Mundo do Trabalho

O pacote agrícola baixado pelo governo Collor reforça os mecanismos de concentração do capital no campo, marginalizando ainda mais os pequenos agricultores. Para completar, a reforma agrária permanece como uma daquelas boas intenções de que o inferno está cheio.

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O modelo de desenvolvimento capitalista predominante no Brasil provocou, nos últimos decênios, mudanças significativas tanto na distribuição populacional como no direcionamento da produção agrícola.

A partir dos anos 50 intensificaram-se os movimentos migratórios no sentido campo-cidade. Em 1950, cerca de 70% da população brasileira vivia no meio rural. Três décadas depois este percentual caiu para menos de 30%. A magnitude do processo migratório fez com que surgissem nas periferias das grandes e médias cidades enormes reservas de mão-de-obra desqualificada e subempregada, contribuindo para o agravamento dos problemas sociais e o crescimento dos bolsões de pobreza e miséria.

Ao longo dessas décadas as políticas governamentais priorizaram a produção agrícola para o mercado externo e para o abastecimento do setor industrial, com o objetivo de se obter superávits para o pagamento da dívida externa. Para implementar esse modelo de produção foram dados incentivos, subsídios e isenção de impostos, e a base produtiva passou a ser orientada pelos princípios da revolução verde, com a utilização massiva de insumos modernos (adubos, agrotóxicos, máquinas, implementos etc.). Além disso, a expansão da fronteira agrícola favoreceu ainda mais a penetração do capitalismo no campo. O auge do processo foi em meados da década de 70, com o binômio trigo/soja, quando a concentração da posse, da propriedade da terra e da renda no meio rural aumentou.

A política agrícola, por ter um caráter setorial, esteve sujeita às orientações macroeconômicas nos sucessivos governos desse período. Na década de 80, principalmente, ela voltou-se para o combate à inflação e para o ajuste externo, afetando a estrutura de produção, comercialização e preços, aumentando a concentração fundiária e influenciando significativamente a formação e organização das classes sociais no campo.

Esse tipo de desenvolvimento agrícola começou a dar sinais de esgotamento e passa agora a se adequar aos objetivos globais do programa neoliberal do governo Collor, que, apesar do discurso de modernização do campo, na verdade representa a continuidade do velho modelo.

A "nova" política

O pacote agrícola lançado recentemente divide-se em duas partes, com alcances bem diferenciados.

A primeira parte define basicamente a política de crédito rural para a safra de 1990/91, constituindo-se no atendimento do governo às reivindicações do grande empresariado rural e agroindustrial, reivindicações amplamente divulgadas pela imprensa nos últimos meses. Essa política é elitista e mantém injustificáveis favores a segmentos fortemente capitalizados do empresariado do campo. Em contrapartida, ignora quase por completo as necessidades imediatas da camada majoritária de pequenos e médios agricultores.

A segunda parte do pacote está consubstanciada nas diretrizes da política econômica para a agricultura, e contém poucas medidas concretas ou de efeito imediato. Porém reveste-se de grande importância por expressar as concepções básicas que nortearão todas as ações nessa área. Segundo o governo, com esse pacote pretende-se modernizar o campo por meio do fortalecimento do setor privado, principalmente das agroindústrias, sintonizando seus objetivos com o projeto neoliberal em implantação no país.

A fim de que aconteça esse reordenamento do capital no campo, a mão-de-obra deverá assumir um caráter flutuante e o seu valor permanecer muito baixo. Em alguns setores específicos, como no caso das agroindústrias, deverá ocorrer a incorporação de um contingente significativo de pequenos agricultores, e também terá de ser fortalecida a produção semi-integrada (soja, algodão, cana etc.) controlada por grandes grupos econômicos, que mantêm o mercado fortemente oligopolizado.

Um outro componente será a substituição da produção agrícola horizontalizada (embasada na expansão de área) pela produção verticalizada, que implica uma utilização mais intensiva da terra e dos fatores de produção para atender aos objetivos da política de comércio exterior. Ou seja, será beneficiado, mais uma vez, o segmento dos grandes produtores, pois os produtos brasileiros deverão ser mais competitivos em termos de preço e qualidade. Na melhor das hipóteses, isso significa uma maior concentração da terra e dos meios de produção por parte das grandes empresas rurais e agroindustriais, deixando a pequena produção à beira da destruição.

É importante ressaltar que esse pacote também atende de forma global às propostas de lei agrícola da Frente Ampla da Agropecuária Brasileira (Faab), liderada pelas grandes empresas cooperativas e pelos grandes empresários rurais, projeto de lei que foi derrotado na Comissão Especial de Agricultura da Câmara dos Deputados.

Os objetivos do Pacote

O pacote contém medidas de curto, médio e longo prazo, que certamente contribuirão para agravar ainda mais a situação atual dos trabalhadores rurais e dos pequenos agricultores, revelando uma proposta meramente produtivista e voltada às novas exigências do mercado externo. Mas isso não significa que as distorções vão ser eliminadas.

Peguemos, por exemplo, a política de regionalização. Tal como foi concebida, ela poderá desestimular a produção, principalmente no Norte e Nordeste. Sabe-se que nessas regiões o empresariado rural exerce grande influência e que nos últimos tempos toda a política agrícola o favoreceu, dando-lhe enormes subsídios. É bem provável que essa situação permaneça e o governo abra linhas de crédito e de investimentos a curto e médio prazo para esse segmento, a exemplo da reativação do Proálcool e da implantação de programas de irrigação.

Para alcançar os objetivos do pacote, as estratégias do governo estão concentradas na integrarão dos diversos ministérios com o setor privado, na compatibilização com as propostas de política econômica num único eixo, voltado para a competitividade internacional, e para a "modernização" tecnológica, além do estímulo à implantação dos Complexos Agroindustriais (Cais). Para tanto, o papel do governo se restringirá a avalizar o livre-mercado, garantindo maior presença do setor privado no acesso aos créditos, preços mínimos etc.

Entre as medidas adotadas, destacam-se:

Preços mínimos - a política de garantia de preços mínimos (PGPM) passou de vinte para dez produtos, sendo regionalizada para três: arroz de sequeiro, milho e soja. Contemplando a proposta de internacionalização da economia, os preços foram reajustados com base nas cotações do mercado internacional e não de acordo com o custo de produção dos agricultores. Ao contrário do que diz o governo, que afirma ter adotado um reajuste acima da inflação, os preços mínimos vêm caindo a cada safra nos últimos dez anos. Estudos realizados pelo Departamento Sindical de Estudos Rurais (Deser) comprovam esse fato. Se compararmos os preços atuais aos preços fixados em agosto de 1989, observamos uma queda de 20,4% para o feijão e 14,1% para o milho, somente nas regiões Sul e Sudeste. Pode-se afirmar que as quedas para as demais regiões do país são maiores.

Recursos para o custeio agrícola - o governo anunciou que não faltarão recursos para a safra, sendo alocados aproximadamente 310 bilhões de cruzeiros, dos quais 70% serão ofertados pelo Banco do Brasil. Conforme declarações do presidente do banco, menos da metade desses recursos estão disponíveis, pois as dívidas da safra passada ainda não foram saldadas. Pelos critérios adotados, parcela significativa desse montante deverá se concentrar nas mãos de um pequeno número de grandes produtores.

Redução das alíquotas do imposto de importação - foram reduzidas em média 50% as alíquotas para fertilizantes, agrotóxicos, máquinas e implementos, situando-se para a maioria dos produtos entre 20 e 25%. A exceção é para os tratores, que permanecem com alíquotas de 40%. Essa medida está conjugada às propostas de política industrial no sentido de forçar a competitividade dos produtos, através da modernização das forças produtivas, para se contrapor aos concorrentes no mercado internacional. Seus efeitos se expressarão a médio prazo.

Reclassificação dos produtores rurais - para a obtenção do crédito rural, o governo refez a classificação dos agricultores de acordo com os níveis de renda anual. Essa foi uma das medidas que mais beneficiou os grandes produtores porque aumentou seu acesso ao crédito, cujo montante maior deverá favorecer ainda mais um pequeno número de produtores. Sem dúvida, essa é a face mais perversa do plano "modernizador".

Redução das taxas de juros - ao contrário do que anunciou o governo, apenas uma terça parte dos juros do crédito rural foi reduzida, passando de 12% para 9%. Essa é uma medida que atende a uma antiga reivindicação dos empresários rurais, os grandes beneficiados por apresentarem melhores cadastros para fins de empréstimos. Com isso, os pequenos agricultores dificilmente terão acesso à parcela dos recursos com taxas de juros menores.

Além disso, estão previstas a redução da taxa de equalização do açúcar e do álcool e a prorrogação por mais de um ano da isenção do imposto de exportação do cacau, ficando indefinida a questão do seguro rural.

É importante observar que no pacote não há nenhuma regra de intervenção do Estado no mercado e para a formação dos estoques reguladores, o que comprova a privatização do setor de abastecimento alimentar. Além disso, no extenso documento das diretrizes de política agrícola, o trabalhador rural é citado num pequeno parágrafo, apenas como "fator" da produção empresarial, propondo-se o governo a propiciar a "formação de um especializado e qualificado operário agrícola". Também os pequenos e médios agricultores são mencionados marginalmente, em duas ou três oportunidades, sem merecer, entretanto, qualquer medida ou mesmo manifestação explícita de apoio.

Os objetivos e os beneficiários da política agrícola serão os mesmos das últimas décadas. O objetivo central é reforçar os mecanismos de concentração do capital no campo, através da substituição das formas tradicionais (subsídios e incentivos) por novas formas (reclassificação dos produtores etc.). Oficialmente, o empresariado rural passará a determinar a pauta e dirigir as regras de política agrícola. O pacote fortalece o setor agroindustrial, a quem caberá o papel de responder às demandas do mercado externo, que estão se alterando em função da nova ordem econômica internacional. Haverá uma tendência ainda maior à concentração da terra pelo favorecimento dos setores mais capitalizados, com continuidade do êxodo e do aumento do subemprego no meio rural. Deverá se intensificar a marginalização dos pequenos agricultores, tanto na produção como no mercado, em função da não-existência de um tratamento diferenciado para esse segmento. Por fim, a realidade agrícola nacional, ao apresentar uma estrutura extremamente desigual, exige uma política agrícola diferenciada que beneficie o conjunto da população do meio rural, formada em sua maioria por pequenos agricultores, sem-terra e assalariados.

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Política Agrária

Na verdade, uma política agrícola adequada passa necessariamente pela reforma agrária.

O governo Sarney, no seu início, lançou o 1º Plano Nacional de Reforma Agrária, que previa o assentamento de 1,4 milhão de famílias no prazo de cinco anos. Ao final de seu mandato, menos de 100 mil lotes foram distribuídos. No processo constituinte, a reforma agrária provocou um dos maiores debates entre as forças conservadoras e progressistas, resultando numa proposta de lei mais atrasada que o próprio Estatuto da Terra do regime militar.

Frente a esse quadro, o eixo de lutas dos movimentos sociais deslocou-se do campo institucional para o campo da mobilização popular, onde houve o enfrentamento concreto da questão agrária, com destaque para a participação do Movimento dos Sem-Terra. Nesse enfrentamento. os conflitos aumentaram devido à violência dos latifundiários e à omissão e conivência do governo, causando centenas de mortes de lideranças de trabalhadores rurais.

Ao assumir, o governo Collor definiu como meta o assentamento de 500 mil famílias até 1994. Porém, se levarmos em conta que atualmente existem mais de 3 milhões de famílias sem terra, veremos que ela é muito tímida e dificilmente será alcançada.

Também o objetivo de assentar 50 mil famílias ainda em 1990 provavelmente não será atingido, e o governo já admite o início da implementação do seu programa de reforma agrária somente a partir do segundo semestre de 1991. Até lá, todas as ações governamentais se limitarão à revisão dos processos de desapropriação do governo anterior. Entretanto, é necessário precisar melhor quais são as verdadeiras propostas do governo para essa questão.

A primeira proposta prevê a parceria agrícola, com a participação da iniciativa privada no gerenciamento dos recursos. É importante ressaltar que esta proposta é semelhante às defendidas pela UDR durante o governo Sarney. Seu pano de fundo é a intensificação do capital no campo, através da tecnificação de novas terras, que seriam valorizadas e integradas aos complexos agroindustriais, esvaziando assim a luta pela reforma agrária.

O decreto ministerial do mês de julho, que oficializa a política de parceria agrícola, confirma isso ao definir como objetivos gerais a incorporação de novas áreas ao processo produtivo e aproveitamento racional das terras, visando o aumento da produção e o estímulo à adoção de novas tecnologias. Desse modo, os proprietários obteriam rendimentos compatíveis com seus investimentos e recuperariam suas terras, e aos parceiros e arrendatários, ficaria resguardada a possibilidade de se tornarem futuros proprietários, caso consigam acumular recursos para o programa.

Na realidade, o objetivo central é capitalizar ainda mais os grandes proprietários rurais, pois os favorecidos por esse programa são os agropecuaristas que possuem áreas aptas e uma infra-estrutura adequada.

A segunda proposta, de se realizar assentamentos com a participação do capital privado, é, no mínimo, um grande equívoco. Durante os governos militares esse processo ocorreu sob a forma de colonização agrícola. Os resultados são conhecidos por todos.

No início da década de 90, é necessário colocar a bandeira da reforma agrária no centro das reivindicações do conjunto dos trabalhadores, devido não só ao seu papel estratégico no processo de transformação global da sociedade, mas também porque a sua conquista representará o rompimento das estruturas mais arcaicas ainda presentes no meio rural brasileiro.

Lauro Francisco Mattei é engenheiro agrônomo e técnico do Desep (Departamento de Estudos Sócioeconômicos e Políticos da CUT).

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