Economia

O desarme da armadilha financeira em que se meteu o setor público é o primeiro passo para um reordenamento do papel do Estado em um novo modelo de desenvolvimento. Não é o contrário, como andam dizendo os liberais. As estatais precisam sim recuperar a credibilidade pública. A presença delas é fundamental para um novo projeto econômico.

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A performance da economia brasileira nos anos 80 indica a exaustão do modelo de desenvolvimento priorizado. São características desse quadro, de um lado, o registro de uma taxa média de crescimento anual do PIB de apenas um terço da taxa histórica do pós-guerra, a explosão inflacionária e a crise cambial; de outro, seus desdobramentos sociais, com a ampliação da miséria, pobreza absoluta e desigualdade de renda.

A superação do ciclo militar em meados da década faz-se por meio de um arranjo das elites: uma transição conservadora, costurada entre os próprios militares e certos grupos políticos e empresariais, Define-se por essa via um novo estágio político, mas não se restabelecem as mínimas condições para uma estabilização econômica e uma retomada do crescimento de forma sustentada. Ao longo da Nova República prevalece uma política econômica errática.

Os projetos ousados de reformas monetárias fracassam ao não tratar a contento o problema central relacionado com a crise do padrão de financiamento do setor público.

É nesse contexto que se expandem as denúncias indiscriminadas das conseqüências geradas pelo excessivo tamanho do setor público e sua maléfica intervenção nos mercados: o Estado é caracterizado como o grande vilão da crise, e a defesa do "Estado-mínimo" adquire força na sociedade, apoiada na mídia. Os argumentos do discurso manipulam à vontade aspectos da crise interna e são complementados pelas referências às transformações nos países capitalistas do centro e, posteriormente, no Leste europeu.

Esse é o referencial mais amplo da crítica liberal às estatais brasileiras e a partir dele procuramos desenvolver um diagnóstico que não se restrinja a uma visão caricata do tema.

Na seqüência procuramos, inicialmente, restabelecer de forma suscinta os elementos relacionados à organização do Setor Produtivo Estatal (SPE) no Brasil e a forma de ajustamento adotada nos anos mais recentes; em seguida, consideramos a ebulição liberal no centro e suas repercussões em nosso meio. Para ir além do "paraíso do Estado-mínimo", procuramos registrar ao final alguns pontos julgados essenciais para a recuperação das estatais dentro de um projeto assentado em democracia participativa e crescimento com distribuição de renda.

O Setor Produtivo Estatal brasileiro é composto por um conjunto heterogêneo de empresas, atuando principalmente em setores de infra-estrutura e insumos básicos (mineração, energia, siderurgia, petróleo, telecomunicações, transporte ferroviário e portos). Além desses, o Estado está presente num grande número de empresas privadas (em algumas como controlador mas na maioria apenas como participante acionário) por motivo de intervenção, para evitar falência ou por injeção de recursos em projetos sob administração do BNDES - em 1985, essas aplicações atingiam a cifra de 1.107 milhões de dólares em 187 empresas.

A organização do SPE está associada ao processo de diferenciação e descentralização do aparelho estatal, e sua estrutura molda-se segundo o modelo de industrialização priorizado no pós-guerra. A atividade produtiva do Estado constituiu-se como resposta aos requerimentos colocados para superar estrangulamentos e suprir investimentos indispensáveis à garantia da industrialização em termos de magnitude de recursos, tecnologia e prazos de maturação.

À medida que se expande a participação direta do Estado na produção industrial, altera-se substancialmente o grau de complexidade da política econômica traçada não se limitando apenas a uma ação reguladora dos mercados.

A proliferação de instâncias de descentralização de intervenção estatal direta se efetiva nos três níveis de governo. Trataremos aqui especificamente, pela sua particular importância, do que se tem na esfera federal.

É importante notar que essa ação direta do Estado não é exclusiva de economias de industrialização tardia, tendo se manifestado neste século (mais intensamente no pós-guerra) também nos países do centro, em menor ou maior amplitude. São exemplos clássicos Itália, Inglaterra e França. Entretanto, uma marca registrada do caso brasileiro é a forma desordenada com que ocorreu a expansão do SPE. Ela esteve ausente de uma articulação com um esquema próprio de financiamento, compatível com as necessidades programadas. Também não se delineou um esquema institucional de planejamento para coordenar os diversos grupos de empresas em torno de uma política industrial e tecnológica, na qual se elegeriam prioridades de intervenção e se aperfeiçoariam os instrumentos de controle.

Nesse contexto, realça-se a ambigüidade da empresa estatal de ser, a um só tempo, núcleo produtivo numa economia de mercado e instrumento de política econômica. Essas duas faces da empresa estatal ganham, no Brasil, contornos especiais, principalmente no período mais recente. Como veremos a seguir, a complexidade dos desequilíbrios das estatais resulta justamente da falta de definições claras no critério de administração.

A ausência de controle da sociedade civil sobre o Estado repercute diretamente sobre o desempenho das estatais. Nas suas relações com os grupos privados, seja a montante ou a jusante, prevalecem relações clientelistas. Essa teia de articulações conformou-se sob a lógica de um Estado autoritário, cartorial, distante da sociedade civil. Na verdade, as transações e os acordos entre as instâncias públicas e as privadas acabam por suprimir os contornos distintivos de umas e de outras. Concretamente, isso se operou com o controle de agências públicas por interesses privados. Uma associação entre grupos do empresariado, líderes políticos e tecnoburocratas para viabilizar projetos superdimensionados, concorrências fraudulentas, acordos de quotas, preços distorcidos, subsídios, incentivos fiscais e reservas de mercado. Em suma, foram criativos os expedientes que se associaram à incompetência administrativa e desvios de toda ordem para concretizar a "privatização da setor público".

A criação da SEST - Secretaria de Orçamento e Controle das Estatais em outubro de 1979, com o objetivo de aprimorar o controle por parte do Executivo, não altera esse quadro. A redução da autonomia na gestão de cada empresa, sem a implantação de um novo esquema institucional de planejamento e administração financeira do SPE, acentua a tensão resultante das medidas traçadas para alcançar objetivos inconciliáveis. Em 1986, durante a vigência do Plano Cruzado, a tentativa admirável de se implantar uma holding geral e colocar ordem na casa foi simplesmente abortada, indicando a força dos grupos de poder presentes dentro e ao redor do Estado.

Por fim, registre-se que, ao contrário do que muitos supõem, na comparação do número de empregados no setor público com padrões internacionais, o caso brasileiro não é extravagante, em especial se considerarmos isoladamente o Setor Produtivo Estatal. (Segundo estudos da Macrométrica, o setor público produtivo brasileiro "é um modesto empregador pelos padrões internacionais". O emprego nas estatais correspondia, em 1982, a 2,8% da PEA ocupada. Nos anos posteriores, esse percentual caiu. A referência que fazemos não significa negar que o setor público como um todo careça de ampla reforma administrativa e de realocação setorial de mão-de-obra.)

A resposta do governo militar à desaceleração do ritmo de crescimento em 1974 e ao primeiro choque do petróleo será a proposição de um ousado programa de investimentos, definido no II PND com o intuito de suprir os estrangulamentos em nível de insumos básicos e bens de capital. Na estratégia traçada, as estatais assumiam papel de destaque em projetos na área de petroquímica, minerais não-ferrosos, geração e transmissão de energia elétrica, transporte e siderurgia, nos quais se articularia com os setores privados da indústria de bens de capital.

O esquema de financiamento envolvia, de um lado, a captação de recursos externos com bancos privados ou via capital de risco e, de outro, a utilização de poupança interna (via BNDES, em que se destacam os recursos do PIS/PASEP).

A implantação do II PND desenvolve-se ao longo dos anos 70, sofrendo grandes alterações no cronograma. Com o passar do tempo confirmava-se a inconsistência de se perseguir alvos conflitantes: a expansão traçada no programa esbarrava nos constrangimentos colocados pelo controle da inflação e da balança de pagamentos com políticas ortodoxas.

As estatais passam a ser utilizadas, cada vez com maior intensidade, como instrumentos de política econômica. Para o equilíbrio das contas externas captam recursos nos bancos comerciais e desaceleram investimentos. As autoridades monetárias, no afã de manter sob controle a oferta monetária, amplificam o circuito da dívida pública mobiliária, mantêm elevadas as taxas de juros internas, mas não extinguem as linhas de crédito subsidiadas nem os programas de fomento em contas do Banco Central. Além disso, a carga tributária líquida decresce ante o aumento dos encargos financeiros e por causa da própria queda da arrecadação em presença da expansão inflacionária. Em síntese, a adoção de uma política econômica errática leva ao solapamento da base de financiamento do setor público.

Para agravar a situação das estatais, desde meados dos anos 70 os reajustes de preços e tarifas ficam abaixo da inflação, à exceção dos produtos petrolíferos. No início dos anos 80 a situação financeira das estatais acusava um enorme endividamento com crescente participação de operações com elevadas taxas de juros e comissões, levantadas no euromercado para a rolagem de operações anteriores. Os investimentos são refreados, e os estoques de máquinas e equipamentos se acumulam à espera de novos tempos.

Essa situação vai se agravar ainda mais no decorrer da década, perante o desencadeamento da segunda crise do petróleo e a "reaganeconomics". A alta do dólar e a disparada dos juros no mercado internacional eram a gota d'água que faltava para a explosão da crise dos países devedores. A falência do México em 1982 define o fim da captação de recursos externos no sistema bancário internacional. A partir de então a solução encontrada pelo setor público é captar recursos internamente, para manter o ajuste das contas orçamentárias e cambiais. A viabilização desse esquema se fazia com a geração de elevados superávits na balança comercial.

Até 1983 tem-se um período recessivo. Nos dois anos seguintes a economia reage com a dinamização das exportações.

Ao longo de todo o período há uma intensificação do processo de estatização da dívida. Além da captação direta das estatais, o governo federal absorve dívidas e assume o risco cambial de operações do setor privado, aceitando depósitos em moeda nacional no Banco Central (Circ. 230 e Res. 432). Posteriormente, outro movimento se manifesta no interior do setor público: na medida em que as estatais não conseguiam obter ou gerar os recursos necessários para a rolagem de seus débitos externos, as autoridades monetárias, como avalistas das operações, passam a arcar com o ônus do resgate. Assim, o endividamento das estatais rebate no orçamento global. Sob a lógica do ajuste ortodoxo (sempre tido como de inquestionável sensatez), fecham-se as contas monetárias e cambiais, mas explode o endividamento público e joga-se mais lenha na fogueira da ciranda financeira.

Portanto, nos anos 80 o ajustamento da situação financeira das estatais se desenvolverá sob o constrangimento maior colocado pela crise cambial.

O ponto central a ser explorado é que a perda de graus de liberdade para fazer uma política econômica positiva restringirá de forma decisiva a capacidade de investimento das estatais, que cai cerca de 26% em 1983 (comparada com 1980) e permanece praticamente estagnada até 1986.

Por sua vez, as despesas com pessoal e encargos sociais no conjunto dos grupos do SPE indicam a qualidade do ajuste: decrescem até 1983 e recuperam-se apenas parcialmente nos anos seguintes. Ou seja, não é aí que encontramos o detonador do desequilíbrio financeiro. Aliás, em termos de número de empregados, é importante ressaltar que no período 1980/1988 o crescimento no conjunto do SPE federal foi de apenas 3,4%. Note-se, além disso, pela tabela 1, que há uma extraordinária queda do total de empregados no setor administrativo e uma expansão na área operacional.

TABELA 1

EVOLUÇÃO DO NÚMERO DE EMPREGADOS
DO SPE - 1980/1988 (pessoal próprio)

Pessoal 1980 1982 1984 1986 1988 88/80
%
Administrativo 156.643 136.364 132.879 93.555 91.213 -42.5
Operacional 412.451 426.038 442.043 515.171 500.029 21.2
Investigativo 37.457 42.910 40.526 40.889 37.882 1.1
Total 608.551 605.312 615.448 649.615 629.124 3.4

Ao longo do período 1980/1986 as receitas operacionais do SPE como um todo mantiveram-se acima do nível inicial. Esse resultado é elucidativo. Indica o crescimento da produtividade das estatais brasileiras, além de confirmar o esforço de ajustamento operacional promovido no período, superando, inclusive, os efeitos negativos causados pela contenção tarifária. Para o mesmo período a defasagem de preços/tarifas era significativa, conforme indicam os números para os principais produtos e serviços na tabela 2.

TABELA 2

DEFASAGEM DOS REAJUSTES
PREÇOS/TARIFAS - 1980/1986
(% - comparação com inflação)

Energia elétrica: 15.6%
Aços planos: 39.6%
Transp. ferroviário de cargas: 38.9%
Telecomunicações: 64.7%
Derivados de petróleo: 52.4%
Serviços portuários: 20.9%
Minério de ferro: 26.6%
Fonte: Perfil E. Estatais SEST/SEPLAN 1987

No período mais recente há um processo de recuperação das defasagens. Em 1988 os reajustes nos preços/tarifas do SPE como um todo tiveram um incremento de 25,4% acima da variação da OTN. Não há confirmação de que todas as defasagens foram eliminadas. Independentemente, deve ficar claro que o problema do estoque da dívida e os desdobramentos negativos causados no desempenho financeiro pela contenção de preços no passado não serão solucionados apenas por meio de uma recuperação suplementar. Segundo o Relatório SESTI SEPLAN - 1989, em 1988 o SPE transferiu às instituições financeiras o montante de 946 milhões de OTNs (em valor médio de 1988). Esse número corresponde a 98,3% do total obtido com a recuperação de tarifas/preços (961,9 milhões de OTNs), indicando a inviabilidade de retomar investimentos por essa via.

Conforme temos insistido em destacar, é o violento endividamento das estatais o principal fator explicativo da sua complicada evolução financeira e patrimonial nos anos mais recentes. Vejamos os números. No conjunto das relações operacionais do SPE os encargos financeiros saltam de 7,35%, em 1980, para 16,4%, em 1986, chegando a atingir praticamente 20%, em 1985. Nesse ano, a dívida total do SPE era de 74,2 bilhões de dólares, tendo crescido desde 1980 a uma taxa média anual de 10%.

 

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Por fim, ressalte-se que o ajuste adotado pelas estatais foi distinto daquele das empresas privadas. A máxima da "socialização dos prejuízos" confirmou-se em sua plenitude. Com a escalada inflacionária, a posição devedora das estatais requeria esforços adicionais de contenção de gastos e mudança patrimonial. Se o ajuste permitiu, por um lado, elevar a produtividade operacional, por outro, comprometeu profundamente a expansão o modernização futuras. (É bom lembrar que a performance de cada grupo setorial de empresas é muito diferenciado. Por exemplo, do total de dívidas existente em 1985 cerca de 57,8% eram da Siderbrás e Eletrobrás.)

O argumento liberal de reduzir o tamanho do Estado na economia ganha destaque na medida em que desde meados dos anos 70 instala-se um período turbulento nas economias dos países capitalistas desenvolvidos. A partir de 1979 cresce a onda de privatização, tendo à frente Thatcher e Reagan.

No centro a desestatização não se instala sozinha, sendo acompanhada de uma profunda revisão do arcabouço institucional-jurídico de regulamentação dos mercados. Mais que isso: há a superação do estágio de ação dos Estados nacionais. O espaço econômico relevante já não se encerra nos limites de cada fronteira nacional e requer uma nova orquestração institucional e de política econômica.

As políticas econômicas convencionais tornam-se impotentes para alcançar objetivos previamente estabelecidos e são incapazes de fazer a gestão da crise. Assim, após os "trinta anos gloriosos" de crescimento no pós-guerra, sob o acicate de políticas keynesianas, a avalanche neoliberal propõe-se a ser a panacéia para todos os desequilíbrios do sistema.

Junto com a privatização e desregulamentação há uma ampla alteração no mercado de trabalho. A nova organização social da produção efetiva-se com a expansão do setor informal e, como bem lembra Brunhoff, com "um desmantelamento da classe trabalhadora organizada em sindicatos independentes".

E na América Latina, como se desdobra esse fenômeno? As experiências de privatização promovidas nos anos 70 no Chile com Pinochet e sob a batuta dos intelectuais de Chicago, assim como a política da Junta Militar na Argentina, mostram muito bem o risco e a ameaça desse projeto. Em ambos os casos o resultado foi a desindustrialização e concentração de renda. No Chile milhares de trabalhadores passam a compor o mercado informal sem a presença de qualquer política ativa de emprego ou de uma política social compensatória.

Constitui grande equívoco propor a transposição para a realidade brasileira do que se tem na Europa nos anos 80, tanto no eixo ocidental quanto no bloco do Leste europeu (mais recentemente). Lá a desregulamentação/privatização foi precedida de um período no qual se construiu, cada bloco à sua maneira, um sólido esquema de proteção social.

É bom que se diga: a privatização européia vai mais fundo na Inglaterra. Entretanto, nesse país, as dificuldades para recuperação da economia precedem a ampliação do controle estatal após a Segunda Guerra Mundial.

Este, por sinal, se fez na ausência de um esquema de articulação deliberada entre as estatais, o capital privado o esquemas compatíveis de financiamento. Muito diferente é o modelo italiano. A recuperação acelerada a partir dos anos 50 ocorre com a presença extraordinariamente ativa das estatais, com o IRI - Instituto per Ia Reconstruzione Industriale destacando-se como holding geral do sistema e exercendo papel nuclear no reaparelhamento das indústrias básicas e na modernização da economia.

Voltando à Inglaterra, vale lembrar que a privatização da British Telecom gerou insatisfações na coletividade no final de 1987 por causa da queda de qualidade dos serviços prestados, impondo ao governo inglês mais cautela nas privatizações seguintes. Em suma, estamos sugerindo que, mesmo no exterior, nem tudo são flores, como costuma ser apresentado cotidianamente, que o digam os sindicatos ingleses, as populações mais carentes e os imigrantes.

Além disso, a revisão da atuação empresarial pelo Estado é acompanhada de uma reestruturação nas políticas educacional e de emprego. Ou seja, não se tem a transferência pura e simples de ativos para o setor privado mas sim um reordenamento do papel do Estado dentro de uma articulação ampla das instituições públicas e privadas.

A privatização européia se desenvolve por meio de diversos caminhos. Apenas na Inglaterra foram catalogadas cerca de 22 estratégias. Não é exclusivamente uma venda a grupos econômicos privados. Os pequenos investidores e o mercado acionário exercem um papel importante, assim como existem regras claras de participação definidas pelos congressos, inclusive para o capital externo.

Em primeiro lugar é imprescindível que os sindicatos de trabalhadores e os partidos progressistas superem a atual posição defensiva em que se encontram no trato das estatais e da privatização.

O Estado que aí está e a crise financeira que trava a retomada do crescimento e impede o desempenho satisfatório das estatais foram delineados sem qualquer participação da classe trabalhadora.

Nesse sentido, enquanto a proposta de ruptura do Estado cartorial é para a classe dirigente um discurso novo e um meio para legitimar a transferência de um patrimônio sob controle do Estado para a iniciativa privada, para a classe trabalhadora a bandeira histórica da "desprivatização do Estado" tem um significado distinto, pois é parte de um projeto mais amplo.

A disjuntiva estatização/privatização deve ser superada. Há que pensar em alternativas para restituir ao Estado a capacidade reguladora e modernizadora que hoje não possui. E um disparate supor que a privatização a toque de caixa irá ampliar as condições para se construir uma sociedade moderna e a retomada do crescimento.

O desarme da armadilha financeira em que se meteu o setor público é o primeiro passo para um reordenamento do papel do Estado em um novo modelo de desenvolvimento e não o contrário, como querem os liberais. É perfeitamente possível pensar a desestatização sem a prevalência de uma política econômica ortodoxa. Entretanto, como fazer uma privatização se o governo hoje não possui qualquer espaço de manobra para aplicar até mesmo uma política convencional e não tem qualquer controle sobre a oferta monetária? E mais: se não consegue definir uma lei para regulamentar abusos econômicos e de proteção ao consumidor como existe em inúmeros outros países?

As estatais precisam recuperar a credibilidade pública. Para se redesenhar um novo projeto econômico, a presença delas é fundamental. A partir daí o passo seguinte é definir quais as empresas que deverão ficar sob o controle do Estado e quais devem ser transferidas para o setor privado. Tal definição será resultado de ampla discussão com trabalhadores envolvidos, sindicatos e entidades da sociedade civil. Os critérios para essa seleção devem considerar quais serão os setores estratégicos no novo modelo de desenvolvimento. Ou seja, implica conhecer os pré-requisitos em termos de inovações tecnológicas e novas formas de organização da produção na etapa atual do desenvolvimento capitalista. O novo momento da economia mundial coloca novas questões, a serem respondidas previamente, antes de se proceder à privatização. É preciso ter claro qual a posição que ocupamos e a inserção desejada nesse cenário. As estatais tiveram um papel no processo de acumulação até o fim dos anos 70, agora ele deverá ser outro.

Não se parte do princípio de que a empresa estatal é, por natureza, menos eficiente que a empresa privada, pois, como vimos, as causas de seus desequilíbrios residem em outra dimensão. Também não faz sentido transferir um monopólio do Estado para o setor privado. Em uma nova relação da sociedade civil com o Estado a ambigüidade estrutural da estatal deixará de ser empecilho ao delineamento de uma política econômica transparente. Por meio de um planejamento estratégico e com a participação ativa do corpo funcional na gestão empresarial, será possível traçar claros objetivos em termos de rentabilidade e ritmo de expansão.

Em nível geral do SPE, a holding a ser criada num governo democrático e popular passa a ser a instância principal de administração e planejamento. Com essa providência, torna-se viável obter uma ação coordenada dos diversos grupos de empresas e articulá-los com as políticas industrial, tecnológica e de emprego. Ou seja, visa-se com o novo esquema institucional compor uma ação sinérgica, fruto de uma articulação planejada dos diversos instrumentos de política econômica.

No cenário desenhado, as relações das estatais com o mercado são mais bem definidas e passam a ser fiscalizadas pela sociedade. As transações com fornecedores e clientes e a contratação de obras deixam de ser uma "ação entre amigos". É evidente que essa estratégia encontrará resistências por parte de grupos privados ou do próprio aparelho estatal. A revisão do corporativismo implicará realçar a importância do corpo funcional, de sua alta qualificação e profissionalismo, mas subordinado à idéia de que cada agência do Estado é uma agência pública e como tal deve ser objeto de controle da sociedade civil. Sobressaem-se nesse contexto as figuras do cidadão e do contribuinte mais do que a do usuário. Ou seja, entram em campo novos atores sociais e não apenas o empreiteiro, o empresário-cliente e o tecnocrata. Redefinem-se a ordem pública e a ordem privada.

As estatais a serem preservadas deverão ter credibilidade pública. Por sua vez, a venda de outras deve priorizar uma atomização da participação acionária por parte dos empregados da própria empresa e pequenos investidores. Pressupõe-se o estabelecimento de regras claras para as transações e para o mercado acionário. A propósito, entendemos que a sistemática de se estimar o valor de venda de um patrimônio com base em projeções de fluxo de caixa (como o BNDES utiliza, inclusive para o caso Mafersa) só é passível de consideração em um contexto de estabilização monetária e retomada do crescimento econômico.

Os recursos obtidos com a venda de empresas e por meio de uma privatização escalonada (venda de ativos em desuso) devem ser realocados em programas sociais ou investimentos de infra-estrutura, sem que isso corresponda a uma retirada da aplicação de recursos orçamentários.

Nesse cenário, elevações da transferência de fundos fiscais para as estatais só se justificam em condições muito especiais, definidas em lei e com a apreciação do Congresso. Da mesma forma, as estatais passam a ter espaços nítidos de ação empresarial, dentro do esquema capitaneado pela holding e articulado com a programação macroeconômica do setor público e com a política econômica em geral.

Fica claro que tal projeto não tem nada a ver com o receituário neoliberal e muito menos com propostas de liquidar empresas, via reconversão de investimentos, para se obter uma folga na administração financeira do setor público. Refutamos a idéia de que o mero fortalecimento do mercado será capaz de erguer uma nação. A alternativa aqui esboçada adequa-se a um novo modelo de desenvolvimento, no qual se articulam crescimento do PIB, distribuição de renda e controle da agressão ao meio ambiente.

Guilherme Narciso de Lacerda é mestre em economia pelo IPE/USP, doutorando do Instituto de Economia da Unicamp, professor da UFJF e membro de economistas do PT.

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