lados negativos. Um povo bom, disposto, animoso. E nós sentimos que haveria uma viragem, tínhamos confiança, porque a gente estudou muito a história do movimento operário. Isso ajudou muitíssimo na percepção das coisas e nos deu a oportunidade de conviver com duas situações extremamente contraditórias: de um lado, a consolidação, um vigor novo, a imagem nova do militante que conhece um pouco de sua teoria e está integrado a ela; de outro lado, a visão crítica do partido lá em cima, no centro exterior, a posição crítica diante de um partido baseado no monolitismo de pensamento e no monopólio desses pensamentos pelos organismos de direção. Duvidar dessa direção era, na visão dos dirigentes do PC, estar derrapando suave ou abruptamente para uma negação da luta, para a situação de fujão ou de trânsfuga. Entre 1958 e 1959, sobretudo 1959, 1960, nós vivíamos essa situação de militante, um pouco bizarra.

TeD - Você acabou de passar por um período de formação na URSS, chega ao Brasil com os pés mais no chão, e assume uma das tarefas: a produção intelectual ou a formação de quadros brasileiros, do ponto de vista marxista, revolucionário, de propaganda do socialismo etc. Como é que foi?
Apolônio-  Nós estávamos identificados com a idéia do partido, com a política de classe e com a necessidade de teoria. Dentro dessa visão, procuramos transformar em realidade o compromisso assumido com o partido ao irmos estudar na URSS. Nós sabíamos que o partido tinha uma vontade imensa de estudar, aprender e discutir nas bases. Passamos a tomar contato com a base para fazer cursos.

Renée - Foi muito à revelia. Não foi uma tarefa.

Apolônio - Foi à margem da direção e havia certas áreas que recebiam isso com alegria infinita. Eu me senti inteiramente dentro do partido, em contato com o partido por meio de seus militantes. Se havia tarefas na direção, eu as cumpria naturalmente. Sempre fui muito fiel nesse sentido. Tinha também a alegria de estar devolvendo aos militantes do partido, portanto ao partido, o investimento e o compromisso assumidos quando aceitamos estudar na URSS.

Renée - Esses cursos procuravam não repetir os cursos de antigamente, como era, por exemplo, o Curso Stalin, que se destinava a fazer os militantes assimilarem uma determinada linha política que o partido acabava de adotar ou iria adotar. Esses cursos que o Apolônio começou analisavam o movimento operário internacional e brasileiro, o capital, a mais-valia, a mercadoria, uma tentativa para que as pessoas procurassem entender pelos seus próprios meios.

Apolônio - Recebemos, Renée e eu, uma audiência imensa, uma solidariedade imensa, um estímulo imenso. Eu passei a trabalhar também na revista Novos Rumos, numa coluna que se tornou histórica, “Teoria e Prática”. O projeto de educação subiu da base para outros organismos, e a direção resolveu criar uma comissão de educação que já contava com o Mário Alves, da Comissão Executiva. Nós fizemos os programas, o curso elementar e o curso médio, elaborados em folhetos, e tínhamos o sonho de avançar para uma pequena universidade, que seria o curso superior do partido. Aí nós teríamos naturalmente os luminares do partido, os mais belos talentos e mais belas culturas políticas da história do partido.

TeD - Acredito que foi uma opção dentro das várias vertentes que o partido teve, evidentemente poderiam ter ficado mais próximos de um Diógenes de Arruda Câmara, de João Amazonas, como poderiam ter ficado mais próximos do Marighella. Essa mesma vertente, Apolônio, Jacob [Gorender], Mário Alves, vai desembocar na formação do PCBR. De onde vem a identidade que leva a essa aproximação?
Apolônio - Justamente porque nós tínhamos um contato não só com a direção mas com as bases que traziam suas dúvidas, suas análises sobre problemas nacionais e internacionais e nos chamavam para discutir e apresentar nossa opinião. Eu, Jacob, Mário Alves viajamos pelo interior do país para dar cursos em Minas, em Pernambuco, no Rio Grande do Sul. O Marco Aurélio Garcia foi meu aluno, eram cursos secundários. A Renée continuava o trabalho dela no Comitê dos Marítimos, até hoje os marítimos que a gente vê lembram dessas ocasiões...

Renée - Tudo isso nos forjou uma consciência mais séria, mais sólida, da necessidade de se criticar a linha adotada em 1960, sobretudo a do caminho pacífico.

TeD -  Nesse período, ocorreu uma disputa interna que culminou com a saída de Diógenes de Arruda Câmara, João Amazonas e outros, que acabaram fundado o PCdoB. Vocês todos tinham uma crítica às posições elaboradas por Krushev. Por que houve saídas diferenciadas para o PCBR, o PCdoB, a ALN etc.?

Apolônio - Porque houve dois momentos, dois ciclos de ruptura do PCB: 1961-62 e 1964-67. As origens são as mesmas. Em 1945-46 já ocorrera o fim do conteúdo e da forma, da imagem do PCB como um partido revolucionário da classe operária. Já havia o reflexo da divisão do mundo das duas superpotências. Foi um período de oposição obstinada, pregamos a derrubada de Getúlio até seu suicídio, e saímos para a rua, depois, com a massa, para protestar contra seu assassinato [sic]. Foram coisas extremamente contraditórias e duras na história de um partido de vanguarda, de um partido político de uma classe avançada. Em 1957, depois do XX Congresso, o partido já tinha uma base que ele considerava científica, que vinha do Partido Comunista da URSS, de um caminho pacífico para o desenvolvimento da luta de classes como corolário natural do princípio ético internacional de convivência pacífica entre os dois sistemas políticos e sociais. Havia, no entanto, uma situação de estranheza em relação à política de 1945-46, e em relação a um caminho pacífico em 1956-57. E essa estranheza de nossa parte foi crescendo a partir de 1958. Ela colocou em posição de rebeldia uma parte dos dirigentes que não queriam aceitar a resolução política do XX Congresso. São os dirigentes que depois seriam afastados da direção e mais tarde formariam o PCdoB, mas que eram, em quase sua totalidade, membros do secretariado e da Comissão Executiva do partido até agosto de 1957. Muitos de nós ficamos numa situação de dúvida, sem alternativa, situação muito penosa, porque imobilista. Nesse momento eu escrevi um artigo para a Novos Rumos, mas não contestei de maneira violenta, nem deixei de ter o mesmo caminho anterior. Mas para com João Amazonas, Pedro Pomar, [Ângelo] Arroio, eu tinha imenso respeito. Na realidade, eu vacilei. Esses companheiros não negaram o marxismo e o partido de maneira nenhuma. Fizeram uma luta interna limpíssima, aberta, corajosa, decidida, muito positiva... Dentro desse quadro, eu vacilei porque eu tinha uma opinião muito apagada nessa questão. Não estava com eles para deixar o partido e não estava com a orientação do partido. Os companheiros fizeram a contestação, foram extremamente corajosos e lúcidos como militantes na defesa de seu direito de pensar e de criticar... Em 1964 nós daríamos razão a eles. Por que nós não fomos com eles? Porque a alternativa que eles davam não nos convencia, mas também porque nós tínhamos medo de que eles fossem o reflexo do cisma URSS versus China. Não queríamos entrar nessa jogada. A URSS era o primeiro Estado socialista, era um patrimônio extraordinário dos trabalhadores do mundo. A China também, mas longe nesta questão. Não creio que fosse isso. Se, depois, eles se orientaram para um contato mais estreito com o PC chinês e foram para outros lados, esse é um problema posterior. Naquele momento, foi a contestação com absoluto direito. Foi uma posição que eu não soube ter porque não estava convencido, como eles, da absoluta necessidade de romper por uma alternativa que eles aceitavam, que eu não aceitava ainda... Em 1964, nós fomos fazer o segundo ciclo de ruptura, porque houve um impacto brutal, humilhante, verdadeiramente capaz de estraçalhar a imagem que se tinha do combatente de vanguarda, que foi a conduta do PCB diante do golpe militar de 1964.

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TeD -  Nós tínhamos passado por uma Revolução Cubana que havia rompido com esses limites, já apontava novas direções e que, depois de 1964, vai se colocar de maneira mais completa. A que você atribui este imobilismo por parte de figuras importantíssimas dentro do quadro do PC, que não conseguem formular alternativas?
Apolônio - O golpe foi feito em março de 1964. Em fevereiro, houve uma reunião ampliada do Comitê Central do PCB. Havia uma tese para o VI Congresso. Pensávamos que teríamos uma situação legal e que o partido faria seu VI Congresso em 1964. Não havia uma frase, uma tese de crítica ao caminho pacífico, defendido na linha de 1960... Não era também um problema de carisma de figuras centrais do partido. Nunca tive culto à figura do Prestes. Mesmo ao jovem Fidel a gente olhava com carinho, com respeito, mas sem culto. Para nós, a Revolução de Cuba era muito interessante, mas dentro de realidades diferentes, de condições internacionais extremamente diversas. A gente já possuía essa visão crítica. Para mim, o elemento principal era o despreparo dos militantes de esquerda do PCB. Nós não tínhamos conhecimento da nossa realidade para definir alternativas e não tínhamos também base teórica para elaborar uma análise crítica das experiências que se faziam, modelos que se apresentavam.

TeD - Ou eram as posições teóricas que estavam equivocadas, como a análise do campo feita pelo Moisés Vinhas?
Apolônio -Vinhas foi nosso colega anos e anos no PCB e não trouxe nada de novo. Nesse momento, por exemplo, sentimos o ascenso político das Ligas Camponesas. As organizações de campo do PCB eram extremamente fracas e limitadas. Nós acompanhamos o movimento sindical dentro da política de colaboração com [João] Goulart. Estávamos ainda marcados pela política do V Congresso, que era uma política de colaboração com a burguesia nacional, portanto com o governo Goulart. Os companheiros de 1958-60 eram companheiros que não condenávamos mas tampouco apoiávamos. Não aceitávamos suas alternativas depois que ficou clara a sua ligação com o partido chinês. Eu tenho a impressão de que pesou muito a questão do despreparo político, a ausência de debate para uma mudança na linha política de 1960. Nós conhecíamos pouco das lutas operárias no mundo e no nosso país. Tínhamos ilusões de uma aliança com a burguesia. Essas ilusões iriam cair de maneira brutal de 31 de março para 1º de abril, com o golpe militar. Primeiro, houve uma confusão extrema no interior da direção. Como no passado, o PCB, por meio de seus dirigentes, estava fora da realidade, não acreditava num golpe armado. Segundo, acreditava na capacidade e vontade de resistência do governo Goulart e das forças aliadas representadas pela burguesia nacional. Terceiro, deixou o país imobilizado pela crença de resistência, no caso eventual de choque armado, porque havia um dispositivo militar do governo — que, aos olhos do movimento popular, seria capaz de resolver todos esses problemas. Tudo castelos de cartas, ilusões. Sentimos, então, a necessidade efetiva de mudar a linha política. Não podíamos ficar na dependência dessas alianças, na ilusão de que esses sistemas de forças políticas e sociais resolveriam nossos problemas. Era preciso, portanto, um novo sistema de forças e também rever o caráter do caminho pacífico.

TeD - Como é que se dá o processo de ruptura, não com o PCB, mas que implicou uma revisão do stalinismo?
Apolônio -O stalinismo não estava em questão. Claro que a inércia dos métodos de mandonismo, de recusa às contradições e às lutas internas persistia camuflada. Mas o stalinismo não era o problema fundamental do partido. O problema fundamental era a questão da linha política, do sistema de alianças e do caminho privilegiado da transição pacífica. Nos primeiros dias do golpe, a surpresa da direção era total. Ela era incapaz de acompanhar, não acreditava na realidade, não se reuniu nos primeiros dias, estava dispersa. Houve dirigentes que não tinham aonde dormir para se esconder com segurança. Para se ter uma idéia, o Comitê Central reuniu-se um ano e uma semana depois do golpe. Antes disso, ficaram alguns elementos da Comissão Executiva em contato com a realidade. Marighella, Jover Teles, Mário Alves, eu tenho certeza de que ficaram e definiram um documento chamando o partido a militar e a debater a justeza e a reavaliação da linha política. É um documento histórico, sobre o qual o PCB não fala porque não tem interesse em reavivar essa história, chamado “Esquema para Discussão”. Passamos a lutar para que houvesse uma mudança de orientação política, para mudar a linha do V Encontro de 1960. Em maio de 1965, pela primeira vez depois do golpe militar, reuniu-se o Comitê Central, que negou qualquer mudança, avalizou inteiramente a linha do V Congresso, jogou a culpa do fracasso sobre elementos de tendência esquerdista, existentes na sociedade e no partido, e manteve firmemente a política da coexistência pacífica. Então, para nós, há uma segunda fase: já que a direção não queria mudar a linha, iríamos mudar a direção. Para mudar a direção era necessário um congresso nacional. Atuando em várias regiões, impusemos a realização de um congresso, aceito a contragosto pela direção nacional, e fomos ao debate. Estabelecemos dois tipos de tese: as teses da maioria do Comitê Central e as teses do que se chamava corrente contestatória, que nós chamávamos de corrente revolucionária. Acontece que as medidas discricionárias e as pressões exercidas contra os setores contestatórios foram tão fortes que, num dado momento, nós sentimos que não poderíamos mais ir ao congresso, porque não teríamos condições de mudar as coisas por meio do congresso. E aí decidiu-se fazer, em certas áreas, a ruptura. Essa ruptura seria sugerida num processo indolor, por intermédio de novas organizações que se criariam. Ou à base da corrente contestatória no interior do PCB ou à base de outra corrente contestatória que se chamava a Dissidência Interna, a DI, formada sobretudo por estudantes e parte da intelectualidade no Rio, em São Paulo, no Rio Grande do Sul e em Minas etc. Várias correntes iriam se formar saindo dessas faixas de dissidências internas do PCB. Na imensa maioria dos casos, essa ruptura se faria de maneira indolor, quer dizer, sem discussão com a direção. Nós do estado do Rio fizemos uma conferência regional, decidimos pelo afastamento do partido, comunicamos ao partido e à direção a situação e convocamos todas as outras organizações e correntes para um encontro. Pensávamos criar um outro partido, mas constatamos que os setores contestatórios no interior do PCB eram profundamente diferentes, contraditórios em questões essenciais, como a concepção de partido e de seu papel na luta armada: ou sob o modelo chinês, ou como uma deformação do modelo cubano, que nós pensávamos que era o fuzil sem partido, que se criaria no decorrer da luta.

TeD - Há um fato curioso. O processo de ruptura se fez no campo político e também no campo organizacional.
Apolônio - Exatamente.

TeD - As propostas que surgiram, no fundo, tentavam fazer certa crítica à estrutura partidária tradicional, revelando divergências entre as várias alternativas que foram colocadas. Marighella, especialmente, partiu para a negação completa da estrutura partidária.
Apolônio - “Não cometerei o erro de criar um terceiro partido.”

TeD -  Vocês não se aliaram ao Marighella nessa posição. Mas ao mesmo tempo estavam rompendo com a estrutura partidária tradicional. A proposta de vocês tinha algum objetivo de resgatar a base leninista do partido? Vocês tinham uma preocupação nesse sentido? Ou onde acaba o leninismo e onde começa o stalinismo?
Apolônio - Eu fugiria dessas formas, porque elas não estavam presentes em nós, de maneira nenhuma. Nós tínhamos, naturalmente, a idéia de nos manter num partido. Não queríamos acabar com o partido como queria Marighella, negar o partido. Tentamos, inclusive por meio da luta interna, transformar o PCB. Mas na realidade nosso despreparo fez com que nós, no fundo, não soubéssemos modificar de maneira efetiva e sensível a imagem do velho partido. Rompemos oficialmente com o PCB na X Convenção Regional, em 23 de setembro de 1967. Muito bem, no dia 1º de outubro, reunimos em Niterói delegados de todas as organizações contestadoras da direção do partido: Rio Grande do Sul, São Paulo, Rio, Guanabara, Paraná e Minas Gerais e companheiros contestadores do Nordeste. Nós queríamos criar um partido, modificar esse partido em tudo que fosse necessário, ver as sugestões, manter o partido. Aí nos defrontamos com a ausência de Marighella e “Toledo” [Joaquim Câmara Ferreira], de São Paulo. Substitui-se o roteiro da reunião porque não haveria unidade. Nós pensávamos num partido novo, capaz de dar verdadeiramente orientação nova à luta de classes no país.

TeD -  Não tinha havido um contato anterior com Marighella e Toledo a respeito dessa proposta?
Apolônio -Toledo tinha posições definidas. Queria nos ganhar para eliminar o partido, a luta armada sem o partido. Ele tinha um xodó tremendo por nossa organização no estado do Rio. Ele era particularmente sensível à figura do Miguel Batista, por exemplo, e outros. E nós tínhamos um carinho imenso por ele, mas não arredávamos pé da luta armada com o partido.

TeD -  A resistência maior se localiza em Toledo?
Apolônio - No Marighella, fundamentalmente. Câmara Ferreira era um homem que acompanhava Marighella. Mas, na minha opinião, no fundo ele estava conosco. E depois deslizou para a posição de correção parcial etc., mas já estava demasiado engajado. E, para evitar uma ruptura entre as forças contestadoras, nós estabelecemos as bases de um compromisso: uma direção provisória, composta por seis elementos, um de São Paulo, Marighella, sendo presidente da Comissão, dois do estado do Rio, dois da Guanabara e um de Minas Gerais, estados próximos, para podermos nos reunir. Minas Gerais nunca veio, São Paulo nunca veio e funcionamos os dois do Rio e os dois da Guanabara. O objetivo era preparar uma conferência seis meses depois, portanto em março de 1968, para decidirmos essas questões. Claro que preparamos essa conferência, mas São Paulo já tinha criado, em fevereiro, o Agrupamento Comunista de São Paulo. O MR-8 estava trabalhando por outros lados. A corrente de Minas Gerais estava olhando com desconfiança os nossos caminhos e não quis vir.

TeD - E a dissidência estudantil?
Apolônio - Em São Paulo, estava com a ALN, e a dissidência estudantil do Rio, depois da experiência do Paraná, tomaria o nome de MR-8, mas estava fora. Então criamos o PCBR, juntamente com Jacob Gorender e Eloi Martins, mas dentro de uma luta interna muitíssimo séria, porque aí nós tivemos o grande confronto. É que a nossa corrente estava profundamente infiltrada pelo PCdoB, inclusive a direção. Houve até elementos de nossa direção, da direção provisória, que já eram membros da direção do PCdoB, e o trabalho deles, do Frutuoso e de outros, era ganhar essa nova formação com tanta gente disposta para a luta, para o PCdoB. Então, essa conferência em março, sui generis, começou com duas posições: uma defendendo a ida para o PCdoB e outra defendendo a criação de um novo partido. Essa segunda foi vitoriosa. Saiu o PCBR. Eles do PCdoB ficaram conosco ainda durante dois ou três meses e depois procuraram levar o que podiam do nosso PCBR.

TeD - Nesse momento ocorre uma discussão extremamente delicada e importante sobre a questão da luta armada. Nesse processo de avaliação há um aprendizado. Seria correto questionar onde começa o delírio, onde termina a coragem?
Apolônio - Eu quero defender muitíssimo a legitimidade da luta dos anos 60: a grandeza, a legitimidade, a pureza dos objetivos, o espírito de ligação com o povo, com a liberdade, os protestos contra os crimes da ditadura. Acima de tudo, quero apontar a imensa responsabilidade da ditadura militar, dos homens da alta hierarquia militar com os crimes hediondos. A insensatez que essas figuras estabeleciam em relação à classe operária e às Ligas Camponesas, aos estudantes, ao mundo da cultura, da imprensa, do teatro, das artes etc. A insensatez desses generais imbuídos do direito de tudo fazer, porque tinham o poder nas mãos e jogavam com a vida, a dignidade dos cidadãos. O problema é que nós avançamos para a idéia da luta armada, em parte por várias influências anteriores, uma certa vocação tenentista, uma certa descrença nas alianças com outras forças, uma certa descrença na possibilidade de uma transformação por vias institucionais. Tudo isso pesou sobre a esquerda, e eu tenho a impressão de que as deformações adquiridas como militantes e dirigentes políticos no PCB marcaram profundamente, com sua inércia, nossa tendência à luta armada e, naturalmente, consolidou-se entre nós a idéia do avanço para uma solução não-institucional. Nós, nesse período de 1964-68, temos toda uma floração de sugestões alternativas à linha política de 1965. “Fora das lutas de massa, a luta armada não tem possibilidade de vitória” — essa é a grande mensagem que vem do Sul, feita por Jacob Gorender e Eloi Martins. “Nosso avanço vai fazer-se por meio do movimento popular, de grandes greves e de choques parciais” — eis a visão alternativa que propusemos no estado do Rio, Miguel Batista, eu e outros. O caminho armado pode ser necessário como coroamento dessas lutas insurrecionais — mas não é absolutamente indispensável. Já em Minas, Mário Alves tem uma visão de conjunto: a combinação das ações de massas e da luta armada nas cidades com a luta de guerrilhas e as ações de massas no campo.

TeD -  Tanto em Cuba como na Nicarágua nós temos um processo histórico anterior muito rico, que instrumentalizava a vanguarda, os agrupamentos, o partido, os movimentos. No Brasil você não acha também que o despreparo é fruto da nossa história, que é rica em certos aspectos mas que é pobre em lutas de âmbito nacional?
Apolônio - Pode ser. De qualquer forma, o despreparo político e teórico está presente do princípio ao fim. E, sobretudo, no preparo político e teórico. A origem do nosso erro, a causa de nossa derrota está em nosso romantismo e em nossa cegueira científica, cultural, teórica. No final de 1968, nós estávamos totalmente isolados e aí tivemos a influência que veio de fora e que assimilamos sem espírito crítico. Acreditávamos na força criadora, na força transformadora, na vara de condão de uma fada que se chama ação: a ação armada, no caso, era a grande construtora das organizações. Esse é o grande erro que você encontra em Marighella, que você encontra em Toledo, que você encontra na postura política do PCBR, embora ele não repita essas mesmas fases. Mas, no fundo, no fundo, nós acreditávamos que íamos para uma luta armada, pensando que semearíamos novas lutas populares. Era a visão de que a luta armada, apoiada nas organizações e nas lutas do povo, teria então sua realização completa, sua efetiva materialização. Nós fomos lá de olhos fechados, e fomos, de novo, surpreendidos, isolados, sem bases sociais nas cidades e no campo, e sem preparo militar.

TeD - Sintetizando esse momento, foi correto ou não foi correto esse protesto armado?
Apolônio - Eu não diria que não foi correto. Eu penso que teríamos podido corrigir esse erro inicial, prolongar a visão desse protesto armado. A idéia desse protesto armado, mesmo já isolado do movimento popular, tinha portas abertas para outras alternativas sob a visão comum de uma guerra prolongada. Eu penso que ele poderia, talvez, abrir outro caminho. Agora, o conformismo imobilista seria qualquer coisa de terrível. A posição do PCB é uma posição muito fácil, muito gratuita, nos chamam de aventureiros, mas se esquecem de que todas as influências que pesam sobre nós nesse momento são influências que pesaram sobre o PCB nos anos 20/30/48/50.

TeD - Nesse processo você é preso e fica pouco tempo na prisão, no DOI-CODI da rua Barão de Mesquita, no Rio de Janeiro. Falaram muito de sua irreverência, do seu enfrentamento com o capitão Carneiro, aqueles torturadores tristemente famosos. Como foi esse enfrentamento?
Apolônio - Na prisão, eu passei por dois momentos claros. Primeiro, caí em mim: estou preso e tolamente preso. Infringi regras de segurança, subestimando o adversário. Estou preso, me dou conta de que cometi um erro muito sério e que isso é ruim para a organização. Então, há uma tentativa de fuga, mas sinto que não posso fugir. Depois, sou levado de carro para um quartel. No caminho, eu sinto que os policiais vacilam, salto sobre o motorista e procuro jogar o carro contra um paredão. O carro não bate e eu levo coronhadas. Em seguida, levam-me para a Polícia do Exército. A idéia de ser um oficial num quartel do Exército me desperta a formação pessoal e a ilusão romântica, e me apresento. Aí, chamam o oficial, me põem o capuz e começa o interrogatório. Diante das minhas respostas, um dos policiais me dá uma bofetada. Eu reajo, isso é uma indignidade, uma covardia. Tiro o capuz e agrido os torturadores. Dois minutos depois estava esticado no chão, desacordado. Agora, isso me dá um respeito junto aos soldados que assistem a tudo com uma tranqüilidade muito grande. Eles podem me bater, me matar, mas eu já comecei.

TeD - Em 1970, você e mais 39 presos políticos são trocados pelo embaixador alemão, e vão para a Argélia. Como foi o exílio para você?
Apolônio -  O exílio poderia ter sido muito mais enriquecedor, mas nós levamos uma série de deformações, a idéia de que a guerra continua, não somos capazes de fazer essa reavaliação, corrigir o lado errado, sentir a realidade, evitar o massacre urbano e buscar o movimento social que despontava. Nós temos a ilusão de que somos fortes por causa dos seqüestros, mas depois nós vamos ver que não passam de uma miragem. Foi difícil aceitar a realidade da derrota política, apesar de a derrota militar estar clara.

TeD - Como ficou o PCBR nesse processo?
Apolônio -  O PCBR foi um partido que teve talentos políticos, como Mário Alves, como Jacob Gorender. No princípio, tem uma floração de iniciativas, pesquisas, um surto de elaboração política. Depois de 1969, roído pela luta interna entre ir ou não ir para a guerrilha rural, fica numa posição de imobilismo e isolamento da realidade e suas exigências. Deixamos de elaborar, não procuramos pesquisar e fazer análise de crítica construtiva do caminho empreendido. Nós estávamos no exterior e a direção estava no interior, sujeita a todos os perigos, ameaçada por todos os lados, em condições extremamente difíceis. É graças ao conjunto de organizações de esquerda que nós estamos em liberdade, e essas direções asseguram o direito da linha política. Com que direito nós vamos contestá-los? Isso é falso, mas é profundamente ético. Ao lado disso, havia também o resquício da mística partidária, que agrava ainda mais essas deformações. Em 1974-75, eu sou um dos que procuram acompanhar a nova realidade, o princípio da distensão. Mas não tenho ainda uma saída para a eliminação da luta armada. No PCBR, só em 1978 é que nós vamos ver, sentir verdadeiramente a conjuntura nova, participar da luta eleitoral. Diante da resistência do conjunto do partido e de parte da direção no exterior, nós nos afastamos do partido.

TeD - Nesse momento, no Brasil, crescem o movimento de massa popular e sindical e a discussão que levaria à criação do PT. Como é que você se coloca?
Apolônio -  A gente sente que há uma nova qualidade do movimento operário. Há o surgimento de novas lideranças que a luta de classes, em sua forma econômica e social, projeta na vida do país. Figuras como Lula, com fidelidade à classe, com espírito criativo, com uma abertura para o novo, mesmo sem bases culturais, são figuras que, na minha opinião, a classe operária, num país como o nosso, pode produzir apenas uma vez no século. Há um movimento de simpatias generalizadas em torno dessas forças novas que trazem uma nova alternativa no plano institucional, no plano da luta legal, no plano da luta de massas. Essa simpatia se canaliza para a idéia de que a experiência política da classe operária em ação vai pôr, na ordem do dia, a necessidade de a luta de classes dar um salto para sua forma política, por meio de um instrumento que é um partido político da classe operária. Nesse momento nós temos o PT, como um partido de tipo novo. Quando viemos para o Brasil, em 1979, nós tivemos uma imensa simpatia pelo PT. Em fevereiro de 1980, quando se lança o PT oficialmente, vemos o primeiro partido de esquerda em todo o século que pleiteia, como um de seus traços essenciais, a conquista da legalidade. Nesse momento, já somos fundadores do partido, ali estamos, Renée e eu. Não estou de acordo com Mário Pedrosa, quando diz que o PT começa tudo de novo. O PT não começa tudo de novo, mas passa a ser o grande elemento de confiança, de esperança, algo novo para a vida militante de cada um de nós.

TeD - Nós temos hoje um partido que, em termos de organização, história, participação, rompe com a ortodoxia. É fruto da história, mas rompe, abre um novo horizonte. Como você, com a formação, a disciplina e aquela garra para levar às últimas conseqüências a linha rígida do partido, seja ele soviético ou brasileiro, assimilou essa mudança? Foi uma violência?
Apolônio - Não foi violento porque quando se diz que o PT é continuidade e ruptura, a tendência é focalizar particularmente a ruptura. É preciso uma visão de equilíbrio nessa análise. Nos anos 60, nós do PCBR queríamos manter um partido, mas modificamos a idéia do velho partido leninista, muito parcialmente por causa da influência e da tradição do partido bolchevique. O PCBR estabeleceu uma nova base de liberdade, de idéias, mas não caímos no outro extremo, que seria a visão anarquista. Guardamos uma combinação com o centralismo, uma combinação com a democracia interna que não fomos capazes de levar longe. Optamos pelo caminho armado, mas não aceitamos o predomínio da idéia de um comando político-militar dentro do partido. O PT guarda ainda um bocado das coisas da esquerda, e, dentro do amor imenso que nós temos pelo PT,  acho que o PT guarda ainda muito do cerco das idéias e concepções da esquerda tradicional. A IV Internacional tem uma visão de centralismo democrático tão dura quanto o centralismo democrático do tempo de Lenin, depois de 1920, e do tempo de Stalin, depois de 1924. O PT guarda ainda uma estrutura que precisa ser repensada. O papel das bases ainda é mais teórico do que prático, na vida e na elaboração do partido. Algumas das coisas que marcam a esquerda nos seus quase 70 anos, do PC para cá, ainda estão presentes. Hoje, no PT, temos uma visão do seu papel que lembra muito o messianismo dos partidos comunistas em épocas passadas. O PT é visto como o símbolo da força social, então joga-se para escanteio a idéia fundamental do conjunto de forças sociais e políticas da esquerda e de outras forças periféricas, outras forças interessadas num programa para a mudança da sociedade. Tem o mesmo sentido a recusa do nosso PT, não formal, mas muito concretamente definida, a uma política de frente, no início com as forças de extrema-esquerda, em segundo lugar, com as forças de centro-esquerda, com as forças da sociedade civil próximas à esquerda. Essa recusa pode levar ao isolacionismo dentro do PT. O problema de um messianismo, da visão quase fatalista de que as mudanças se consubstanciam no crescimento do PT, em sua chegada ao governo e ao poder. Levam, assim, à subestimação da política de frente, da imagem de um esquema capaz de ganhar outras forças para mudar o país. Eu tenho muita dificuldade em aceitar, em São Paulo, uma candidatura municipal feita por dois companheiros do PT; no Rio Grande do Sul, uma política de alianças que tem de um lado o Olívio Dutra como elemento que vem do PT original, das lutas de classe, do movimento operário, e um vice-prefeito que vem da extrema-esquerda organizada. É a aliança apenas dentro do PT. Em alguns lugares nós avançamos mais para a política de frente. Na campanha presidencial nós devemos ter forças políticas e sociais que possam ampliar, enriquecer, dar um colorido novo a essa corrente de renovação que é a candidatura do Lula.

TeD - Apolônio, como fica a patente de general?
Apolônio - É muito simples, viu? A Constituição estabeleceu que a anistia está concedida dentro de tais e tais bases. Então, nós voltaremos a ser, não generais como deveríamos ser, mas até coronéis. Agora, no Exército, na Marinha ou Aeronáutica, o coronel em condição de reforma tem posto de general-de-brigada. Eu fui um dos três primeiros a pedir a volta. Em cinco ou seis meses deverei receber a patente de general...

Paulo de Tarso Venceslau é jornalista e membro do Conselho de Redação de Teoria e Debate.

(Colaborou Daniel Aarão Reis Filho)

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