Mundo do Trabalho

A reforma agrária não é uma bandeira superada, como certas análises sócio-econômicas pretendem demonstrar. O seu caráter, no entanto, deve ser precisado neste novo período para que ela constitua verdadeiramente uma bandeira no seio do proletariado.

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A reforma agrária ainda é, e continuará sendo durante um período de tempo ainda imprevisível, o centro de qualquer pauta que proponha uma transformação estrutural, de caráter popular e democrático, na agricultura. Assim, entendo também que a tendência existente atualmente num setor da esquerda brasileira, no sentido de admitir que a reforma agrária está superada como bandeira de luta dos trabalhadores rurais, constitui a contrapartida - no setor agrário - de uma tendência que se pode denominar reformista, latente nas esquerdas e no movimento operário brasileiro atual. Com forte respaldo, deve-se registrar, na evolução dos acontecimentos internacionais no campo do socialismo. Esta concepção, se bem sucedida, aniquilaria o potencial revolucionário hoje latente nas lutas sociais agrárias, resultante de um longo período de acumulação de forças entre diferentes camadas de trabalhadores rurais, e destruiria a consciência anticapitalista já bastante desenvolvida. Mesmo nos meios mais combativos do movimento de luta pela reforma agrária esta discussão ganha força, sem que se torne clara, entretanto, a existência de concepções francamente antagônicas acerca do caráter da reforma agrária pela qual se luta.

A agricultura foi o setor da economia que mais cresceu durante a década de 80. No período 1980-88 o setor industrial cresceu aproximadamente 10%, enquanto a agricultura, no mesmo período, teve um crescimento de cerca de 30%. Portanto, embora seja evidente que a economia brasileira atravessou toda a década em crise, há cenários diferentes na indústria e na agricultura. O bons desempenho da agricultura confinou-se, evidentemente, aos estratos maiores, o que significa que o capitalismo continuou expandindo-se fortemente ali, e que o empresariado rural e agroindustrial fortaleceu-se ainda mais. Um dos indicadores deste fortalecimento, no caso da burguesia agrária, é o aumento da capacidade de autofinanciamento dos grandes fazendeiros, que foi constatada em diversas pesquisas realizadas durante a década. Setores em expansão mais acentuada foram o da soja, o tritícola (na, segunda metade da década), o cítrico e o sucro-alcooleiro.

O subsídio creditício foi sendo reduzido nas formulações anuais das políticas agrícolas. Entretanto, duas observações devem ser feitas:

1) Na realidade o governo continuou sendo o fornecedor principal dos recursos do crédito rural: suas taxas de furos continuaram abaixo das taxas de mercado e os principais beneficiários do crédito oficial continuaram sendo os grandes produtores e o setor agroindustrial;

2) O volume de subsídios continuou elevado, mas a forma da criação e do repasse dos subsídios mudou. Eles não figuram na política creditícia anunciada oficialmente antes do plantio mas são repassados durante a safra, a pretexto de circunstâncias conjunturais, dependendo de um jogo de pressões desencadeado pelo empresariado rural e agroindustrial, em conluio com os governos federal e estaduais. Assim, os subsídios estão apenas aparentemente reduzidos, mas na realidade eles têm sido muito elevados. Entretanto, o fato de não estarem mais contemplados previamente no plano creditício anual, e de dependerem dos lobbies empresariais, faz com que o seu acesso esteja ainda mais restrito a estes setores e distante das possibilidades de pequenos e médios agricultores. Desse modo, a sistemática atual de concessão de subsídios reforça o processo de concentração e centralização de capitais e da terra na agricultura.

Nestas condições, o desenvolvimento capitalista da agricultura ganhou grande impulso durante a década de 80, não somente em extensão, mas principalmente em profundidade. Isto se refletiu na formação dos contornos cada vez mais nítidos de uma nova fração da classe dominante no meio rural, com vocação hegemônica: a grande burguesia agrária articulada ao setor agroindustrial, que também fortaleceu e consolidou suas estruturas. Não só economicamente, mas também politicamente. Reflexo disto é a formação de duas entidades - a UDR (União Democrática Ruralista) e a FAAB (Frente Ampla Agropecuária Brasileira) - que desempenharam importante papel na identificação, explicitação e unificação dos interesses de classe - políticos e econômicos - das classes dominantes agrárias na nova conjuntura. Coube à UDR promover a formulação - ou reformulação atualizada - de uma ideologia unificadora dos interesses do latifúndio tradicional em processo de modernização e da nova burguesia agrária e agroindustrial, e à FAAB unificar as classes patronais rurais em torno de um ideário econômico comum, cujas pedras de toque foram o combate à reforma agrária e uma versão agrária do neoliberalismo, expresso no projeto de Lei Agrícola da FAAB.

Estes movimentos unificadores no campo empresarial, sem dúvida facilitados pela prosperidade econômica, contrastam com o que se passou durante este período, no campo oposto, isto é, entre os pequenos agricultores e trabalhadores rurais. Primeiramente no campo econômico. Enquanto a grande burguesia agrária se expande, os pequenos agricultores permanecem em estado de crise estrutural, decorrente justamente do desenvolvimento capitalista em curso, da qual só podem sair através de uma reforma agrária ou fugindo para as cidades - um terceiro caminho seria o de se conformarem com o recebimento de auxílios oficiais meramente paliativos. No campo político, dominados ideologicamente pelo discurso conservador do empresariado rural e da UDR, impressionados pela aparente eficácia da agressividade política destes (cercos de bancos, desfiles de tratores etc), e incrédulos ou mal informados em relação à CUT, ao MST (Movimento dos Sem-Terra) e à própria reforma agrária, tendem a cair em desânimo e confusão, tornando-se presa fácil da demagogia de direita.

Talvez por isso a estrutura conservadora do sindicalismo de trabalhadores rurais, ligado à Contag (Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura), continue tão forte, e a expansão dos STRs (Sindicatos de Trabalhadores Rurais), ligados à CUT se dê tão lentamente. Assim sendo, o movimento de base, ao invés de tender à unificação, desdobra-se em três ramos:

1) O da luta pela reforma agrária, conduzida pelo MST, que se fortalece progressiva e visivelmente;

2) O do sindicalismo, dividido entre a CUT e a Contag, que se subdivide progressivamente em dois sub-ramos: o representativo das camadas de pequenos agricultores autônomos ou semi-autônomos (isto é, os pequenos proprietários e não-proprietários que continuam cultivando as suas terras e que, em medida maior ou menor, já se dedicam ao trabalho assalariado) e o representativo dos trabalhadores rurais assalariados, como é o caso das zonas canavieiras, que está dando origem ao surgimento dos sindicatos de assalariados rurais.

A nova estrutura das classes agrárias

A heterogeneidade organizativa mencionada acima decorre do processo econômico e social que está em curso na agricultura brasileira e particularmente da nova estrutura de classes que se forma concomitantemente com a constituição da estrutura econômica capitalista, pois o desenvolvimento do capitalismo na agricultura consiste basicamente no desenvolvimento de relações sociais de produção, ou seja, da estrutura de classes propriamente capitalista.

Assim, o rápido e pujante desenvolvimento capitalista da agricultura traduz-se, por um lado, na expansão da burguesia agrária, composta de "novos" burgueses e de antigos latifundiários aburguesados, basicamente detentores de estabelecimentos com mais de 100 hectares de área total1.No interior desta classe está consolidando-se, como camada dirigente da nova agricultura capitalista, um segmento composto por grandes empresários articulados ao setor agroindustrial, que podemos denominar de grande burguesia agrária. Em contrapartida, verifica-se também um processo forte e rápido de empobrecimento e proletarização dos pequenos agricultores, que constituem aproximadamente 60% do número total de agricultores arrolados pelos censos agropecuários. Como conseqüência, altera-se o caráter das relações de produção: amplia-se o regime do salário e portanto o contingente de assalariados. Os pequenos agricultores autônomos perdem autonomia e vão convertendo-se em semi-assalariados2.

Assim, a estrutura de classes da agricultura brasileira adquire uma configuração cada vez mais tipicamente capitalista, em cujo topo encontra-se o que legitimamente podemos denominar bloco dominante da burguesia agrária, constituído por cerca de 10% do número total de agricultores (possuidores de mais de 100 hectares de área total), e cuja camada dirigente é formada pelos empresários de maior envergadura articulada estreitamente ao setor agroindustrial.

Na base desta estrutura encontra-se um numeroso contingente de trabalhadores que fornecem a força de trabalho cuja exploração alimenta o impetuoso processo de acumulação de capitais que caracteriza a agricultura brasileira. Esta base é, entretanto, heterogênea, estando dividida em dois grandes segmentos ou classes: de um lado estão os milhões de pequenos agricultores semi-autônomos, tanto os não-proprietários (arrendatários, parceiros e posseiros), que sempre constituíram, em sua maioria, mera força de trabalho dos grandes proprietários rurais, aos quais pagam rendas em diversas formas e prestam trabalho assalariado, como também os proprietários de pequenas áreas; e de outro lado estão os trabalhadores que já são apenas assalariados, sejam permanentes, temporários, diaristas, bóias-frias etc.

Entre estes blocos polares de classes, há um terceiro de aproximadamente 30% do número total de agricultores, composto por uma primeira camada melhor situada economicamente, que podemos denominar pequena-burguesia (são os agricultores aptos a se conduzirem empresarialmente, investindo seus pequenos recursos com o objetivo de obter eventuais lucros, embora modestos. Ou seja, são os capitalistas pequenos ou pequenos empresários da agricultura); e uma outra camada, maior que a anterior, denominada "produtor simples de mercadorias", que luta desesperadamente contra a proletarização, da qual não conseguirá escapar. Este bloco intermediário é que constitui a base de diversas versões, que pela sua natureza podem ser denominadas pequeno-burguesas, que idealizam a "pequena produção" na agricultura, em abstrato; e de teorias acadêmicas sobre a "produção familiar" indestrutível, que equivocadamente tomam como modelo uma forma em extinção e deixam de lado as formas principais e a contradição estabelecidas entre elas.

Este esboço da estrutura das classes agrárias não tem o objetivo de apresentar uma descrição das diversas classes e frações de classes existentes na agricultura. A sua finalidade principal é apontar para o fato de que, com o desenvolvimento do capitalismo no campo, forma-se uma nova estrutura, baseada em novas relações de produção que têm como fundamento o trabalho assalariado. Nestas condições, o desenvolvimento da agricultura passa gradualmente a ser comandado pelo processo de acumulação de capital, alimentado pela produção e apropriação de mais-valia. Ou seja, a agricultura passa a ser movida pelos investimentos a partir da mais-valia acumulada.

Assim, o que se deseja ressaltar é que o capitalismo e o trabalhador assalariado são os integrantes das duas classes que devem passar a constituir, gradualmente, os pólos principais das lutas sociais agrárias.

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Seria um erro se a análise se concentrasse nas particularidades das classes intermediárias ainda existentes, apesar da importância relativa que possam ter, ao invés de se concentrar nas classes polares em formação. Isto não quer dizer que estas classes intermediárias devam ser desprezadas nas análises de conjuntura e nas diretrizes de atuação política. Elas têm muitas vezes um papel fundamental nas conjunturas de curto prazo atuais. Mesmo assim, vale lembrar que a classe intermediária mais importante, tanto numérica quanto politicamente, não é a dos camponeses ou da pequena-burguesia, mas a dos semi-assalariados (que também chamei, acima, alternativamente, de semi-autônomos), cuja diferenciação em frações ou camadas deveria, esta sim, ser estudada com o maior detalhe possível.

A estrutura de classes retratada acima mostra que a agricultura brasileira está ainda num estágio de transição, já percorrido por outros países durante o desenvolvimento capitalista. Este estágio de transição se caracteriza pela existência de formas de organização econômicas diferenciadas; diferenças estas que devem ser levadas em conta nas lutas dos trabalhadores em seu conjunto. Uma importante implicação desta situação é de que há não apenas formas econômicas antigas (como os pequenos agricultores autônomos) ainda existentes, mas há também formas de manifestação ideológica antigas (ou seja, que correspondem às formas econômicas antigas), que traduzem as aspirações e a visão de mundo das camadas de produtores em processo de decomposição. Pode-se dizer que no interior do movimento sindical de trabalhadores rurais e dos sem-terra assumem ainda importância decisiva as reivindicações destas camadas "antigas", particularmente dos pequenos agricultores autônomos e semi-autônomos. Em alguns casos elas podem ser até mesmo predominantes, sem entretanto constituírem um obstáculo ao desenvolvimento das lutas agrárias. Obstáculo maior é deixar de reconhecer estas diferenças e as especificidades das diversas reivindicações. Assim, a reforma agrária é uma reivindicação revolucionária dos pequenos produtores semi-autônomos, predominante numa versão ideológica que se pode considerar antiga, pois o seu objetivo principal é expropriar os latifundiários para obter terra própria em caráter individual, a fim de se reproduzirem os pequenos agricultores autônomos. Por outro lado, estes tipos de agricultores também lutam por reivindicações reformistas, aquelas que almejam obter modificações nas políticas agrícolas oficiais, e que consideram ingenuamente, por vezes, capazes de reverter o processo de proletarização em curso. Tais reivindicações são importantes motivadores da capacidade de luta dos pequenos agricultores, ao mesmo tempo que permitem acumular forças e elevar o seu nível de consciência política, desde que não sejam encaradas como objetivos centrais, mas inseridas numa perspectiva de luta por transformações estruturais.

Todavia, mesmo sendo estas reivindicações predominantes, isto não quer dizer que sejam as únicas existentes no universo social dos pequenos agricultores e trabalhadores rurais. O surgimento e expansão da nova classe dos trabalhadores assalariados dá lugar também ao surgimento de novos tipos de reivindicações, particularmente reclamações por direitos trabalhistas idênticos àqueles de que gozam os trabalhadores urbanos, como por exemplo melhores salários, férias, aposentadoria etc. A literatura econômica e sociológica recente sobre a agricultura brasileira tem dado muito destaque ao surgimento destas reivindicações, consideradas importantes inovações políticas no meio rural. Argumenta-se que o surgimento delas implica a superação da reivindicação pela reforma agrária, que não despertaria o interesse dos assalariados rurais. Entretanto, isto é apenas uma meia-verdade - por um lado reflete o fato verdadeiro de que uma nova classe faz emergir aspirações novas. Por outro, porém, é inadmissível esquecer que as reivindicações por direitos trabalhistas são apenas as reivindicações reformistas da nova classe dos assalariados rurais. Seria um erro supor que esta não venha a desenvolver reivindicações revolucionárias; elas fatalmente surgirão com o desenvolvimento da consciência de classe deste novo proletariado. A principal destas demandas é a reivindicação histórica do proletariado pela socialização dos meios de produção e a implantação do socialismo. Na agricultura, a socialização dos meios de produção significa a expropriação dos latifundiários e a transformação das suas propriedades em propriedade social gerida pelo Estado. Ora, isto é o mesmo que a reforma agrária reivindicada pelos agricultores autônomos, no que diz respeito à expropriação dos latifundiários, diferenciando-se porém pelo fato de que ao proletariado rural não deveria interessar, teoricamente, a subdivisão do latifúndio e a criação de pequenas propriedades individuais, mas a sua conversão imediata em propriedade e exploração de caráter coletivo. Finalmente, é necessário lembrar que o "surgimento" das reivindicações trabalhistas não significa que elas se tomem imediatamente dominantes.

Verifica-se, assim, que a transformação da estrutura de classes da agricultura e a expansão do trabalho assalariado não implicam, como alguns imaginam, na imediata extinção das classes dos pequenos agricultores semi-autônomos nem o abandono da reivindicação revolucionária que é a reforma agrária, mas implicam na alteração do caráter da reforma agrária. O que se constata, portanto, é que a nova classe explorada - o proletariado rural - tem formas diferentes e próprias de reivindicações reformistas e revolucionárias. Seria um equívoco, portanto, supor que a inovação ideológica promovida por esta classe esgota-se no surgimento de reivindicações trabalhistas. Entretanto, a realidade agrária atual nos mostra que a reivindicação da reforma agrária, na sua versão proletária - socialização imediata da terra - não traduz (hoje) a idéia dominante de reforma agrária.

Na realidade, ela nem sequer existe nas lutas sociais agrárias de hoje no Brasil. As reivindicações trabalhistas também não constituem as motivações dominantes das lutas sociais agrárias. Ao conteúdo, é a reivindicação da reforma agrária na sua versão antiga, correspondente à aspiração dos pequenos agricultores, que predomina e contagia uma considerável parcela do proletariado rural. Isto tem diversas razões, algumas das quais podem ser alinhavadas. A primeira é o fato de que a ideologia da propriedade individual autônoma está profundamente arraigada pela tradição e pelo domínio ideológico da burguesia. A segunda é o fato de que o proletariado rural é muito recente e apenas começa a se identificar como classe, o que significa que ainda está ligado, através de inúmeros laços, à sua matriz, que é a classe dos pequenos agricultores semi-autônomos; em terceiro lugar, a reivindicação pela socialização dos meios de produção ainda não está difundida sequer no meio do proletariado industrial mais politizado, o que indica um sério atraso no processo de amadurecimento político-ideológico das classes trabalhadoras no Brasil. Por último, mas não menos importante, há que se ressaltar que os assalariados rurais puros não são predominantes em termos numéricos, e não se apresentam geograficamente concentrados de modo minimamente estável.

Assim, o que a realidade atual nos mostra é que a reivindicação da reforma agrária que predomina é a versão camponesa, que aqui denomino antiga. Mostra-nos também que esta predominância deve-se à superioridade numérica do produtor de tipo camponês em decadência, e à superioridade ideológica do ideal burguês de propriedade privada dos meios de produção, em particular da terra, no nosso caso. Ela deve-se também, por outro lado, à insipiência do proletariado rural em formação, expressa na sua inferioridade numérica, na sua imaturidade ideológica e na sua dispersão geográfica. Em suma, trata-se de uma situação de transição típica.

Uma interpretação corrente apressa-se em decretar a superação da reivindicação revolucionária da reforma agrária, na sua versão camponesa, pelas reivindicações reformistas por direitos trabalhistas, que representariam a chegada da "modernidade" ao meio rural brasileiro, como se a noção do moderno excluísse qualquer perspectiva revolucionária. Alega esta linha de interpretação que a reforma agrária perde qualquer caráter revolucionário devido ao fato do capitalismo já estar plenamente estabelecido na agricultura brasileira. Esta alegação merece um comentário mais extenso, uma vez que ela se apóia em uma constatação teórica correta, mas gera uma conclusão política incorreta.

A reivindicação dos pequenos agricultores semi-autônomos pela terra só pode adquirir caráter revolucionário na medida em que se articule a um projeto realista e viável de transformação estrutural da sociedade. Este projeto hoje só pode ser um projeto socialista. Sob o capitalismo uma reforma agrária com significado revolucionário é implausível. Sua função de revolucionar uma parte da estrutura econômica-social a fim de garantir que o capitalismo seja implantado já foi superada. Esta é uma constatação teoricamente consistente. Para compreender esta questão é conveniente relembrar a proposição de Lenin de que o capitalismo pode desenvolver-se, na agricultura, por duas vias: a da revolução agrária, que destrói de um golpe as formas antigas de propriedade da terra e a redistribui em pequenos lotes privados aos pequenos camponeses; e a da via que corresponde à paulatina modernização técnico-econômica e ao "aburguesamento" político-ideológico das grandes unidades de produção e de seus proprietários, respectivamente, integrantes das classes dominantes antigas.

Ambas são vias para a reformulação do modo de produção na agricultura. Na via americana é a classe dos pequenos agricultores autônomos que, após expropriados os grandes proprietários antigos, conduz o processo e engendra a burguesia agrária; na via prussiana quem conduz o processo é a classe proprietária antiga - senhores feudais, coronéis etc. -, que se converte aos poucos em burguesia agrária. Em ambos realiza-se uma alteração radical nas relações sociais de produção, no regime de propriedade e na estrutura de classes que é o sentido real da revolução social. Isto feito, não há mais o que revolucionar em termos capitalistas. Nenhuma classe pode apresentar-se como classe revolucionária no interior do capitalismo, nem mesmo a classe dos pequenos agricultores semi-autônomos. Só o próprio capitalismo é que pode ser revolucionado, ou seja, substituído por outra forma de organização sócio-econômica que é o socialismo.

A reivindicação da reforma agrária tem, atualmente, um novo caráter. Ela somente adquire uma expressão revolucionária se articulada com um projeto amplo de mudança estrutural, na direção do socialismo. Mas o seu caráter revolucionário não lhe é conferido pelo fato de propor a socialização imediata da terra, mas pelo fato de inserir-se em um projeto cujo conteúdo é anticapitalista. O que torna isto possível é que se por um lado a situação concreta da classe dos pequenos agricultores semi-autônomos não permite o desenvolvimento de uma consciência socialista, por outro ela justifica o desenvolvimento de uma postura anticapitalista, na medida em que a perspectiva desta classe, sob o capitalismo, é a proletarização inevitável. Por esta razão é que a extensa classe dos pequenos agricultores semi-autônomos pode articular-se, politicamente, às lutas dos trabalhadores assalariados por um novo projeto de sociedade.

A história dos países socialistas revela que a predominância da reivindicação da reforma agrária na sua versão camponesa (ou antiga) não constitui obstáculo à transformação socialista da agricultura. O que esta história mostra é que expropriação dos latifúndios, que constitui o cerne da reforma agrária, é também a questão fundamental na eventual transição socialista, pois através dela a terra e os meios de produção da agricultura passam ao controle dos pequenos agricultores e trabalhadores rurais. As formas de propriedade e de organização da produção a serem implantadas posteriormente dependem do grau de desenvolvimento da consciência socialista do movimento dos trabalhadores rurais e urbanos. À medida que esta se desenvolve e se torna dominantes instituição da produção coletiva - ou em cooperação - na agricultura não é impedida pela redistribuição das terras em caráter individual.

Na realidade, porém, a despeito da predominância atual desta versão da reforma agrária, as mudanças que estão se operando na estrutura de classes agrárias começam a se refletir nas reivindicações dos movimentos organizados, no sentido de produzir uma pauta que combine as reivindicações das duas classes básicas da força de trabalho rural: os assalariados e os pequenos agricultores semi-autônomos (ou semi-assalariados). Assim, o MST não se limita a exigir a redistribuição da terra em lotes privados individuais, mas admite as formas de propriedade comunitária, condominiais e mesmo coletivas, embora não proponha a socialização da terra. Por outro lado, a curta experiência nos assentamentos realizados desde 1983 sob o impacto das lutas dos sem-terra já conduziu ao reconhecimento explícito da importância da cooperação dos pequenos agricultores na produção, levando à proposição geral sobre a necessidade da associação imediata dos pequenos agricultores assentados. É de se esperar que, gradualmente, se desenvolvam proposições mais claras destinadas a contemplar a manutenção da integridade de alguns tipos de grandes empreendimento agrários, talvez convertidos em propriedade cooperativa ou mesmo estatal sob a gestão combinada dos coletivos de trabalhadores e do Estado.

Finalmente, é essencial, para o sucesso da luta pela reforma agrária (por sua vez, indispensável ao sucesso da luta pelo socialismo), que duas coisas ocorram: em primeiro lugar, que o movimento dos trabalhadores rurais e pequenos agricultores não sucumba às análises sócio-econômicas que procuram demonstrar, equivocadamente, que a reivindicação da reforma agrária está superada. Ela constitui o caminho revolucionário na agricultura e traduz tanto as aspirações de sobrevivência dos pequenos agricultores semi-autônomos quanto a inspiração histórica pelo socialismo que deverá desenvolver-se no proletariado rural. Em segundo lugar, é preciso que se desenvolva no interior do movimento sindical do proletariado industrial, mais rapidamente, a consciência socialista e as reivindicações visando o controle crescente dos meios de produção pelo coletivo dos trabalhadores e a socialização plena dos meios de produção em geral.

Claus Germer é membro do Diretório Nacional do PT e presidente do PT do Panamá.

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