Mundo do Trabalho

A CUT tem um potencial de ação muito superior ao que vem desempenhando. Grande parcela das suas debilidades pode ser creditada à ausência de política sindical do PT e à incapacidade de ação unitária do partido

A visão tradicional, que atribui ao movimento sindical unicamente o papel de defesa dos interesses das várias categorias de trabalhadores que representa, precisa ser superada. Mantendo o seu caráter democrático, plural e de massas, cabe à CUT discutir se a sua atuação possui ou não uma dimensão estratégica própria.

Esta discussão não é de hoje. Ao longo do presente século, as diferentes forças políticas - baseadas em distintas concepções ideológicas - que intervirem no movimento sindical procuraram atribuir-lhe um determinado papel, seja na transformação radical, na reforma, aperfeiçoamento ou manutenção da ordem social. Entre os setores que, de alguma forma, defendiam a mudança social prevaleceu, entretanto, uma visão que apontava como principal papel do movimento sindical o de servir de apoio à luta política contra o capital. Isto é, os sindicatos reúnem a classe trabalhadora organizando as diversas categorias profissionais na luta por seus direitos e na defesa dos seus interesses; os partidos, por sua vez, intervindo nos sindicatos, procuram conferir um caráter político a essas lutas, unificando-as na perspectiva da conquista do poder e da construção do socialismo.

Na tradição leninista, que foi majoritária dentro da esquerda revolucionária durante a maior parte do século XX, os sindicatos cumpriam simultaneamente um papel de "escola de socialismo" e de "correia de transmissão", através da qual a política do partido poderia chegar até as massas. Cumpriam, assim, sempre um papel subalterno ou auxiliar do partido em todo caso, não tinham uma função em si - para além daquela corporativa e econômica - funcionando ora como estágio preparatório" (uma espécie de "vestibular" para a militância partidária), ora como simples mecanismo de transmissão de um movimento (uma "roda dentada", como imaginou Lenin em 1921) sempre iniciado pela vanguarda (o partido).

Obviamente, por trás desta visão leninista do papel dos sindicatos estava uma visão de partido único (único meio de fazer "funcionar" o modelo da "correia de transmissão" ou da "roda dentada"). Além disso, subjacente à visão dos sindicatos - e do movimento social em geral - como auxiliar do partido, encontra-se uma visão de socialismo e de revolução social que não se centra no papel fundamental da auto-organização dos trabalhadores para a sua emancipação.

Dentro da tradição leninista desenvolveram-se concepções ainda mais instrumentais e utilitárias do papel da luta sindical, as quais estabeleciam uma separação mecânica entre luta econômica e luta política, cabendo à segunda dirigir a primeira, mesmo que "por sobre" a cabeça dos agentes envolvidos: os trabalhadores transformados de sujeitos de direitos em objetos de supostos interesses históricos, sobre os quais não precisavam tomar consciência (e, a rigor, nem mesmo concordar) desde que sua ação concreta favorecesse objetivamente o plano político elaborado por seus dirigentes partidários.

Ora, as experiências históricas deste século mostraram que nenhum partido, nem mesmo nenhum Estado (ou, como ocorreu freqüentemente, nenhum partido fundido a um Estado) é capaz de construir o socialismo sem organização autônoma da sociedade civil. Por maior e mais hegemônico que seja um partido ele não pode cumprir a função de preparar a auto-organização (em escala significativa). E sem este novo poder e a nova hegemonia de caráter antiburguês, democrático e socialista não é possível falar em socialismo.

Um velho debate do leninismo com o chamado "anarcosindicalismo" instalou uma polêmica equivocada no seio da esquerda. Segundo ela, os que assinalam um papel politicamente autônomo para o movimento sindical estariam negando a função dirigente do partido ou, no mínimo, confundindo a instância estratégica de luta pelo poder - a vanguarda revolucionária agrupada no partido - com as instâncias de massa que reúnem todos os trabalhadores independentemente das suas opções ideológicas. É evidente que não se pode mais aceitar a colocação do debate desta forma tão primária, quer pelos motivos que já expusemos acima, quer pelo fato de que temos uma visão pluralista da sociedade civil e da sociedade política a ser construída, na qual até mesmo a constituição de partidos não mais exigirá, necessariamente, a unidade ideológica entre seus membros, mas apenas unidade política. Nesta sociedade pluralista, plurais também terão que ser os agentes orgânicos de sua construção: não mais um partido ou uma coalizão de partidos, suserana, guiada por uma "razão instrumental", ditando normas e orientações do "alto", mas ação comunicativa entre os sujeitos sociais. O que Lenin chamou, em 1921, de "anarco-sindicalismo", na luta interna contra a tendência "Oposição Operária" do Partido Bolchevique, na verdade não era, senão, uma ingênua tentativa de Kollontai, Medvedev e outros dirigentes sindicais russos de fortalecer o caráter de classe do partido, preenchendo majoritariamente suas instâncias decisórias com militantes sindicais operários.

Evidentemente, existem no interior da CUT visões equivocadas de pequenos grupos que imaginam atribuir-lhe papel político-estratégico, exigindo uma definição ideológica da Central que estreitaria sua base e reduziria drasticamente o peso de sua atuação na sociedade. Grande parte desses grupos, todavia, não querem realmente transformar a CUT num partido ou em outro tipo de organização política. Querem se apoiar na Central para construir um partido que não existe - em geral, um modelo anacrônico de partido revolucionário de quadros, de tipo leninista. Tais grupos também se fazem presidir por uma razão instrumental, de utilização da CUT para objetivos não-expressos.

Por tudo isso é necessário que a central sindical discuta concretamente seu papel estratégico e não deixe apenas aos partidos ou grupos que intervêm no seu interior a tarefa de encaminhar este debate e adotar estas definições.

A dimensão estratégica do movimento sindical

Chegou pois a hora do movimento sindical exigir o reconhecimento de sua maioridade, libertando-se dos grilhões da direita, da política burguesa de atrelamento ao Estado, abandonando as ilusões do pensamento liberal e da social-democracia que o condenam a um papel de eterno interlocutor do capital, mas também recusando a tutela da esquerda leninista. Isto não quer dizer que os partidos que intervêm no movimento sindical não devam fazê-lo. Significa que é o próprio movimento, em seus fóruns autônomos, democráticos e soberanos, que deve decidir qual política adotar. O movimento sindical atinge esta maioridade quando passa de "espaço de hegemonia passiva" para "espaço de hegemonia ativa". Quando compreende que sua relação com os partidos deve ser de interlocução e não de contestação da legitimidade da intervenção partidária. Quando vislumbra que seu papel de defesa dos interesses dos setores explorados e oprimidos que agrupa e representa é permanente e não constitui apenas um meio para alavancar a luta política pelo poder. Existirão sindicatos livres também no socialismo (e no que se chamava de "Estado operário") ou não haverá socialismo.

Se não são os partidos os melhores instrumentos de organização (em larga escala) dos trabalhadores na base da sociedade, este papel cabe, em função de suas lutas concretas, aos movimentos sociais, entre os quais se destaca o sindical.

A política sindical tem portanto uma dimensão estratégica.

No caso da CUT esta política tem como um dos eixos centrais a ruptura com a atual estrutura sindical dependente do Estado, antidemocrática, verticalizada e burocratizada, como também a construção de uma nova estrutura sindical democrática, independente e autônoma, que possibilite a auto-organização dos trabalhadores não somente no plano corporativo e econômico, mas também no político e no da luta pela hegemonia e o poder.

O movimento sindical organizado pela base cumpre papel insubstituível na formação de embriões de contrapoder e de novos aparelhos de disputa de hegemonia na sociedade. Não basta, porém, a construção das novas estruturas de que falamos.

O movimento sindical, ao afirmar seu objetivo de luta anticapitalista e pelo socialismo, deve encontrar nesta afirmação a busca de um papel que, diferenciando-se daquele dos partidos políticos, seja também o de um dos agentes interessados na elaboração de caminhos estratégicos e do projeto de sociedade que interessa aos trabalhadores.

Uma vez enraizado na classe trabalhadora, o movimento sindical pode travar permanente disputa ideológica, cultural e ética contra a burguesia e o Estado opressor, construindo simultaneamente valores que remetam a uma sociedade fraterna, solidária, democrática e justa.

Ao afirmar-se anticapitalista e pelo socialismo, a CUT deve incorporar à sua ação mais global um projeto articulado de luta contra a manutenção dos principais pilares de sustentação do regime, notadamente os mecanismos de repressão, coerção e dominação política e ideológica, como as Forças Armadas e a tutela militar, o monopólio dos meios de comunicação de massa e a Constituição conservadora.

No caso das Forças Armadas e da tutela militar é necessário desmontar a ideologia que justifica sua existência e principalmente seu papel na manutenção da ordem interna, que nada mais é do que o exercício da violência contra os trabalhadores para manter as desigualdades sociais e a ordem capitalista.

O monopólio dos meios de comunicação de massa é peça chave na manutenção do regime e no impedimento do avanço da conscientização dos trabalhadores. Constitui-se um dos principais mecanismos de dominação ideológica e política no Brasil. A CUT pode e deve, juntamente com outros movimentos sociais e os partidos políticos interessados, articular a luta institucional e a luta direta pelo fim do monopólio e pelo direito de construir canais de rádio e televisão, desenvolvendo, até mesmo, ações que ultrapassem a legalidade.

Um outro aspecto da dimensão estratégica da ação da CUT é a possibilidade que ela tem, ao lado do PT e outros partidos de esquerda, de ser importante instrumento de articulação de um movimento de oposição de massas que envolva partidos políticos e movimentos sociais vários, que não só se contraponha aos desmandos e políticas antipopulares dos governos burgueses, mas também proponha uma política de distribuição de renda, democratização da sociedade (inclusive nas fábricas, empresas etc.) e interfira nas políticas sociais.

Revolucionar a CUT para ampliar seu papel

Hoje a CUT não funciona como um organismo unitário. Não é unitária na elaboração de seu projeto político, na sua organização e na sua ação cotidiana. O método de construção de sua política não tem sido marcado pela necessária democracia interna e pelo respeito às diferenças (unidade na diversidade). É necessário superar a visão de que na democracia dos trabalhadores a maioria manda na minoria. Em uma sociedade onde há 60% de brancos e 40% de negros, os 40% podem ser escravizados pelos 60%? Democracia significa diálogo, convivência com as diferenças, respeito às minorias, busca do convencimento político e do consenso.

Se a CUT tem debilidades quanto à unidade na formulação da política e da sua articulação como organismo unitário, é no que se refere à unidade de ação que encontramos os maiores problemas.

Nos últimos três anos, vêm se avolumando as situações em que as diversas tendências sindicais digladiam-se, conduzindo o movimento a um tremendo desgaste, desmobilização e incapacidade de ação. O exemplo recente mais ilustrativo é o episódio da "negociação nacional", do qual a CUT decidiu participar sem o devido aprofundamento da discussão com as bases. Resultado: não conseguiu desmascarar o governo nem obter conquistas, que somente seriam possíveis com ampla mobilização de massas; e saiu sem conseguir explicar o que tinha ido fazer lá. De outro lado, observamos uma postura fracionista e sectária, que em vez de mobilizar para a luta, gastou muita energia em combater uma postura equivocada da direção, deixando todo nosso potencial de lutas voltado para as questões "intestinas". É um desgaste para a CUT que, incapaz de se unificar, não consegue atuar eficientemente nas diversas conjunturas e se mostra dividida e enfraquecida. É um desgaste para as diversas categorias e para os trabalhadores em geral, que não podem compreender a existência de questões tão importantes que poderiam levar à nossa divisão. Não há peão que suporte revolucionários como nós durante muito tempo. É um desgaste para o PT, na medida em que na maioria das vezes são petistas os protagonistas destas batalhas, que sequer conseguem ocultar que o verdadeiro motivo das disputas é o domínio das máquinas sindicais. Disputas políticas que viram luta de extermínio e são reflexo da concepção - não explicitada - de que a guerra é a continuidade da política.

Novos caminhos

Se é verdade que as regras internas, os métodos políticos, a prática cotidiana e as formas de organização que presidem nossos atos são prenúncios da sociedade que nos propomos construir, então há muito por se mudar no interior do PT, na relação partido-movimento, na relação com os outros partidos do nosso campo.

A CUT tem um potencial de ação muito superior ao que vem desempenhando. Grande parcela das debilidades podem tranqüilamente ser creditadas à ausência de política sindical do PT e à incapacidade de ação unitária dos petistas. Uma vez que somos amplamente majoritários no movimento sindical cutista, nossas debilidades e equívocos marcam fortemente as ações da CUT. Compreendemos que a superação dessas dificuldades exige que o PT unifique sua militância na elaboração e implementação de uma política sindical, construída a partir das instâncias partidárias, para ser apresentada ao movimento. Esta idéia não pode ser confundida com proposição de que é a ação organizada de um pretenso bloco de revolucionários da CUT, o qual agindo de fora para dentro do PT, dá os rumos para a ação partidária. Ainda há tempo para evitar maiores desastres. O PT está com a palavra.

Hélio Neves é membro do Diretório Municipal do PT-SP e do Sindicato dos Servidores Municipais de São Paulo

Francisco Chagas é membro do Diretório Municipal do PT-SP e da Executiva Regional da CUT-SP