Política

Alguns companheiros que debateram a crise do socialismo nas páginas de Teoria & Debate correm o risco de ficar para trás. Não percebem que no Leste Europeu houve o fracasso de uma certa tradição, cujos pressupostos estão nos clássicos, e que a busca do "verdadeiro marxismo" será sempre um ato autoritário.

[nextpage title="p1" ]

Em 1989 um furacão passou pelos países do chamado socialismo real. Dirigentes e partidos que há décadas se encontravam à frente de poderosos Estados desmoronaram como castelos de areia. A força deste furacão foi tão grande que até hoje a maior parte da esquerda está perplexa e tem dificuldades para emitir um juízo a respeito. Uma coisa, porém, é certa: enquanto a direita alardeia o fim do socialismo, a esquerda não pode ficar numa postura ingênua de defender o indefensável, e nem tampouco se submeter passivamente ao rolo compressor ideológico da burguesia, sob o risco de seu discurso ficar na contramão da história.

Vejamos quais são, dentro do PT, as principais visões sobre a questão.

A corrente O Trabalho (em tese ao Diretório Municipal de Florianópolis) afirma: "As revoluções que derrubaram e estremeceram os governos e regimes políticos dessa região representam um passo a frente na luta pelo socialismo. (... ) Hoje, no Leste, os trabalhadores estão construindo um novo poder operário e democrático, como se vê nos comitês e conselhos democraticamente eleitos que cobrem a Romênia, por exemplo. É evidente que o processo está longe de ter-se encerrado, mas a tendência principal é essa."

A avaliação da Convergência Socialista é semelhante a de O Trabalho. A sua tese para o Encontro do PT de Florianópolis afirma: "Assim, está reacendendo a chama do socialismo com liberdade, da autodeterminação dos trabalhadores. Ali está hoje o pólo mais avançado das lutas revolucionárias do mundo." Falando dos atuais governos do Leste, diz a tese: "Não merecem nenhuma confiança e apoio. Mas as mesmas multidões que se levantaram contra Ceausescu, Honecker, Jivkov e Husak, se voltarão contra estes frágeis governos que ocuparam o vazio político." E falando sobre a atual situação da luta pelo socialismo, a Convergência diz que " ... nunca a situação mundial foi tão favorável, em particular no Leste Europeu." Só fica difícil entender quais os dados que justificam tanto otimismo.

Esta interpretação do trotskismo sobre os acontecimentos do Leste Europeu decorre, na verdade, de sua concepção do tipo de Estado presente nessa região do mundo. Para os trotskistas, nesses países existia um Estado operário degenerado, e a principal responsável pelo não avanço do socialismo seria a burocracia estatal. Assim, os ideais socialistas estariam ainda presentes entre os trabalhadores, e uma revolução política daria livre trânsito para que eles se concretizassem. Dentro desta concepção está implícita a idéia de que os trabalhadores têm uma consciência socialista imanente. Ou seja, ainda que os trabalhadores não coloquem conscientemente a tarefa de lutar pelo socialismo, a sua imobilização acaba atuando sempre neste sentido. Mesmo que durante décadas nenhuma força socialista tenha disputado a hegemonia na sociedade (já que a burocracia não é socialista), ainda assim os trabalhadores continuariam interessados no socialismo. Ora, se as massas continuam socialistas e se movimentam derrubando as ditaduras burocráticas, só se pode deduzir que a luta é pelo aprofundamento do socialismo. Esta concepção apresenta inúmeros problemas. Em primeiro lugar, por pressupor uma imanência que na verdade não existe. Em segundo lugar, por estabelecer uma ruptura na relação dialética entre Estado e sociedade civil. É como se Estado e sociedade civil não se influenciassem mutuamente.

A partir desta compreensão, fica difícil explicar por que as massas aceitaram essas burocracias durante tantas décadas. se elas representavam interesses antagônicos aos dos trabalhadores. E forçoso reconhecer que a sociedade civil concordou ativa ou passivamente com a ditadura burocrática durante anos, pois não se pode afirmar que tal dominação tenha se dado unicamente através da força. O fato de os trotskistas teorizarem as sociedades pós-revolucionárias usando como referencial principal - quase exclusivo - o Estado, mostra que para eles o socialismo se constrói fundamentalmente a partir deste e não da sociedade civil.

A vida não está errada

Augusto de Franco, no artigo "Muito o que (des)fazer" (Teoria & Debate nº9), lança as seguintes questões sobre os países do Leste Europeu: "Vai acabar o socialismo nesses países? Não, porque não pode acabar o que não existe. Vão retornar ao capitalismo? Também não, porque não há nenhum interesse das castas burocráticas reformistas em se suicidarem." Mais adiante, Franco diz: "Assim como não acredito na existência passada ou presente de países socialistas, também não acredito que tenha existido alguma vez na história um Estado realmente operário (quer dizer, baseado em instituições proletárias..." O articulista faz uma crítica pertinente às hipóteses de "degeneração" e dos "desvios" do socialismo e critica as concepções de partido e política que orientaram as experiências revolucionárias. Mas ele ressalta que " ... não é o marxismo enquanto conjunto de teorias científicas (nem como fermento ideológico) que está em crise, mas sim as velhas fórmulas ideológicas, através das quais essas teorias foram vividas pelos homens (e que esse 'fermento' foi empregado)". Aqui, Augusto de Franco introduz alguns problemas de difícil solução, pois como pode a teoria continuar válida se estão em crise as velhas fórmulas ideológicas, através das quais essa teoria foi vivida pelos homens? Teríamos que admitir aqui um "desvio", uma "degeneração" da teoria, hipótese que Franco critica no início de seu artigo? Ora, se admitirmos que os homens viveram em contradição com a teoria, temos que admitir que o problema é da teoria e não da vida. Em outras palavras: não é a vida que está errada, mas sim a teoria segundo a qual a vida teria de ser vivida de forma diferente. Além disso, é impossível não estabelecer uma relação entre marxismo e as formas políticas e ideológicas que o mesmo assumiu ao materializar-se pelo fazer humano na história. Franco destaca muito bem que o "socialismo real" não pode ser explicado a partir dos "desvios" do stalinismo, pois mesmo no tempo de Lenin e Trotsky estiveram presentes as concepções e práticas que justificariam posteriormente os rumos da sociedade soviética. Ao criticarmos a teoria dos "desvios", devemos também reconhecer que não houve em Lenin um desvio em relação ao marxismo. O que Lenin fez - e o que principalmente o tornou famoso - foi levar para o plano da ação política as concepções teórico-filosóficas de Marx e Engels. Ou seja, as suas elaborações acerca do partido, do Estado etc., são decorrentes das concepções clássicas, e resultaram numa determinada forma de fazer política.

"Verdadeiro Socialismo"

Outro problema que a análise de Franco coloca é o de que o "socialismo não pode acabar porque ele não existe." O pressuposto desta tese é de que existe "um verdadeiro socialismo". Ela é problemática, pois é difícil identificar um referencial: o "verdadeiro socialismo" poderia ser descoberto com um retorno aos clássicos marxistas? Mas sabemos que os próprios clássicos são contraditórios e deles podemos retirar, no mínimo, duas concepções distintas. A primeira é que o socialismo seria o resultado inevitável das contradições cada vez maiores do capitalismo, e tudo já estaria predeterminado pela objetividade do presente. Seriam as relações de produção inconscientes - e não a liberdade dos agentes sociais - que acabariam norteando os rumos da história. A segunda concepção, pelo contrário, vê a história como construção humana, no sentido de que seus caminhos são definidos pelos homens, organizações e classes em luta. Desnecessário dizer que foi a primeira visão que predominou na história do movimento socialista, o que já constituiria um motivo suficientemente forte para uma análise crítica das causas disso.

Assim, o problema do "verdadeiro socialismo" só pode ser resolvido com juízos puramente teóricos, e com uma solução deste tipo só nos restará reclamar da vida que insiste em derrotar a teoria. Além do mais, é quase impossível explicar que milhões de socialistas convictos tenham construído a negação daquilo que acreditavam estar construindo. A não ser que os consideremos todos farsantes e impostores. Mas, desta forma, levantaremos sobre nós mesmos a suspeita de que, uma vez no poder, faremos as mesmas coisas que hoje condenamos.

José Dirceu de Oliveira e Silva, em entrevista a Teoria & Debate nº 9, disse a respeito da situação no Leste Europeu que "... a classe trabalhadora não vai jamais aceitar esse tipo de relação capitalista clássica"; e "que não vai acontecer necessariamente um retrocesso ao capitalismo." José Dirceu não emite um juízo mais claro sobre a questão, mas demonstra acreditar na resistência dos trabalhadores contra as reformas pró-capitalistas. Acredito que não existem evidências de que isto ocorra inevitavelmente, a não ser que admitamos que os trabalhadores estejam satisfeitos com seu trabalho, salário, situação social; e que não estejam dispostos a abrir mão destas condições, o que não corresponde à verdade. É necessário reconhecer que as empresas capitalistas, pela sofisticação tecnológica e até pela disputa ideológica, terão meios de fornecer melhores salários e condições de trabalho do que aqueles que os trabalhadores estão acostumados atualmente. E se isso acontecer, será que podemos esperar que os trabalhadores venham a lutar contra estas empresas?

Ozeas Duarte, em artigo publicado no mesmo número, afirma: "Uma crítica ao 'socialismo real' que não se sustente numa crítica ao marxismo ortodoxo será inevitavelmente limitada e insuficiente para efeito de reconstituição do projeto socialista." Mais adiante, Ozeas diz: "Com base em todos esses pressupostos - do marxismo - (...) não haveria como supor um outro resultado a não ser este que temos presenciado nas últimas décadas." A análise de Ozeas incide sobre a crítica dos pressupostos marxistas, como o determinismo histórico; o proletariado como classe universal, que, ao realizar seus interesses particulares, realiza os interesses da humanidade; a práxis como mera manifestação das leis sociais; a concepção leninista de "ditadura do proletariado baseada na violência e não limitada pela lei" (inconciliável com a noção de Estado de Direito); a missão imanente do proletariado - premissas que condicionaram a construção de um determinado tipo de socialismo. Ozeas não deixa claro se, juntamente com o fracasso destas experiências pós-revolucionárias, ele considera também que o marxismo, em sua totalidade teórico-filosófica, esteja colocado em xeque para fins de constituição do projeto socialista. Em outras palavras: se o marxismo ortodoxo que ele critica é apenas uma parte constitutiva do marxismo, ou se é o próprio marxismo que é ortodoxo, e, portanto, merecedor de uma crítica global.

Frei Betto, em Teoria & Debate nº 10, faz uma série de colocações interessantes, principalmente porque teve a oportunidade de conhecer de perto a realidade de alguns países do socialismo real. O realismo com que aborda as questões nos faz constatar o tamanho da tragédia. Segundo ele, o socialismo na Alemanha Oriental é hoje uma palavra maldita, "... a ponto de não se admitir que seja pronunciada em público (sob o risco de ser vaiada ou ridicularizada)".

Frei Betto enfatiza a importância de se levar em conta a subjetividade das pessoas para constituir uma sociedade socialista onde elas se sintam satisfeitas. Vejo como fundamentais as elaborações neste sentido, pois uma grande parte da esquerda continua raciocinando em cima de esquemas mecanicistas e objetivistas, como se a especificidade humana não existisse. Frei Betto conclui que houve "desvios do burocratismo e do stalinismo" em relação às concepções de democracia em Marx e Lenin. É verdade que o stalinismo teve desvios em relação às concepções leninistas. Mas o que deve ser discutido é se as concepções de democracia em Lenin eram corretas, se não permitiram o desenvolvimento desses desvios. Dentro do marxismo clássico - e também em Lenin -, a classe operária é portadora do universal, porque quando se emancipa, está emancipando o conjunto da sociedade. O problema é que Lenin não acredita na capacidade da classe operária para exercer o poder na fase inicial de construção do socialismo. Os trabalhadores, segundo Lenin, "não se desembaraçarão facilmente de seus preconceitos pequeno-burgueses", precisando ser "reeducados sobre a base da ditadura do proletariado". Este poder deveria ser exercido pela vanguarda da classe - já livre da ideologia burguesa -, isto é, pelo partido desta classe. Assim, a fórmula leninista da ditadura do proletariado acaba resultando na ditadura do partido do proletariado, pois os interesses históricos de partido e classe são os mesmos, com a diferença de que o conjunto da classe ainda não descobriu sua "missão histórica", a ser revelada pelo partido.

Neste ponto, é importante frisar, não houve um desvio do stalinismo em relação ao leninismo, mas sim sua continuidade, com todos os agravantes da personalidade autoritária de Stalin. O próprio pressuposto de Marx, que concebe o proletariado como portador da universalidade, permite este conceito de democracia formulado por Lenin. Por isso, se a concepção leninista de democracia está em xeque, também o pressuposto de Marx deve estar. A esse respeito, remeto ao excelente artigo - mesmo que polêmico - de Renato Janine Ribeiro, "Os perigos do universal", publicado em Teoria & Debate nº 10.

[/nextpage]

 

[nextpage title="p2" ]

No mesmo número, João Machado, em "Pela tradição marxista", analisa as sociedades pós-revolucionárias. Segundo ele, na maior parte dos países que iniciaram a construção do socialismo (Rússia, China, Iugoslávia, Albânia, Coréia) foi vitoriosa uma "contra-revolução burocrática". Em outros (Cuba, Nicarágua, Vietnã), " ... as direções permaneceram ligadas às massas e à revolução." Mas por que a "contra-revolução burocrática" foi vitoriosa na absoluta maioria dos países que tentaram a construção do socialismo? Seria também o caso de perguntar qual é o divisor de águas entre, por exemplo, Cuba - onde existiria esta ligação da direção com as massas e a revolução - e a Rússia de alguns meses atrás, se em ambos os países é o partido único que se confunde com o Estado e dele emanam todas as ordens para as fictícias "organizações de massa".

É o próprio Machado que afirma que a sociedade socialista se baseia, entre outras coisas, "numa socialização das relações econômicas, na gestão da economia pelos trabalhadores, numa ampla democratização de toda a sociedade". Ao que se saiba, isso não acontece em Cuba. e não podemos adotar o discurso mais revolucionário (ou, segundo outros, mais ortodoxo e dogmático) de Fidel como critério de verdade.

Machado diz, ainda, que "para retomar o avanço na construção do socialismo nos países em que se consolidou uma dominação burocrática, é necessário desalojar esta burocracia e restabelecer o poder dos trabalhadores (...) Chamamos este processo de revolução política antiburocrática. Ora, o que se desenrolou diante de nossos olhos (nas TVs!) em 1989 foi justamente o início de uma tal revolução política." Segundo este raciocínio, Machado afirma que veio a confusão e que hoje há " ... um início de contra-revolução capitalista". Ora, de onde vem esta contra-revolução se as massas votam maciçamente nos candidatos e partidos pró-capitalistas? Na verdade, não foi a confusão que levou à contra-revolução; é o raciocínio de Machado que introduz a confusão ao pretender adaptar os acontecimentos a uma lógica preconcebida. O raciocínio parte do pressuposto de que as massas estavam iniciando uma revolução política para "desalojar a burocracia" e "retomar o avanço na construção do socialismo". Se houvesse organizações populares e partidos com inserção na massa defendendo concretamente a proposta de retomar o avanço do socialismo, poderíamos adotar este raciocínio como ponto de partida. Mas como isso não acontece, o pressuposto é abstrato e arbitrário. O que se pode dizer é que não houve um início de revolução política para avançar na construção do socialismo, e por isso não houve necessidade de uma contra-revolução capitalista.

Logo depois, Machado deixa mais clara a sua visão, afirmando que as manifestações tinham um caráter predominantemente de esquerda e eram dirigidas por lideranças de esquerda (Novo Fórum), e que "lutava-se pela democracia, mas também contra os privilégios dos membros do partido". Não podemos caracterizar estas reivindicações como de esquerda, a não ser que se acredite que toda luta contra a burocracia seja uma luta pela retomada e avanço do socialismo. É preciso lembrar que foram os partidos pró-capitalistas que melhor capitalizaram os sentimentos a favor da democracia e contra os privilégios dos burocratas do antigo regime, derrotando fragorosamente, nas eleições, o Novo Fórum. O que a realidade nos mostra é que os milhões que saíram às ruas o fizeram porque acreditaram que esta era a maneira mais eficaz para derrubar um regime que tinha esgotado suas possibilidades de reproduzir a dominação. Foi pela intuição empírica desta tarefa que milhões de pessoas se puseram em movimento, e não orientados por plataformas de direita ou de esquerda como alguns se esforçam em mostrar.

Em coerência com sua avaliação de que o problema principal das sociedades pós-revolucionárias é a burocratização dos regimes, Machado propõe como ponto de partida para uma solução teórica da questão "... o marxismo de Marx e dos primeiros marxistas". Pelo que se deduz, não há necessidade de crítica aos fundamentos do marxismo que poderiam ter possibilitado esta sua materialização histórica. E agora, nesta nova interpretação de Marx, onde residirá a garantia de que desta vez o interpretamos "corretamente"? Esses 150 anos de história que nos separam dos primeiros marxistas não teriam a possibilidade de nos oferecer ensinamentos bem mais ricos e concretos? É certo que Marx e os primeiros marxistas sempre serão uma referência para o movimento socialista em qualquer época, mas não me parece que o retorno aos clássicos possa nos indicar soluções para nossos impasses atuais. O simples fato de termos de recorrer aos clássicos do século passado (ou do início deste século), para tentar encontrar soluções, já retrata, de forma trágica, a pobreza da produção intelectual da esquerda. Tragédia que só pode ser explicada pelo dogmatismo ainda enraizado em alguns setores, que continuam acreditando nas verdades sagradas contidas nos clássicos, mas ainda não reveladas, ou então, mal interpretadas pelos seguidores.

Polemizando com Ozeas Duarte e Augusto de Franco, Machado tenta mostrar que o problema fundamental reside no stalinismo, dizendo que o mesmo significa uma ruptura em relação à tradição marxista anterior. Este senso comum, que se formou entre a esquerda anti-stalinista, da ruptura entre o marxismo-leninismo e o stalinismo é, no mínimo, superficial. É preciso verificar até que ponto o stalinismo é ruptura, e a partir de que momento é continuidade. Pode-se falar em ruptura, por exemplo, na sua concepção de história comandada por leis de bronze; na sua invenção do "socialismo num só país"; na sua forma de fazer política onde a manipulação, a grosseria, o administrativismo, a repressão policialesca à oposição, tornam-se práticas comuns e rotineiras. Mas não se pode falar em ruptura radical do ponto de vista das concepções de partido como detentor da verdade e condutor das massas (pressuposto que legitima o partido único); da concepção de ditadura do proletariado, que também em Lenin acaba se confundindo com a ditadura do partido; da concepção de história em que o "fim" está predeterminado pelas leis objetivas; do socialismo como fatalidade histórica; do Estado enquanto aparato de coerção; da crença de que os fins justificam os meios, para ficarmos apenas em alguns exemplos. Neste sentido, Augusto de Franco tem razão ao buscar o fio que une a tradição dos bolcheviques do tempo de Lenin com toda a tradição posterior, enquanto Ozeas vai além e busca a relação entre a política socialista da forma como a conhecemos na história e as concepções teórico-filosóficas de Marx e Engels.

Machado parece não ver nenhuma relação entre as concepções filosóficas de Marx, as concepções teórico-políticas de Lenin e toda evolução posterior das experiências pós-revolucionárias. Não fosse o maldito Stalin, certamente estaríamos no paraíso socialista. Ora, ninguém pode subestimar o papel nefasto que Stalin cumpriu na história, mas atribuir a ele esta importância é, no mínimo, um simplismo que exige uma grande dose de boa vontade para convencer a nós mesmos. Stalin jamais poderia ter sido o que foi se a maioria dos socialistas na Rússia e no mundo não o tivessem apoiado entusiasticamente. E todos eram comunistas teoricamente referenciados no marxismo (ou não?).

A crise do socialismo é bem mais profunda do que a maioria da esquerda admite. Assumir a gravidade desta crise é o primeiro passo necessário para superarmos o impasse.

Liberdade, liberdade

O que fracassou no Leste Europeu, e nos outros países do chamado socialismo real, foi um determinado tipo de socialismo, cujos pressupostos teórico-filosóficos estavam contidos como possibilidade mais forte nos clássicos marxistas. Para que se abrissem novas possibilidades históricas, tornando possível o avanço da luta por um socialismo humanista e democrático, este fracasso foi necessário; mas trará, por sua vez, inúmeros e novos problemas, pois as massas dos países em questão tendem a rejeitar qualquer proposta de matiz socialista.
As massas trabalhadoras dos países do Leste Europeu não são socialistas; em vários países são claramente anti-socialistas. E nem poderia ser diferente, pois a consciência socialista não é imanente ao proletariado. O socialismo é um projeto teórico-político com o qual determinadas forças disputam a hegemonia da sociedade. Como no Leste o "verdadeiro socialismo" era aquele representado pelas burocracias, é lógico deduzir que as massas, ao se rebelarem contra as burocracias, estão se rebelando contra o único socialismo que conhecem.

Todos os dados que temos até o momento sobre as tendências predominantes no Leste indicam que as forças hegemônicas hoje no governo não têm propostas de revolucionar pela esquerda as sociedades existentes; ao contrário, seus compromissos convergem para o capitalismo. E estas forças conquistaram esta hegemonia através de meios democráticos, o que permite deduzir que gozam de confiança popular. A defesa da economia estatizada e dos direitos sociais, por parte dos trabalhadores, deve ser repensada apenas como uma possibilidade. No momento, não existem evidências de que as massas estejam se mobilizando contra as pressões capitalistas. Mas é preciso lembrar que nenhuma tendência é irreversível, são as forças políticas em luta que definirão o futuro.

Uma grande parte da esquerda acha difícil aceitar o fracasso, baseada na crença de que o socialismo inevitavelmente se implanta depois que as forças socialistas assumem o poder, sem chances de retrocesso. Mas temos de assumir com coerência a posição de que o socialismo não é científico e nem inevitável e admitir a possibilidade de derrotas, em qualquer estágio em que se encontre a sua construção, pois o conflito entre os homens continuará existindo.

A falência dessas experiências deverá ser acompanhada, no plano teórico, da destruição de uma concepção de história, filosofia e socialismo predominante nos clássicos marxistas. É bom deixar claro que considero a determinação predominante do marxismo a partir da forma como este se materializou na história, e que resultou no dogmatismo naturalista no plano da teoria, e no autoritarismo no plano da política.

A busca do "verdadeiro marxismo" será sempre um ato autoritário e religioso. É necessário construir um novo projeto socialista de conteúdo ético-humanista e cuja base teórico-filosófica atenda às enormes possibilidades criadoras do homem. Um socialismo onde a satisfação das necessidades seja apenas o meio para atingir nosso objetivo principal: a liberdade. Uma das referências principais, mas não única, para a constituição deste projeto é a concepção minoritária do marxismo, na qual a história está aberta a múltiplas possibilidades, entre as quais a do socialismo.

Wilson Luiz Muller é membro do Diretório Regional de Santa Catarina.

[/nextpage]