Mundo do Trabalho

"Se não conseguirmos incorporar os camponeses na luta sindical, que é uma luta econômica, uma luta imediata, imagine incorporá-los na luta estratégica pelo socialismo!" Entrevista com João Pedro Stédile

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Como surgiu o MST - Movimento dos Trabalhadores Sem Terra? Qual sua relação com a CUT, com o PT e com a Igreja Católica? Estas questões, assim como as diferentes formas de assistência no campo e o papel de modernas técnicas agrícolas e gerenciais para os assentamentos, são debatidas nesta entrevista.

João Pedro Stédile, membro do Diretório Nacional do Partido dos Trabalhadores e um dos principais representantes do MST, é um gaúcho meio camponês de Lagoa Vermelha que só conseguiu estudar porque sua mãe mandou-o para um seminário. Terminado o ginásio, voltou para sua terra natal, onde trabalhou na serraria de um tio até completar o curso secundário. Vendo que não tinha futuro, partiu para Porto Alegre, onde era obrigado a trabalhar à noite para pagar seus estudos de economia. Fez estágio e trabalhou como técnico da Secretaria da Agricultura do Estado do Rio Grande do Sul. Desde 1978 assessorou a CPT e, juntamente com outros companheiros, começou a organizar o MST, hoje implantado e atuando em todo o território nacional.

João Pedro, alguns dizem que o MST surgiu do movimento sindical; outros, que surgiu independentemente do movimento sindical. Afinal de contas, de onde veio o Movimento dos Trabalhadores Sem-Terra?
Na nossa avaliação, ele nasceu da premissa de que a luta pela terra tem de ser de massa e da conjugação de vários fatores. Primeiro, do ponto de vista econômico: na década de 70 houve um processo de intensa modernização do campo, com o avanço sobretudo da mecanização nas regiões Sul e Sudeste, da monocultura da soja, a expansão da lavoura da cana. Esse processo aglutinou um monte de gente que antes trabalhava de parceiro e arrendatário no café, no algodão, nas regiões Sul e Sudeste, e que de uma hora para outra foi substituída pela máquina e expulsa para Rondônia, Mato Grosso etc.

Em que ano foi isso?
Começo de 1970, com o boom da soja. O segundo foi o fator político em 1976/1978, quando começa todo aquele processo de revolta popular no meio urbano contra a ditadura, como as grandes greves no ABC, que levou o camponês a perder o medo. (O medo é uma marca muito grande da repressão no interior do país.) O terceiro fator foi a influência da Igreja Católica, tanto do ponto de vista social quanto ideológico. A criação da CPT - Comissão Pastoral da Terra, em 1975, provocou uma mudança ideológica no trabalho pastoral da Igreja. Antes, a Igreja conservadora dizia: "O sofrimento é natural". A CPT veio com outro discurso: "Nós queremos terra aqui na Terra, porque no céu nós já temos garantido" e "Deus só ajuda quem se organiza". E o quarto fator foi o surgimento das oposições sindicais rurais e alguns núcleos do sindicalismo combativo.

A bandeira "a luta pela terra" estava presente nesses sindicatos?
Não, não estava presente. A maioria dos sindicatos de pequenos agricultores até hoje não abraça a bandeira de luta pela terra.

Tem algum marco histórico que caracterize o surgimento do MST?
Há dois marcos. Um, mais interno, foi o congresso de fundação do movimento, em 1985. A primeira fase do movimento, de 1978 até 1985, foi de articular as lutas localizadas pela terra: as primeiras ocupações no Rio Grande do Sul e em Santa Catarina, em 1980; a resistência dos colonos desalojados pela Itaipu; a ocupação da fazenda Primavera, em São Paulo; as ocupações no Mato Grosso do Sul e em Goiás. Em 1984 fizemos um encontro no Paraná, com lideranças de massa dessas várias ocupações. Cerca de 80% dos presentes nessa reunião já eram sindicalistas, também no sentido de ocupar cargos dentro do sindicato. Então foi uma decisão de dentro do próprio movimento sindical. Mas um movimento que se articulava independentemente da institucionalidade do sindicato. A partir dessa reunião fundamos o movimento. Convocamos um congresso com toda a militância que estava lutando por terra no Brasil inteiro. Em janeiro de 1985, em Curitiba, vieram 1.500 delegados de todo o país e aí, nesse congresso, fundamos o Movimento dos Sem-Terra.

Um marco.
Só que ainda um marco orgânico, com certa força política. Mas foi um marco histórico importante porque rompemos a primeira barreira ideológica que havia na cabeça dos camponeses e em certos setores da Igreja que ainda relutavam. Até o congresso de 1985, ou seja, de 1979 a 1985, a bandeira principal era "Terra para quem nela trabalha", defendida pela CPT e assimilada pelos camponeses. No congresso de 1985, a grande bandeira lançada e que pegou a massa foi "Ocupação é a única solução". Agora, para fora, para a sociedade em geral, eu acho que o segundo marco foi no final de 1985 e 1986, quando adotamos uma política diferenciada em relação à Nova República. Diferenciada da Contag e de todo o sindicalismo reformista influenciado pelo PCB, pelo PC do B e por outras forças de esquerda, que passaram a acreditar que o Plano Nacional de Reforma Agrária ia ser implementado e que o movimento camponês deveria ter uma atitude colaboracionista com o governo. Em troca - todo mundo hoje sabe -, o governo da Nova República financiou todo o congresso da Contag, em 1985.

Qual foi a tática do movimento em 1985 e 1986, em relação à Nova República?
Nós adotamos a tática do "pau e prosa". Não nos recusamos a discutir com a Nova República, inclusive havia até laços de amizade com os companheiros da ABRA, que estavam no Ministério. O Zé Gomes, como presidente do INCRA, convidou o movimento para colaborar no plano. Nós não nos recusamos. Ficamos, dez, doze dias lá em Brasília (uma comissão da direção do movimento), contribuindo para o plano. Demos um monte de sugestões dentro do plano. Agora, nós continuamos acreditando que a Reforma Agrária só sairia do papel se fosse fruto da nossa mobilização popular, do movimento de massas. E continuamos articulando as bases.

Em outubro de 1985, Sarney baixa um decreto e puxa o tapete da Contag. Como foi isso?
Sarney baixou um decreto em 10 de outubro que inviabilizou o plano. Aí o Zé Gomes se demitiu, e a Contag ficou com o pincel na mão. Nesse mês de outubro, nós fizemos mais de trinta ocupações em todo o país, mobilizamos em torno de 20 mil famílias; fizemos grandes ocupações e todas elas foram vitoriosas. Foi um marco para a opinião pública, porque nós nos projetamos como movimento de massas.

Até o congresso de janeiro de 1985, não havia articulação desse nível?
Não, só aquele encontro anterior; o movimento era localizado.

E esse movimento localizado era espontâneo ou tinha algum estímulo político? Havia algum elemento comum além da luta pela terra?
Em o caráter massivo das lutas. Não eram lutas de resistência como a tradição no Norte, onde meia dúzia de posseiros podia ficar resistindo com espingardas. O que aparecia como luta pela terra no Brasil entre 1968 e 1978 era a resistência dos posseiros do Norte. No Sul, eram lutas massivas e de ofensiva, para ocupar alguma terra. Ou no caso do grande movimento que saiu no Paraná contra Itaipu, contra a indenização, porque se lutava por terra e não pelo dinheiro. O grande acampamento nas margens do lago mobilizou umas 12 mil famílias, que tinham sido desalojadas pela Itaipu. Nenhuma dessas lutas era espontânea. A maioria era dirigida por militantes de várias origens da Igreja, desse trabalho da CPT. Havia também pessoas que já tinham alguma militância na esquerda ou outras experiências sindicais. Mas ninguém se conhecia. Não havia nenhuma articulação, nem sindical, nem política. Era tudo na seguinte base: "Ouvi dizer que lá no Mato Grosso do Sul saiu uma ocupação. Quem será que está organizando?". Quem ajudou a costurar isso aí foi a CPT, a grande responsável pelo nascimento do Movimento dos Sem Terra, porque ela conhecia tudo e todos.

E como são os vínculos com a CPT?
Houve muitas discussões internas dentro da CPT. Havia propostas de se fazer um movimento em que os agentes pastorais tivessem mais influência. Mas prevaleceu a idéia de que tinha de ser um movimento camponês, autônomo, sem qualquer vínculo com a Igreja.

Como vocês conseguiram se expandir por outras regiões que não tinham as características do Sul-Sudeste?
Primeiro, o movimento tornou-se uma referência de luta pela terra. Então, os militantes de outros Estados, que lutavam pela terra, mas que ainda estavam isolados, começaram a nos procurar. Outro fator foi o próprio movimento sindical, principalmente a partir da fundação da CUT, em 1983.

Havia diferenças por região?
Há muitas diferenças entre Sul-Sudeste e Norte-Nordeste. A mesma metodologia que nós usamos no Sul e que produziu o movimento de massas, para o Nordeste não serviu. Nós ficamos dois, três anos patinando no Nordeste. No Sul-Sudeste, onde a maioria dos militantes tinha origem na Igreja, íamos para as comunidades com o livrinho "Como Conquistar a Terra". Lá nas comunidades rurais, fazíamos reunião de dez, doze famílias. Havia um trabalho prévio de organização de base. Levamos essa mesma metodologia para o Nordeste e não funcionou. Os estados de Piauí, Bahia e Sergipe, que estavam articulados com o movimento desde 1985, não conseguiram fazer nenhuma ocupação em 1985, 1986, 1987. Aí nós fizemos uma avaliação metodológica. Por que nós não conseguimos fazer movimento de massa no Nordeste, onde está a maior pobreza e é maior o número de camponeses sem terra? Descobrimos que a tradição do camponês nordestino não é essa de fazer reuniãozinha de família, até por causa da dificuldade de leitura. Concluímos que o próprio trabalho de preparação das ocupações tinha de ser um trabalho de massas e não de base. Então, nós mudamos a metodologia. Fomos para as comunidades rurais do Nordeste e reunimos todo o povaréu da comunidade e a discussão se dava em grandes assembléias. Nós só continuamos com o trabalho de base no sentido da logística de ocupação e dos preparativos concretos. E aí é que começou a dar certo. Na Bahia, a partir de 1988 fizemos grandes ocupações, com três, 4 mil pessoas; hoje estamos em todos os estados do Nordeste.

Qual a repercussão dessa mudança?
Com a mudança de metodologia o movimento passou a sofrer certas críticas de alguns setores da Igreja, sobretudo dos mais atrasados, que interpretaram essa nossa metodologia de trabalho de massas como pura agitação, que não conscientizava o povo, que era aventureirismo. Mas, devagarinho, acho que estamos superando também essas críticas, na medida em que essas ocupações estão dando certo.

Esse movimento, pela sua própria dinâmica, tem uma agilidade maior do que o movimento sindical. Houve alguns problemas no seu relacionamento com a CUT?
É difícil generalizar. O Movimento dos Sem-Terra sempre teve como princípio a construção de uma central combativa. O Congresso dos Sem-Terra aprovou sete princípios do movimento. O sexto princípio se refere aos esforços para organizar uma central sindical combativa de massas além de que nós apoiaríamos a construção de um partido político da classe trabalhadora.

Essa central e esse partido não eram necessariamente a CUT e o PT?
Eram. Só que nós não podíamos dizer explicitamente, porque o movimento de massas estava na fase de articular quem estava lutando por terra mas sem uma identidade ideológica com a militância. Tinha muita gente do PMDB; tinha gente que podia ter simpatias pela CGT; tinha gente do PDT. E havia também correntes dentro da Igreja, fortes na época, dizendo que o Movimento dos Sem Terra tem que ser autônomo e independente da Igreja, do partido e do sindicato. Nós enfrentamos essa discussão com setores da Igreja até o IV Encontro dos Sem Terra, em 1987. Nesse encontro ficou explícito: o Movimento dos Sem Terra é para construir a CUT mesmo. E nós nos identificamos com o PT enquanto militantes - foram inclusive desfraldadas as bandeiras da CUT e do PT. Mas tem muita gente que ideologicamente ainda não entende as diferenciações de instâncias e de métodos de trabalho. Nós temos de discutir com a CUT e o PT as linhas políticas. Se nós estamos construindo o mesmo projeto político, esse projeto deve ser discutido. Agora os detalhes devem ser discutidos em cada instância e na sua organicidade própria. Nós compreendemos que o nosso papel no movimento de massas é ajudar a construir a CUT e o PT, o que não significa necessariamente um atrelamento orgânico que, isso sim, prejudicaria a luta de massas; a longo prazo, prejudicaria o próprio partido.

Como você responde à crítica de que o Movimento dos Sem Terra estaria querendo criar a sua central camponesa e, na hora que lhe interessa, ele se aproxima da CUT. Quando não interessa, diz que é independente e autônomo.
Nós temos muitos problemas e contradições internas quando a nossa militância interpreta que a CUT e o PT só servem de apoio quando acontece uma ocupação. Nós trabalhamos com camponês que tem um monte de debilidades. É muito difícil construir um quadro, um militante, no meio camponês. Do lado da CUT e do PT, eu também acho que existem muitas debilidades. Só que aí não é da militância, é debilidade das direções. Por falta de desenvolvimento político e muitas vezes por falta de honestidade política. Envolve ciumeiras. A luta dos sem-terra ou a ocupação da terra está aparecendo mais nos jornais do que a CUT; então o presidente da CUT daquele estado fica com ciúme porque a central, teoricamente, é uma instância superior ao movimento - o que nós reconhecemos.

Como resolver esses problemas?
Quando o PT conseguir maior organicidade e maior identidade ideológica, ele vai poder contribuir mais com a luta pela Reforma Agrária. Existem posições políticas dentro do PT que afirmam abertamente que a luta pela terra só vai criar a pequena burguesia no campo. Então, se existe ainda essa posição política dentro do partido, qual é o nível de confiança ideológica que se cria no relacionamento? Nenhum, não é? Chegam ao cúmulo de insinuar que o movimento não apóia a CUT. Nós nos recusamos a aceitar essa crítica. Nós nos sentimos parte da construção da CUT e estamos dentro dessa central sindical, construindo esse projeto sindical.

A CUT hoje contempla as propostas e bandeiras dos sem-terra?
Contempla. As linhas políticas tiradas pela CUT no último congresso são política e ideologicamente iguais às do nosso último Plano Nacional. Diferem só nos detalhamentos. Então, não existem contradições político-ideológicas.

A CUT é uma central sindical que envolve trabalhadores no campo e na cidade. Na cidade, tem uma diversidade muito grande. No campo, acredito que essa diversidade seja maior. É possível manter-se uma central única com essa abrangência?
Não só é possível como necessário. É a grande contribuição que o movimento sindical brasileiro está dando à América Latina, construindo um movimento sindical cada vez mais unitário, mais amplo, sem perder a combatividade.

 

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A relação entre o Movimento dos Sem-Terra e a CUT deveria ser mais orgânica ou deveria ter uma relação específica?

Não existe uma discussão amadurecida sobre isso. Mas eu não concordo com o acoplamento orgânico. A nossa relação com a CUT é uma articulação de lutas; não é necessário que o Movimento dos Sem-Terra esteja filiado à CUT para se articular com o Departamento Rural ou para estar dentro dele. Nós temos de descobrir formas flexíveis, sem que seja um acoplamento orgânico.

Algumas correntes políticas e sindicais acham que, no campo, a CUT deve privilegiar o trabalho assalariado, porque ali se dá a contradição capital e trabalho.
É uma posição equivocada. A CUT tem de trabalhar com todos os trabalhadores rurais, sejam assalariados, sejam nós sem-terra, seja o pequeno proprietário. Imagine se for aplicada essa mesma analogia na cidade. Qual é a categoria mais importante na cidade? Metalúrgicos? Mas de repente os trabalhadores em processamento de dados têm muito mais impacto no sistema capitalista do que outras categorias. E pelo número, o setor de serviços está cada vez maior. Então, é complicado definir simplesmente por analogia ou por vocação ideológica.

Agora, o caráter classista da CUT não interferiria nisso?
Se não conseguirmos incorporar os camponeses na luta sindical, que é uma luta econômica, uma luta imediata, imagine incorporá-los na luta estratégica, pelo socialismo!

O Movimento dos Sem-Terra é acusado, por setores internos e externos ao PT, de fazer apologia da luta armada, o que poderia inclusive desestabilizar a nossa fraca democracia. Como você vê essa questão?
A tarefa de organizar o povo para transformações mais radicais e de tomada de poder não é do movimento de massas e de luta pela terra. É o partido que tem de se preocupar com isso e não nós. Na prática, a luta pela terra vem passando por um processo de transformação do tipo de enfrentamento. Nós poderíamos classificar em várias fases, desde 1979. Pelos nossos cálculos, nós fizemos em torno de quinhentas ocupações de terra nesse período. Bem ou mal, algumas despejadas, outras não, nenhuma delas foi derrotada politicamente. Porque ou se transferiu o acampamento ou conquistamos a terra que ocupamos. Então, a prática da ocupação se revelou eficaz.

Como foram as ocupações nesse período? Como é que reagia o outro lado quando se ocupavam as terras?
Foi o período de 1978 a 1985. Eles foram tomados de surpresa. Não se acreditava na mobilização de massas. Então o fazendeiro se sentia surpreendido quando uma fazenda era ocupada. Assim como as próprias autoridades, não é? Interpretavam às vezes como um negócio da Igreja; então, procuravam logo negociar. Nas primeiras ocupações o enfrentamento era muito pequeno. Nessa fase, o fazendeiro procurava identificar quem era o cabeça, a liderança, e encomendava para pistoleiros fazerem o serviço. É por essa razão que no Norte muita gente morreu. Numa segunda fase do enfrentamento da luta pela terra, o inimigo já se preparou melhor e começou fazendo despejos. Num primeiro momento misturando jagunços com policiais; num segundo momento, lançando só a força policial contra nós, com ordem judicial, o que nos pegou de surpresa. A terceira fase, de 1988 para cá, é mais qualificada. A Polícia Militar não trouxe mais soldadinho lá do próprio município. Estão deslocando batalhões especializados, tropas de choque, e não chegam mais com ordem judicial. Chegam já batendo, atirando bombas de gás lacrimogêneo, apoiados por grupos paramilitares preparados pela polícia. Há um grupo na Paraíba que usa farda sem ser da polícia. Esses grupos, usam armamento pesado (metralhadora, mosquetão) e vêm já fazendo despejo, com a maior violência possível. Então, o movimento de massas teve de ir se preparando para as reações do inimigo. Na primeira fase, quando era só enfrentar os pistoleiros, foi muito fácil. Essa fase nós superamos. O pistoleiro para nós hoje não é mais problema, porque a tática dele é fazer a emboscada e pegar o líder. Nós usamos a tática de não identificar a liderança de massa e sempre atuar em massa. O pistoleiro não consegue fazer o despejo; não consegue resolver o problema para os fazendeiros. Agora, a Polícia Militar e os grupos paramilitares estão conseguindo fazer o despejo. Isso nos obrigou a qualificar a nossa forma de luta. Nós não podemos ir para a ocupação sabendo que no outro dia ou de madrugada vem o grupo paramilitar e nos despeja. A partir do último Encontro Nacional decidimos preparar a resistência: ocupar, resistir e produzir.

Qual a concepção dessa resistência?
A resistência numa área ocupada só é possível se toda a massa resiste. Nosso objetivo é preparar a massa para essa resistência, porque ela não vai ser espontânea - nada acontece no mundo espontaneamente. Como resistir? Se é uma resistência de massa, nosso objetivo é permanecer naquela terra. Não temos a ilusão de que nós temos de usar armas de fogo. Primeiro porque nós não temos armas, mas, se tivéssemos, não seria a tática correta, porque os nossos inimigos são infinitamente superiores em termos de armamento, têm muito mais do que as espingardinhas que os nossos companheiros podem reunir para a ocupação. Seria idiotice nossa querer levar o nível de enfrentamento para armas de fogo. A nossa tática é transformar as nossas ferramentas de trabalho em armas de defesa. Cada companheiro tem de ter alguma coisa que vire arma, um pedaço de pau, uma foice, um facão, até as espingardinhas, que funcionam muito mais como efeito psicológico do que com real poder de enfrentamento. E temos aplicado essa tática em várias ocupações, em algumas fomos derrotados, mas na maioria delas estamos conseguindo resistir.

A recente ocupação no norte do Espírito Santo resultou em graves e sangrentos conflitos. Qual a versão do MST?
A ocupação não foi bem preparada, e nós não conseguimos mobilizar a quantidade de famílias que esperávamos. Era uma ocupação para começar com umas quatrocentas famílias, mas só umas 120 famílias conseguiram chegar até a Áurea. As outras foram barradas pela polícia em outros municípios, enfraquecendo, portanto, o núcleo que conseguiu entrar na fazenda. As famílias dessa ocupação foram com essa filosofia da resistência de massa, com as nossas armas artesanais. Evidentemente, alguns tinham as espingardas junto. Acontece que o fazendeiro, muito articulado com a polícia, percebeu que a maioria das famílias tinha ficado nas barreiras e achou que era só um grupo pequeno, de quinze, vinte famílias que tinha entrado e que portanto poderia resolver o problema com o método antigo. Contratou pistoleiros pegou seis da própria fazenda - mais um soldado à paisana, acostumado a fazer trabalho de "pistolagem", o ele próprio, o fazendeiro. Antes de fazer o despejo, ele passou no fórum, falou com a juíza, que o aconselhou a entrar primeiro com o pedido de despejo, provar que a terra era dele e, depois, ela mandaria a polícia fazer o despejo. O fazendeiro disse explicitamente para a juíza: "Isso eu mesmo resolvo, pode deixar comigo". Não encaminhou nenhuma medida judicial e foi lá com os pistoleiros fazer o tal despejo. Chegou no acampamento atirando. Como a nossa turma estava preparada para a resistência de massa, reagiu aos tiros. Houve tiroteio e morreram um dos pistoleiros - que depois se descobriu que era soldado - e o fazendeiro. Do nosso lado, ficaram feridos três companheiros. Um deles inclusive perdeu a movimentação do braço. A nossa avaliação é de que, se os companheiros não tivessem reagido com os tiros de espingarda, os pistoleiros do fazendeiro teriam feito uma chacina, porque foi um tiroteio no meio do acampamento. Em conseqüência desse episódio, a UDR - que é muito forte na região - planejou como represália o assassinato de outros companheiros. Em seguida assassinaram um militante do PT em Linhares, que estava distribuindo panfletos contra a UDR; assassinaram o presidente do sindicato; o secretário do sindicato de Montanha; e tentaram botar fogo na sede da CPT.

O que explica essa reação tão violenta?
A violência é uma marca regional. Nos últimos anos foram mortos mais de cinco sindicalistas e mais de vinte pessoas, antes de existir o Movimento dos Sem Terra. O problema maior é que um conflitozinho, um simples despejo, teve uma repercussão tão grande porque revelou alguns fatos que nós mesmos não conhecíamos. Primeiro, a existência de uma articulação muito forte, no norte do Espírito Santo, que envolve a UDR no contrabando de veículos (a quadrilha do Cláudio Guerra que trabalha com tráfico de cocaína e contrabando de veículos de Vitória para lá, para a Bolívia) e um casamento de todos esses grupos com o poder político local, feito através dos prefeitos da região, especialmente os prefeitos de Linhares, de Pedro Canário e de outros municípios, que são também da UDR e dão cobertura. Existem também na Polícia Militar do Espírito Santo uma das mais violentas do Brasil - um esquadrão da morte. Acontece que o tal fazendeiro que morreu pela valentia pessoal dele era desse esquema. Ele pertencia a essa articulação dos fazendeiros com essas quadrilhas, e o próprio soldado que estava lá à paisana, que ninguém sabia que era soldado, tinha também duas características: era membro do P2 (serviço secreto da Polícia Militar) e dessa quadrilha do esquadrão da morte da Polícia Militar. Então a morte dessas pessoas, sem sabermos, atingiu as organizações clandestinas que estavam por trás delas, e houve essa reação tão violenta contra nós e contra todas as organizações populares. Revelou o envolvimento desses grupos e quadrilhas com o assassinato de uma jornalista de Vitória, que vinha denunciando as autoridades. A mesma arma que matou o sindicalista foi a que matou a jornalista. O irmão do soldado que morreu no conflito de terra foi preso em outubro pela Polícia Federal como um dos autores do assassinato da jornalista. O Cláudio Guerra, que era chefe da quadrilha do narcotráfico e do contrabando de carros, foi preso pela polícia Federal, apesar de ter sido o coordenador de polícia e o primeiro a organizar o inquérito do assassinato do Verino Sossai, o sindicalista que morreu. Então, o MST é fichinha diante dessa máfia lá do Espírito Santo.

Qual o saldo dessa política de resistência de massas?
Até agora apenas cinco companheiros do MST perderam a vida em todo o país. Nenhum militante ou dirigente perdeu a vida. Isso é prova de que a nossa forma de dar assistência e fazer movimento de massas está correta. Nos últimos dez anos já perderam a vida no campo mais de oitocentos camponeses. Agora, quem morreu? Os companheiros que não puderam se organizar, que atuaram com muita projeção pessoal, que se destacaram como liderança de massas e não organizaram o movimento para se defender, porque a maior defesa de um líder é a própria massa organizada.

A luta pela terra passa pelos assentamentos. Quais são as maiores dificuldades encontradas pelo MST?
A primeira dificuldade é que, pela correlação de forças da época, as primeiras áreas ocupadas eram de terra muito ruim. A segunda dificuldade é o problema da política deliberada do governo de levar os assentamentos à ruína. Temos muita dificuldade em conseguir crédito, sobretudo para investimento, para implantar aquela infra-estrutura mínima de estrada, água, luz elétrica. Mas conseguimos, durante essa luta, uma linha especial de crédito, que se chama Procera e funciona no BNDES, dando crédito para os assentamentos com juros subsidiados, ou seja, menores que a inflação. A terceira dificuldade do assentamento é a cabeça do camponês: além da tendência corporativista, a maioria trabalha de forma individual. Apesar de todas essas dificuldades, o índice de desistência dos assentamentos no Brasil do MST é dos mais baixos do mundo. É menos de 10%. Na nossa opinião, nós só conseguimos isso porque todos os assentamentos foram feitos com luta. E também porque em assentamentos como o Holandês, no Rio Grande do Sul, foi batido o recorde de produtividade da soja. Nós colhemos 45 sacos de soja por hectare. Nenhuma outra fazenda na região conseguiu isso. Em Cruz Alta, conseguimos o recorde de produtividade de milho.

Isso dá duas toneladas e meia de soja...
Quase três toneladas, quando a média brasileira é de 1.600 quilos por hectare.

O bom desempenho da economia do assentamento não leva a um desvirtuamento dos objetivos do movimento?
Não. Todos os casos de assentamentos que têm uma boa produção, uma alta produtividade e um crescimento econômico são coletivos. A política oficial do movimento é estimular o máximo a cooperação agrícola, nas suas várias etapas, porque os investimentos em comum para desenvolver essa cooperação agrícola exigem uma base político-ideológica mais avançada. É muito difícil conseguir que um camponês atrasado politicamente adira à cooperação agrícola. Com a cooperação agrícola há crescimento econômico nos assentamentos, e o resultado em vez de vir pelo aburguesamento, como muita gente poderia pensar, com o trabalho político, ele rende em militância. É mais fácil pegar militantes dos assentamentos que vão se dedicar em tempo integral às atividades políticas. Eles não dependem mais da roça porque o coletivo garante a produção.

Isso é aceito naturalmente?
Isso faz parte das regras. De toda produção dos assentamentos, 2% vão para o movimento. Temos um caso que é exemplar. Trata-se do assentamento de Nova Ronda Alta, onde dez famílias trabalham tudo coletivamente. Elas começaram numa área de 110 hectares. Faz quatro anos que estão assentados e já conseguiram recursos para comprar 24 hectares de terras vizinhas. Essas dez famílias têm quatro militantes liberados por tempo integral que não vão mais à lavoura. Uma delas é vereadora; outro, secretário geral do sindicato. Tem um que trabalha como tratorista do MST, enquanto outro ainda é da Comissão Nacional do Assentamento.

Esse fato conflita com a imagem de que o pessoal que ocupa a terra fica numa economia de subsistência. A tecnologia, as novas formas de produção e de organização estão sendo incorporadas nos assentamentos. Como você analisa o papel da agroindústria?
Tu tens razão. De vez em quando temos atritos com alguns agrônomos e com alguns setores da Igreja mais basistas, que ainda confundem desenvolvimento com capitalismo. O problema é: quem fica com o resultado e quem tem o controle do processo de produção? Nós optamos e defendemos por desenvolver ao máximo o processo de mecanização, de tecnologia e da agroindústria. Se pudermos comprar o último modelo de trator, nós compramos. Lutamos e pressionamos o governo para conseguir recursos para fazer investimentos, altos investimentos. Não é só uma maneira de aumentarmos a produtividade do trabalho. É a única maneira de se desenvolver enquanto assentamento e se colocar como uma contraposição ao modelo da burguesia. Mesmo o processo de produção integrada é possível. Nós acabamos de fazer um assentamento lá no Rio Grande e fundamos uma cooperativa, que está discutindo um contrato com um frigorífico da cidade para entregar cinco mil frangos por mês. Isso é uma forma de integração, só que com bases políticas diferenciadas. A diferença é que o resultado do frango fica para nós e temos poder de barganha para enfrentar o frigorífico. Nós vamos monopolizar a produção de frango da região, porque todo o consumo de frango daquela cidade vai vir de produção nossa. Então, qual é o problema de sairmos integrados com o frigorífico? Nenhum.

Como vocês chegaram a essas conclusões?
Foi fruto da experiência, do que vimos em vários lugares e, a bem da verdade, também da assessoria do companheiro Clodomiro Morais, da UNB. O cara trabalhou vinte anos na FAO, e nós o trouxemos para dar um curso. Ele nos deu umas mijadas, nos chamou de camponeses atrasados, de artesãos. Foi um choque, não é? O Clodomiro deu uma contribuição importante para nós nesses dois sentidos e nos chamou a atenção para a escala de produção. Não ter medo da escala. E a segunda contribuição importante que ele deu para o movimento foi introduzir a metodologia dos laboratórios, uma metodologia que ele criou para estimular o camponês a criar cooperativa agrícola. É um método de juntar durante vinte dias todo mundo no assentamento, e a solução dos problemas daqueles vinte dias já é a prática para ir desenvolvendo formas cooperativas. Nós já o aplicamos em quase todos os outros Estados e tem funcionado muito bem.

Essa política se contrapõe às acusações da direita de que a nossa Reforma Agrária abandona o camponês a sua própria sorte.
E mesmo de setores da Igreja, inclusive dentro da esquerda. Não é só a direita. Existem algumas visões de que tudo tem de ser pequenininho, como se o camponês gostasse de voltar a trabalhar com arado de boi.

Por outro lado, como a burguesia usa as forças de gerenciamento, de administração, produtivas, de maneira avançada, a agroindústria é considerada por muitos setores um modelo de desenvolvimento burguês. Portanto, a gente não pode fazer o que a burguesia faz, como se a ciência, a tecnologia e formas de gerenciamento e administração fossem monopólios da burguesia, e o trabalhador não pudesse se apropriar disso.
É um absurdo. Mesmo porque, em termos de agricultura, existe uma necessidade material. Se não desenvolvermos a agroindústria, nós não vamos conseguir alimentar o povo; não se consegue conservar os alimentos. Agora, nós estamos com problema no assentamento de Sergipe, formado por terras boas, à margem de um rio que dá tomate a dar com pau, muito tomate e com ciclo rápido, mais rápido do que aqui no Sul; o problema é que como tem muito sol, o tomate amadurece e estraga muito ligeiro. Então, é impossível pensar lá numa lavoura de tomate, para ir vender no Ceasa, como nós fazemos aqui. Nós discutimos que necessariamente vamos ter de botar uma pequena agroindústria para extrato de tomate. E vão começar logo, logo, fazendo extrato em casa e depois devagarinho, à medida que tivermos recursos para pensar em formas de embalagem mais industrializadas. Lá não se consegue desenvolver a cultura do tomate se não tiver esse lado da agroindústria. Por outro lado, o que adianta nós produzirmos soja se a agroindústria está na mão da multinacional? Necessariamente, no dia em que estivermos com um monte de assentamentos que produzem soja, que já tivermos economia de escala, vamos ter de montar uma indústria de óleo. Para esses setores atrasados que ficam pregando que a agroindústria é coisa da burguesia, em vez de vender o óleo para fritar ovo vamos vender saquinho com um quilo de soja, para ver se eles conseguem fritar o ovo.

Paulo de Tarso Venceslau é secretário das finanças da prefeitura de Campinas e membro do Conselho de Redação de Teoria & Debate.

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