Política

O PT, com todo o radicalismo teimoso da CUT, com toda a herança da esquerda burocrática, com toda a igrejice que lhe prejudica o caráter laico, é um partido social-democrata. Inédito e inventivo.

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"Os petistas nada têm a perder, a não ser os cargos" - Maria Rita Kehl, em conversa informal.

"Sou xiita mas não sou burro" - Jacó Bittar, em entrevista ao JB, ratificada em entrevista a Teoria & Debate nº14.

"Nunca defendi o meio ambiente. Defendo é o ambiente inteiro" - José Ciccote, brincando numa reunião da bancada da Assembléia Legislativa paulista, em 1984.

No dia 6 de março deste ano, a TV Cultura mostrou um documentário produzido pela BBC em 1990 sobre a prostituição na União Soviética. "Prostitutki". Que coisa deprimente. Eu não sabia que lá até as putas eram de segunda. As mulheres lá não são da vida, mas da burocracia. Fazem parte oficiosa do capenga mercado negro que forma um invólucro de tímida abundância em torno dos hotéis internacionais. Subornam as camareiras, encaram o ofício como uma rotina chata. Justificam-se com os ganhos. Num único programa bem pago (200 dólares) faturam dez vezes mais que um assalariado médio (e viva o câmbio paralelo). Elas não têm nem mesmo aquele glamour fake que maquia a imagem de todas as zabaneiras que aparecem em programas de TV. São desanimadoras as russas. Devem ter dor de cabeça durante. Espelham, com sua frieza desenergizada, a extrema alienação do trabalhador soviético. Uma alienação superior àquela lograda pelo capitalismo em qualquer buraco deste mundo. As gentes da URSS parecem ter um único denominador comum. Salvo os que lutam pelas independências nacionais, todos lá odeiam o que fazem. A tal ponto que ganharam insensibilidade com relação ao trabalho cotidiano. Estão entorpecidos, ou anestesiados. Inclusive as biscates.

As epígrafes ali em cima não têm nada a ver com elas, as bruacas do comunismo. Ou será que têm? As feministas em primeira fila, os humanistas em coro internacional, dirão que todas as marafonas, nem que seja para sobreviver na militância diuturna, devem desenvolver uma profissional e providencial "alienação" voluntária. Não se pode apaixonar por todos os clientes, afinal. Ocorre que esse distanciamento exato concorre para tornar as pituriscas ainda mais atraentes. Longe do amor, elas estão muito mais perto do sexo. As moscovitas, por demais ortodoxas, afastaram-se também do sexo. E estão na profissão à cata de marido. Há, evidentemente, algo errado nisso aí. Os erros do comunismo são também erros pornográficos. Mexeram (no mau sentido) com a região mais reprimida daquela sociedade, a genital. Bloquearam os fluxos vitais, geraram aleijões.

As frases lá do alto, pelo menos, são saudáveis. Espontâneas, representativas da melhor cultura do Partido dos Trabalhadores, a oral, elas subvertem o senso de disciplina, messianismo e burocracia que estão na gênese de cada pedaço do partido. Indicam uma insubordinação ainda vívida, que também está na gênese do partido, uma esperança boa de que, se a história fosse louca como seus protagonistas e deixasse haver uma revolução aqui no Brasil, todos os erros seriam cometidos, menos aquele de colocar no mercado negro as prostitutas de segunda. Sim, o PT precisa de muita coisa, mas precisa principalmente livrar-se de uma outra coisa. Precisa jogar fora, de uma vez por todas, o comunismo das trongas. O comunismo que fez de cada trabalhador um culatrão infeliz, cujos melhores sonhos migram ou para o comércio pirata ou para o exílio.

Regime imoral

O grande blefe da "segunda potência mundial", quando despencou, num estampido que o século XXI há de escutar, desnudou o atraso soviético e deu nó nas tripas dos donos da verdade (e da esquerda). Sobretudo em certos "caudilhos" da esquerda centralista de países mais atrasados como é o caso do Brasil. Agora não há mais o que defender do que restou da revolução de outubro de 17, que nós amávamos muito mais do que os ventos libertários da primavera de 68. A brutalidade de sujeitar os habitantes de um continente inteiro às conveniências de um governo sem parâmetros (um poder sem governo), todopoderoso, lembra os vínculos sórdidos de um cafetão com suas meninas. O povo indefeso errou pelos mares do medo, ao longo de mais de 70 anos, ao sabor de seus senhores inescrupulosos.

O pesadelo soviético está caindo no passado. Às vezes se retorce e ainda ameaça. Quanto mais fica para trás, mais a sua face se mostra horrenda. De burocracia estatal se converte em máfia, cai na clandestinidade de seu próprio regime. De máfia se transfigura novamente em núcleo conspirador, aliado a forças militares obscuras, ignorantes e bem armadas. A tirania dos que tiveram poderes em nome do comunismo esmaece e ruge. De longe, é a mais deplorável - em parte porque a mais duradoura - do mundo contemporâneo. Não é mais lícito esconder de qualquer simpatizante do socialismo que Karl Marx e seu parceiro Engels jamais desenvolveram uma Teoria Geral do Estado, o que abriu campo ao caráter (hesito em me valer do conceito) totalitário do regime soviético. Lenin rascunhou alguma coisa bem prepotente mas pouco fez além de submeter a coisa pública, lato sensu, à lógica estratégica ou tática do partido de quadros que concebeu. Aos olhos de Marx, o estado era uma questão a ser resolvida. Aos olhos de Lenin, o estado era um militante do partido. Já não nos importa, hoje em dia, em que termos Lenin e Trotsky tomaram ao pé da letra considerações marxianas acerca da ditadura do proletariado, concepções que tratavam o socialismo como reles degrau para o "comunismo" sem Estado. Se a insurreição armada de outubro foi legítima contra a Duma (se é que devemos aceitá-la como instrumento continuadora do czarismo), os seus resultados apenas envergonham a humanidade. Por isso, não é tão importante (embora seja relevante) a exegese exaustiva, o esmiuçar crítico e o estudo incansável da tomada do poder pelos bolcheviques. O que mais urge nesta hora é a postura ética de compromisso com a verdade: a ditadura soviética tornou-se um regime imoral, desumano e inadmissível.

Se o período em que Lenin se manteve na condução da "transformação social" (1917-1924) é turbulento demais para admitir julgamentos fechados, aquele que tem Stalin no trono não deixa mais a menor dúvida. Stalin consolidou a mais selvagem ditadura deste século, e nenhum de seus sucessores conseguiu desmontá-la, nem mesmo Gorbatchev, cujas perestroika e glasnost já cessaram de existir. Mas eu gostaria de chamar a atenção dos nobres leitores materialistas de Teoria & Debate para o fato de que Stalin, seu aparelho e seus métodos não caíram do céu. São todos eles a mais acabada resultante do partido bolchevique que substituiu-se a qualquer noção de Estado. A ditadura stalinista é também obra de Lenin e de Trotsky.

Alguns ainda se consolam relembrando o holocausto promovido pelos nazistas. Aliviam-se argumentando que já houve, no século XX, ditadores ainda mais demoníacos encastelados sobre mercados mais ou menos capitalistas. Estes, porém, não têm encarado com a devida isenção a perfeita simetria histórica (e geopolítica) que unia Hitler a Stalin. Foi se valendo do fantasma do nazismo que Stalin rompeu com o Direito, concentrou ainda mais força (além do poder) em seus punhos e dizimou seus opositores na década de 30. Foi se valendo do fantasma do comunismo e do radicalismo injustificado que a III Internacional stalinista impôs aos comunistas alemães, impedindo-os de fazerem frente com a social-democracia contra Hitler - que o IV Reich sepultou toda justiça e canalizou o ódio de um povo socialmente enfermo contra todo tipo de pária que apontasse como mal absoluto. Qualquer democrata, para ser eliminado sumariamente, era acusado de colaborador de Hitler nos domínios de Stalin. Qualquer judeu, para ter seu processo ainda mais complicado, era acusado de comunista pelos carrascos nazistas.

Sintoma assustador

As duas tiranias, numa simbiose pérfida, sustentaram-se ao longo de quase duas décadas. Os acordos secretos entre ambas - que deram a Letônia, a Estônia e a Lituânia para os russos –, assinados em 1939 e reconhecidos em 1989 pelo governo soviético, só confirmam que essa simbiose estava no plano da consciência de seus agentes. Uma e outra retrocederam a estágios primitivos da organização jurídica, violaram fundamentos como a autonomia entre os poderes, trucidaram princípios como os direitos humanos. O sintoma mais assustador da simetria que uniu Hitler a Stalin está no regime que ambos impunham. O de bigodes curtos propugnava o "nacional-socialismo". O de bigodes em tufos teimava em implantar o " socialismo num só país", "socialismo" que terminou os dias chamando a 2ª Guerra de "grande guerra patriótica". O estado tão transitório do "socialismo" em direção ao "comunismo" acabou virando a pátria dos trabalhadores dizimados.

O que torna as coisas um pouco mais preocupantes é que hoje, no Brasil do PT, os nazistas têm vergonha de se mostrar à luz do dia. Dificilmente põem o nariz fora da janela e, quando o fazem, é para perder o resquício que lhe guardam de simpatia, neste país tão dado a simpatias. Os stalinistas, ao contrário, estão aí com seu obreirismo charlatão. E são aliados do PT. A população que passa fome e morre de frio, que perde as crianças nas enchentes e a juventude para os esquadrões da morte e para os policiais, a população desgraçada e torturada no dia-a-dia acredita numa ilusão que a fala petista ajuda a sustentar: que as filiações ideológicas não têm maior procedência quando o grande objetivo comum é alcançar no mínimo um padrão de vida mais digno. Pois nada é tão importante nesta hora como a ideologia - coisa, aliás, que os stalinistas, na estreiteza intelectual que lhes é peculiar, confundem com ideário. Isso pode parecer um pouco idealista, mas enfim: é da relação com a ideologia que depende o futuro do PT e da democracia brasileira.

Ervas daninhas

O stalinismo não está apenas ao lado do PT como aliado de ocasião. Está dentro do PT também, mas não exatamente onde se pensa. O esquematismo das habituais discussões internas do partido costuma identificar o stalinismo com pessoas que no passado figuraram como efetivos de partidos subordinados ao Kremlin. Essa visão mais genética e individualizadora - meio estreita, ela também - se confunde com uma outra que generaliza as coisas no plano. Para esta, o PT é uma espécie de horta, repartida por vários tipos de folhas e tubérculos de inúmeras origens. A diferença do partido para as hortas de verdade é que, naquele, as plantinhas brigam entre si para se apropriarem da totalidade do canteiro, todas as tendências não passam de ervas daninhas. Para os jardineiros da política partidária, tudo se divide, além de direita e esquerda, em igrejeiros, trotskistas, stalinistas, social-democratas etc. Stalinistas seriam, então, os defensores dos regimes fortes, os centralistas, os que pregam um "estado" poderoso comandado por um partido único.

É claro que tanto os jardineiros como os examinadores da ficha corrida dos socialistas mais antigos estão enganados. Parece que escapa aos dois tipos de militantes que o stalinismo, antes de ser uma teoria, um rol de princípios ou uma plataforma, é a circunstância do terror. Essa circunstância - que precede a toda formulação teórica - passa pelo fortalecimento (e pela fortificação) do aparelho, pelo acirramento da disputa de cargos, pela cristalização dos cargos enquanto fatores (mais que objetos) da famosa luta interna. Sim, há um parentesco inicial entre stalinismo e fisiologismo.

O princípio maquiavélico da política no limiar do Renascimento - "os fins justificam os meios" - nunca foi levado tão às últimas consequências como por Josef Stalin. Nenhum príncipe, nenhum déspota esclarecido, foi tão longe como o bestial bolchevique. O resultado é um universalismo canhestro. Se o fim é o socialismo (e a vocação da humanidade é o socialismo, como acreditavam os revolucionários do início do século), o meio é o partido, através do qual a humanidade realizará seu destino. O partido, portanto, é feito fim. O Estado será seu meio. O Estado, sob Stalin, será não apenas um Estado militante, mas um corpo a serviço da obediência cega. Herdeiro da vocação da humanidade, o partido irá delegar essa herança ao Comitê Central; este ao birô político, e este ao secretário-geral. E o líder dos povos tudo pode, pois o seu fim é o fim da humanidade. Curioso: isso em todos os sentidos.

Fisiologismo e stalinismo são mesmo parentes. Ou melhor, o stalinismo é fisiológico, por definição. Nesse sentido, pode haver menos carga genética stalinista num defensor declarado da burocracia cubana, a "hacienda" modelo, do que num dissimulado oficial de gabinete que despolitize todas as questões e omita suas opiniões em prol da manutenção de seu cargo, a serviço de rusgas fisiológicas. O stalinismo, como ele nos interessa hoje, é a morte da política por excelência, ou melhor, é a vitória da estratégia (militar, de preferência) sobre a política. Reprime a ida de questões abertas para os espaços públicos. Prospera onde fenece a cidadania.

Defender um estado hipertrofiado, um modelo centralista e um regime de força foram as conseqüências históricas do stalinismo na União Soviética - a circunstância do terror - mas o stalinismo, enquanto tal, configurou-se enquanto método de solapar a livre discussão política para apropriar-se do partido, que já era único, e, através dele, subjugar a sociedade. Hoje, no Brasil, alguns stalinistas históricos, já há tempos fora de suas velhas organizações, estão comprometidos com a democracia - e democratas da boca pra fora apenas se esforçam por suas ascensões de funcionários (mais públicos ou menos públicos) às custas do partido. No PT é preciso tomar muito mais cuidado com a possibilidade de formação de uma neoburocracia do que mover caça às bruxas contra velhos combatentes. Estavam equivocados, em grande parte foram vítimas das conveniências de Moscou, mas nunca estiveram acovardados nas poltronas e escondidos nas fofocas traiçoeiras dos bastidores. Há mais ética num revolucionário fora de moda do que num neoburocrata liso que nem sabão.

Mas será que livrar-se do comunismo das trongas é apenas tomar cuidado com a neoburocracia petista que não participa do movimento de massa? Evidentemente, não. Evitar a neoburocracia é evitar um provável erro repetido - que no entanto não teria no Brasil as mesmas conseqüências que na URSS dos anos 30. Nesse caso a história se repetiria de forma burlesca: lá em tragédia e aqui em comédia. Livrar-se do comunismo das trongas é tarefa de mais fôlego. Aí sim, é o caso de combater o receituário tradicional stalinista. Mas sem mistificá-lo - até porque não adianta. O Brasil não terá um regime de partido único, não terá o socialismo da coletivização forçada, não terá nenhuma revolução que Eisenstein gostasse de filmar. Mesmo assim, é preciso superar o receituário stalinista e seus fundamentos leninistas porque, se a neoburocracia pode converter o partido inteiro numa empresa de despachantes menos insidiosos do que os atuais (o que já não seria tão ruim), o stalinismo convencional pode simplesmente liquidar com o projeto do PT. Pode jogá-lo a um gueto ridículo, condená-lo a uma cantilena doutrinário-caduca, sem retorno nem perdão. Pensando melhor, também nesse caso a história se repetiria: lá em farsa trágica, naturalmente, e aqui em farsa patética.

Ora, o que nos resta? Nós que, mais do que agentes, somos pacientes da História, às vezes somos obrigados a ir pelo caminho das eliminatórias. Na década de 90, o que é que nos restou? O PT vai o quê, lutar pelo comunismo? Lutar para zerar o déficit da Prefeitura de São Paulo? Poderíamos fazer ainda mais, inaugurar a primeira prefeitura lucrativa da história da humanidade. Faça da sua cidade um bom negócio, o lucro pode ser você. Por que não?

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Pactos podres

Olho à minha volta. Meus amigos mais caros precisam de algo, de uma causa nobre pela qual morrer se for preciso. Não lhes basta combater pelo imediato. Talvez isso se deva à nossa condição de vítima - e à nossa vocação de heróis. Somos vítimas de muitos algozes, de muitas traições programadas, do grande blefe soviético que seduziu a nossa melhor intelectualidade dos anos 30, 40 e 50. Somos vítimas do atraso, dos pactos podres que se sucederam no alto do estado brasileiro e que sempre nos condenaram a mais anos e anos de penúria moral e material. Somos vítimas de uma política que sempre prescindiu da ética - e somos vítimas também de nós mesmos, do nosso voluntarismo dramático e sem direção. Somos vítimas de achar que agora é a ética quem não pode mais prescindir da política, e de fazer política como santos predestinados. A nossa maior ambição é o respeito dos semelhantes (ambição que se degenera no simples desejo de reverência irrefletida) e, em busca dela, tomamo-nos miseravelmente órfãos. O pior tipo de órfãos: o que leva décadas para admitir a morte dos pais. Agora é tarde, mas não é nunca. Ainda não chegamos ao ponto de colocar uma plaquinha na porta da sede: "Precisam-se - uma secretária bilíngüe e uma utopia (não precisa ter prática)".

Pois bem, o que nos resta? Voltemos por um instante à máxima de Maquiavel, "os fins justificam os meios". Acima de "proletários do mundo todo, uni-vos" (e não "proletários de todos os países"), o pensador florentino deu o mote do socialismo real, ou melhor, deu o mote para que o sonho do socialismo caísse na real. Um golpe de força, por exemplo, estaria legitimado pelo happy end a que ele conduzisse. Tomar o poder de assalto, como fizeram os bolcheviques em 1917, estaria correto quando tanta violência fosse pavimentar o caminho para a sociedade sem classes. Balela: tecnicamente, aquilo foi um golpe de estado - e só conduziu ao sofrimento.

Muito já se estudou e se escreveu (muito já se convenceu) sobre o que há de intolerável aos olhos da civilização no golpe de 17. Nada tenho a acrescentar sobre isso. Apenas destaco um aspecto marginal da teoria revolucionária, que traz muitos ensinamentos para os nossos dilemas atuais. Ela vivia, naquelas duas primeiras décadas do século XX (o apogeu do século XIX) uma certa febre pseudo-dialética. Febre mecânica. Desvinculava, embora combatesse essa dissociação no plano do discurso, o gesto de seu alvo. O Estado burguês, aos olhos daquela teoria, não passava de um instrumento nas mãos da classe dominante. O partido, de seu lado, era a arma da classe dominada. Nada mais coerente, portanto, uma vez que o futuro estava programado para o abrigo da sociedade sem classes, que o proletariado oprimido desse cabo da burguesia e de seu estado. Se o direito não passava de um truque de ilusionismo para entreter e "alienar" (com todas as aspas deste mundo) os trabalhadores, nada mais natural que chutar o pau da barraca, e botar um ponto final na folia. Se o fim, por fim, é a sociedade da solidariedade, da igualdade e da fartura, nada mais justo que trucidar os que se põem no caminho da história.

Pau neles. Os fins socialistas justificam os meios bárbaros... Que tolice. Viriam os anos a desnudar os enganos. A teoria revolucionária, mesmo pagando o preço de abandonar no caminho este adjetivo pomposo, teria de compreender que os meios, inevitavelmente, determinam seus fins. Teria de aprender que a tarefa mais difícil e mais transformadora iria ser, mais tarde, exatamente zelar pela correção de qualquer método, pois é dos métodos que resultam os monstros. Teria de assimilar, igualmente, na turbulência das desigualdades combinadas do século XX, que o Estado burguês não é apenas instrumento de dominação, senão um espaço público de organização do conflito interno e externo à burguesia. Iria assinalar muito mais: que à medida que incorporou mais conflitos em sua natureza pública o Estado burguês foi deixando de ser simplesmente burguês. A teoria revolucionária que desembarcou do século XIX para dentro do século XX iria se dar conta, lenta e desconfiadamente, que a pluralidade era também uma condição da classe operária - e não apenas um privilégio caprichoso dos detentores do capital. Aos trancos e barrancos, ou sinuosa e imperceptivelmente, os mais inflamados subversores da ordem social burguesa coçavam a cabeça na calada da noite. Será que os mencheviques não tinham uma parte de razão? A social-democracia, apesar dos créditos de guerra em 1914, será que não guardou lá o seu compromisso maior com o bem-estar de todos os homens?

Antes, o revisionismo era a lepra. Depois, finda a 2ª Guerra Mundial, virou condição de sobrevivência: rever para guardar a sanidade mental. O revisionismo, assim, ganhou a Europa em debates de rigor acadêmico, e chegou há pouquíssimo tempo ao Brasil com ares de corso carnavalesco - no qual este artigo figura modesta e anonimamente ali no meião.

E então?

Há uma base no sonho socialista, a mais utópica de todas as bases de todas as utopias, que é a fé inabalável na natureza boa do homem. O militante socialista acredita firmemente que todo ser humano, desde que não seja burguês, está apto a viver em harmonia com seus semelhantes, está apto a repartir, a compartilhar. Nem que seja este o nosso último gesto enquanto socialistas, sejamos revisionistas. Se os homens são bons o suficiente para viver em absoluta fraternidade, façamos um exercício de humildade. Vamos rever nossos programas máximos e mínimos, vamos rever nossa identidade. É preciso revê-los todos e enfrentar uma outra vez, com uma outra disposição, as velhas e incômodas perguntas. E então? O que nos resta?

Para começar, tomemos um jogo de palavras que não sei bem onde é que foi que começou mas que é bem corrente em nossa cultura oral: "A democracia, no limite, é socialismo. O socialismo, no limite, é democracia." É óbvio: resta-nos a democracia e só ela é capaz de definir o socialismo. Mas convém esvaziar esta fórmula daquilo que ela tem de conveniente e assumir de vez os desdobramentos materiais que ela acarreta. Uma inversão radical de postura se coloca como o novo desafio. Não é mais o partido que, expressão da consciência dos trabalhadores sem consciência, deve conduzi-los ao paraíso (pode-se formular o mesmo princípio de maneira menos arrogante, tipo "partido vai ao lado dos trabalhadores", o que não passa de demagogia), mas o contrário. A sociedade inteira, em sua complexidade, e cada um individualmente, aqui no Brasil em especial mas de forma generalizada em todo o mundo, inclusive nos chamados países desenvolvidos, todos são candidatos à cidadania. Cabe , ao(s) partido(s) político(s) ajudá-los a alcançá-la. A construção do partido, fora dessa tarefa - interminável por definição - deixa de ter razão de ser.

Sejamos francos: qual tem sido a nossa proposta? Um mutirão para erguer o edifício do socialismo, que a gente nem sabe direito como é? Um mutirão para construir o socialismo como Cuba faz mutirão para a construção das instalações dos Jogos Panamericanos deste ano? Em certa medida, o PT não rompeu com o leninismo. Isso se expressa de forma bem nítida no vínculo que ele oferece aos que pretendem aderir a ele. É um tipo de vínculo que ainda cobra do filiado/militante um papel de soldado, de voluntário a dispor do coletivo, de abnegado revolucionário. Cria-se um mosaico de funcionários em permanente estado de transe, candidatos a redentores da espécie humana. Como a realidade não carece de redenção, está franqueado o acesso dos funcionários menos ingênuos, os dignos representantes dessa nova esperteza petista, aos postos da neoburocracia em expansão. Dá-se a abertura para que ocorra uma migração de profissionais desde a velha burocracia doutrinária em direção à neoburocracia esperta. Estrutural e organicamente, ao menos, há analogias entre as duas.

Nada que decorra desse tipo de vínculo pode conduzir à democracia. Há dentro de seu fundamento a idéia inicial de que existe um modelo de socialismo - ainda que mal acabado a ser implantado por sobre a sociedade. Se não isso, há aí pelo menos a idéia de que, dentro do âmbito do partido ou no máximo no âmbito que inclui o partido e seus núcleos agregados, podem-se definir os parâmetros do regime que deverá vigorar no país. Ora, isso é autoritarismo para com o país - e conduz ao autoritarismo interno. O germe autoritário mora dentro de todo espaço que pretenda modelar aquilo que lhe é exterior à sua própria semelhança e, nesse sentido, mora também dentro do PT.

Não é bem assim

Qualquer autoritarismo é inaceitável, muito embora seja explicável se comparado a tanto autoritarismo burguês, militar e estatal que adoeceu e adoece a própria formação da sociedade brasileira. Se aceitamos verdadeiramente o princípio de que a obrigação de um partido é apresentar propostas para a sociedade, temos que aceitar por coerência que a última instância das coisas reside além do partido.

Isso tudo poderia ser muito normal. Estamos num país que realiza eleições diretas, e o PT é obrigado a disputar com os outros para conquistar alguma, vá lá, hegemonia. Todos sabemos que as coisas não são bem assim. Nem a democracia no Brasil é verdadeira e nem o PT conseguiu ser verdadeiramente democrático. Durante os anos 80, o PT, embora apoiasse o sindicato Solidariedade da Polônia - contra, portanto, o governo comunista daquele país -, enviava algumas dezenas de seus quadros para cursar alguns programas "marxistas" na Alemanha Oriental, governada por burocratas corruptos, cujo partido já foi chamado de "partido irmão" em encontros oficiais do PT. Durante anos a quase totalidade do partido defendia publicamente o regime cubano, que sacrifica valores democráticos sob o pretexto de atender às necessidades básicas da população e em nome da ameaça de invasão americana.

Não é tudo. As apostilas do Instituto Cajamar, o centro de "formação política" dos militantes escolhidos do PT e da CUT, primam pelo marxismo oficial do já defunto socialismo real. Uma das apostilas, autointitulada Introdução à História do Movimento Operário Internacional, dedica-se a glorificar a tese do socialismo num só país e a velha Rússia ("país essencialmente atrasado e camponês") como o grande troféu do socialismo nacional. Providencialmente, o mesmo texto omite os processos de Moscou, sonega a informação sobre quem mandou matar Leon Trotsky (embora mencione o assassinato) e afirma que os países do Leste Europeu, depois de "libertados" pelo exército vermelho passaram por "notáveis progressos econômicos e sociais".

Pois bem: o PT nasceu como impulso histórico autêntico, quase espontâneo, independente e classista dos trabalhadores, mas se formou sob ensinamentos teóricos e sob uma estruturação de suas instâncias decisórias à luz da herança stalinista. O PT só não se tornou o último partido comunista do mundo porque isso não passou pela sua base, instintiva, mobilizada e antiburocrática. As indefinições que compõem o programa do partido podem, a propósito, ser entendidas como omissões calculadas. Indicam lacunas intencionais no contexto de um certo pensamento autoritário que, apesar de ocupar postos de destaque dentro do partido, de controlar alguns de seus mais importantes segmentos, não têm coragem de exprimir todos os seus pontos de vista. Lembrem-se de quando o governo chinês massacrou os estudantes na praça da Paz Celestial em Pequim, em 1989. Dos que defendem o governo chinês, ainda hoje, dentro do PT, quantos tiveram a coragem de colocar publicamente suas posições a favor do massacre? Agora que o velho comunismo das trongas sai de moda, seis adeptos costumam figurar entre os mais festivos foliões do corso do revisionismo. Oportunismo à parte, antes assim. Por pressão ou semancol, antes tarde do que nunca.

Morre de uma vez por todas, entre nós inclusive, a era do partido dos fins, do partido da estratégia, que se dirigia à sociedade para vestir nela o corte de seu próprio terno - que nela caía como camisa-de-força. A única justificativa para a existência do partido é a democracia - e a democracia é sempre um meio. O trocadilho é irresistível: a democracia é um meio ambiente que devemos defender por inteiro. Mas é claro: os esquemáticos querem que seja definida essa democracia, se é a democracia burguesa, se é a democracia operária etc.

De saída, descartemos uma via. Democracia operária não, obrigado. A expressão já está devidamente plena de significado à la centralismo democrático, está prenhe da noção de autocrítica-purgatório, está fedendo no acostamento da estrada da História. Democracia burguesa talvez. Vejamos. A democracia é historicamente burguesa - e é uma conquista da humanidade, assim como os direitos humanos, por exemplo. A tarefa de um partido que se disponha a ajudar os homens a alcançar e manter o estatuto do cidadãos é precisamente tirar todas essas conquistas do plano da retórica e trazê-las para o plano da matéria. E quando a democracia burguesa atingir o grau de contemplar a todos os homens com a cidadania plena, terá se convertido na negação de si mesma pois terá deixado de ser a democracia que atende apenas aos interesses da burguesia. É preciso fazer da democracia política e formal uma democracia também material e econômica. Nesse patamar, ocorre o sacrifício do pilar do liberalismo, que é a propriedade privada e as relações de produção capitalistas, pois sem esse sacrifício não estaria rompido o limite meramente formal da democracia burguesa, ou o limite burguês da democracia formal. É nesse sentido que a democracia, no limite, é socialismo. É nesse sentido que, fora dos trilhos da democracia, o socialismo é apenas uma ditadura. Em geral, é a mais mesquinha das ditaduras. A ditadura da pobreza de espírito. Ao contrário, a defesa intransigente da democracia é o único meio (porque um fim) de dar consistência a um programa antiburocrático, antiimperialista e anticapitalista.

Eis que esboço o programa da social democracia para o PT. Eis que tudo o que foi dito aqui parece um rescaldo, uma mistura de anarquismo do século XIX com o reformismo do século XX. O prato vem temperado com aromas libertários de 68 e doses sutis de eurocomunismo. É servido quente, no entanto. Funda-se no humanismo e procura ter a ética como referência primeira.

O PT, produto das grandes greves operárias urdidas por um sindicalismo independente e anti-oficial, lança-se para a esfera política refazendo a trajetória clássica, ainda que abreviada, dos partidos da social-democracia. Ele não é social-democrata porque diz ser, como o neopopulismo ou como o quercismo arrependido. Ele é porque é. Para o bem: resiste bravamente a uma definição stalinista acabada. E para o mal: acomoda-se com perigosa desenvoltura dentro de certas prefeituras, gerenciando de forma diligente os negócios da burguesia, negligenciando a necessidade premente de empreender rupturas no âmbito do poder público e assim, garantir o acesso das massas à cidadania. Mas o PT, com todo o radicalismo teimoso da CUT - admirável, brilhante e, acima disso, correto como atitude de legítima defesa -, com toda a herança da esquerda burocrática que carrega velada e abertamente, com toda a igrejice que lhe prejudica um pouco o caráter laico, é um partido social-democrata.

Sim, todos sabemos que a social-democracia do PT é atípica, inédita e inventiva. O "xis" do problema é que é social-democracia. Tanto que o primeiro (original) compromisso do partido é a democracia. Sua vocação é a garantia da democracia, o que ocasionou a inclusão (acertada, nesses termos) do "socialismo a definir" entre suas palavras-de-ordem. O maior desafio deste período é promover o reencontro do PT com a democracia plena, radical. O maior desafio porque talvez ele se mostre irrealizável, enfrentando o obstáculo do autoritarismo acomodado em cargos públicos ou aninhado nas benesses do prestígio. Irrealizável, ainda, em função da neoburocracia que concorre para fazer do PT uma empresa de política profissional apenas.

De um jeito ou de outro, é tentador acreditar que as energias principais deste partido ainda estejam assentadas na defesa da democracia e dirigidas para a conquista da cidadania. E essa experiência toda, cheia de divergências acaloradas, de contradições e erros de curso, tem sido uma grande escola para o Brasil e em especial para os petistas. Quem diz que não tem medo de ser feliz não pode ter medo de errar. As perseguições ideológicas não são necessárias (talvez nunca tenham sido). O debate franco é indispensável. Qualquer petista só tem do que se orgulhar quando olha para o conjunto do partido. Mesmo que certos episódios inspirem a mais triste vergonha, há muito do que se orgulhar.

Mas isso não é suficiente. Há muito com o que se preocupar também. Há muito que se corrigir. E há razões para se duvidar do futuro deste partido. As duas maiores probabilidades apontam para temeridades. A primeira indica uma acomodação dos quadros do partido no poder público, descomprometidos com transformações mais bruscas (das quais depende a vida da maior parte da população), o que seria a vitória da neoburocracia despolitizada e despolitizante. É bom não se esquecer: se a democracia burguesa pode deixar de ser burguesa, um partido antiburguês pode muito bem se aburguesar, e isso no pior sentido do termo, qual seja. pode adequar-se à etiqueta mal-educada da burguesia nacional, pode apresentar-se dócil, servil, eficiente demais aos olhos dessa burguesia periférica, dependente e estatizante como é a brasileira. Moto contínuo, irá se apresentar cada vez mais distante, mais vago e mais lacônico, flácido demais aos olhos dos oprimidos que o apoiam - e que, pior, o constituem. Essa primeira probabilidade resultaria numa degenerescência tipicamente social-democrata. O PT renegaria a combatividade dos partidos da social-democracia do início do século, caindo modelo (piorado) traidor da maioria dos partidos social-democratas europeus da atualidade. A segunda probabilidade indica uma cristalização do velho autoritarismo, o que arremataria o aparelhamento e o consequente isolamento do partido no espectro da insipiente sociedade civil brasileira. Para todos nós, a política tem sido a arte do possível. É hora de fazermos da política a arte do improvável.

Eugênio Bucci é editor de Teoria e Debate.

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