Política

Nosso país não está diante de uma crise qualquer. O Brasil perdeu a capacidade de se pensar como nação e ninguém sabe mais onde está a fronteira entre coisa pública e cosa nostra. Em lugar da discussão leninismo x social-democracia, o partido deve oferecer soluções concretas para a sociedade.

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1 O Congresso do PT qualquer que seja seu resultado - será um fiasco se as grandes definições dele decorrentes resultarem de um simulacro do embate, travado há décadas, entre leninistas de vários matizes e social-democratas, assumidos ou não. Essa discussão clássica, válida como uma referência teórica entre outras, tem servido para encobrir um vasto silêncio sobre nossa própria alternativa à crise nacional, que se aprofunda com rapidez.

Não é difícil construir discursos, de quaisquer tipos, dotados de coerência interna. Tampouco é difícil que esses discursos possam se legitimar pinçando, aqui e ali, aspectos do real. Os debates do partido, largamente baseados nessa prática escolástica e na relação casuística com a realidade, tendem a ganhar feição circular, com o entrechoque inútil de duas ou mais lógicas fechadas e impenetráveis. A única maneira de romper esse círculo é encontrar o espaço de uma reflexão que valorize a visão de conjunto da realidade que se quer transformar.

2 Parece claro que nosso país não está diante de uma crise qualquer, resultante de um movimento cíclico de uma economia que toma fôlego para voltar a crescer. Esgotados o longo ciclo de substituição de importações e os mecanismos tradicionais de financiamento da nossa expansão, a sociedade brasileira necessita reorganizar-se profundamente. Não está assegurado a priori que tenhamos êxito nisso. Ao contrário. O neoliberalismo dominante - operação ideológica do que projeto nacional - não tem o potencial estruturante de propostas burguesas anteriores, o que reforça o risco de desarticulação de parte substancial de uma base produtiva que nosso país levou quarenta anos para construir. Enquanto os governos tentam governar, ou fingem que governam, as empresas praticam em larguíssima escala a ‘administração defensiva’, com cortes nos investimentos de longo prazo, busca exclusiva de resultados imediatos, aumentos nas margens unitárias de lucro, fuga do crédito e envio de recursos para o exterior. Milhares de decisões empresariais desse tipo, tomadas em todos os pontos do tecido econômico, inviabilizam um país.

3 Começamos a aceitar como normal que as ameaças de estagnação e/ou hiperinflação demarquem o campo em que nossa economia se move. Altas taxas de crescimento, porém, foram fiadoras da estabilidade de um capitalismo que se desenvolveu sem fazer reformas estruturais. Os salários sempre foram baixos, com conseqüências danosas para o povo e a economia. Mas, ao longo de décadas, a expansão do emprego e da fronteira de ocupação territorial funcionou como válvula de escape, permitindo a milhões de famílias um precário equilíbrio ou, pelo menos, urna fuga para a frente. Agora, está concluído o processo de ocupação, nas mesmas bases de sempre, e já não crescemos mais.

O sistema de poder que gerou a crise passou intacto pela transição de regime político. As fortunas feitas durante a ditadura são as fortunas do país atual; os agentes econômicos decisivos são os mesmos; as terras apropriadas pelo latifúndio, com ele continuam; a promiscuidade entre Estado e grandes empresas permanece igual, com mais corrupção; a poderosa rede de desinformação eletrônica se fortaleceu, ocupando virtualmente todos os espaços disponíveis da difusão radiofônica e televisiva. Nunca a elite política brasileira foi tão fundo na imundície, substituindo sem disfarce a violência da ditadura pelo poder milionário de comprar, induzir, confundir e corromper. Ninguém mais sabe onde está a fronteira entre política e negócios, entre coisa pública e cosa nostra.

4 Sob hegemonia desse sistema de poder - que perpassa Estado e sociedade civil - o Brasil perdeu a capacidade de se pensar como nação. A discussão que nos envolve reflete esse estado de coisas. Não se discute mais o Brasil, mas economia brasileira. Minto. A rigor, sequer se discute economia brasileira, vista como um conjunto, mas o setor formal e oligopolizado dessa economia. Minto, ainda. Para ser mais preciso, discute-se mesmo, em cada momento, a conjuntura econômica desse setor, ou seja, a gerência cotidiana dos problemas que coloca. Essas sucessivas reduções do objeto de nossa atenção, tomadas normais e desapercebidas, não são inocentes, pois impõem, reflexão, um claro limite ideológico, que se transverte de técnico. Encobrem um processo implícito de definição de quais são (e quais não são) os atores legítimos do debate nacional, quais são (e quais não são) os problemas a serem enfrentados e quais são (e quais não são) os recursos de que o país dispõe para sair da crise.

Se a discussão fica presa à gerência de conjunturas definidas pelo setor oligopolizado, estão excluídos, por exemplo, a população que se amontoa nas periferias das cidades, os subempregados, os camponeses, os migrantes. Os pobres em geral. Trabalhadores de grandes empresas (privadas e públicas) e com fortes sindicatos participam, mas como atores necessariamente subalternos, pois o espaço que lhes resta é o da defesa de interesses corporativos. Os detentores da racionalidade são os homens de temo e gravata que, durante o expediente, com poucas exceções, cartelizam setores, remarcam preços de forma abusiva, contatam doleiros, fraudam concorrências, negociam subsídios, despedem gente e, nos momentos de folga, diante das câmeras, salvam o país.

5 Um sinal da nossa impotência coletiva é a excessiva ênfase nas regras. Discutem-se regras econômicas, e renovam-se pacotes; regras políticas, e não faltam fórmulas salvadoras; regras jurídicas, sempre em nome da liberdade. Discutem-se regras numa nação que perdeu a capacidade de definir objetivos, como se algum dia as regras pudessem adquirir a milagrosa capacidade de se sobrepor à destrutiva lógica dos atores. Se aceitarmos o debate, nesses termos, nossa máxima ambição será apoiar reformas institucionais de resultado lento e duvidoso e propor planos de estabilização muito parecidos com os já tentados, até porque bebemos nas mesmas fontes acadêmicas. Fracassaremos também, e de forma ainda mais estrondosa.

Precisamos redescobrir uma nação que é muito maior do que tudo isso. Uma nação que pode e deve definir objetivos, organizar-se para atingi-los e fazer aflorar de novo uma esperança que mora no inconsciente do seu povo. É verdade: somos um país pobre, com brutais desigualdades. Mas não somos miseráveis. Temos um parque industrial articulado e quase completo. Uma população jovem, com presença marcante de pessoas habituadas à produção industrial. Quadros técnicos em bom número. Agricultura capaz de responder com rapidez a estímulos adequados. Vasto espaço geográfico, recheado de recursos. Os ciclos de nossa economia não são mais, há muito tempo, diretamente determinados pelos ciclos internacionais, pois temos centros internos potencialmente geradores de dinamismo.

Metas nacionais precisam preceder a discussão de política econômica, pois aquelas devem definir o contorno desta. Para os conservadores não é importante desfazer essa confusão, pois a aparente ausência de objetivos e a ênfase na gerência do condomínio em que se transformou a economia brasileira servem, implicitamente, para reafirmar o status quo, fazendo da sua racionalidade socialmente criminosa e economicamente incompetente - a única possível. Não é o nosso caso. Precisamos pensar um projeto que altere a alocação de recursos sócio-econômicos em escala macro, recupere a capacidade de se pensar o longo prazo, redefina direitos, reinvente instituições, redistribua o poder, desbloqueie estrangulamentos, potencialize virtudes e, finalmente, adeque meios e fins.

6 Não podemos inventar uma sociedade. Por isso, tal projeto só pode ser elaborado se nos debruçarmos sobre os grandes movimentos que a sociedade brasileira já faz, de forma a interferir neles, organizando-os de acordo com os interesses do povo e enfrentando as questões que eles apresentam. Que movimentos são esses, que problemas estratégicos eles colocam hoje para o Brasil? Proponho atenção em cinco questões.

A primeira é a da urbanização acelerada. Em tempos passados, esse movimento, embora sempre associado a problemas, já teve um caráter essencialmente virtuoso, pois esteve acoplado a um fantástico dinamismo industrial e a uma elevação da produtividade do trabalho. Isso, grosso modo, acabou. Nem do ponto de vista da geração de empregos industriais, nem de nossa capacidade de ampliação da malha e dos serviços urbanos, damos conta das três milhões de pessoas que continuam chegando às grandes cidades todos os anos. São Paulo e Rio de Janeiro, com suas periferias, já concentram quase 20% da população brasileira, e a questão urbana não se limita a essas áreas. Capitais de quase todo o país estão saturadas, e o mesmo se dá com cidades pequenas e médias. Reverter o quadro de degradação das cidades, no contexto de políticas nacionalmente articuladas, surge pois como um primeiro objetivo.

7 O segundo macromovimento a que devemos atentar é o da centralização, que não se confunde com a urbanização. Duas dinâmicas se consolidam em nosso território. Pode-se desenhar um quadrilátero que se modernizou, com vértices em Belo Horizonte, Presidente Prudente, São Paulo e Rio de Janeiro, cercado por um imenso país mais rural, mais atrasado, menos dinâmico. Não há mais contingências de natureza física ou tecnológica que nos obriguem a isso. Uma das heranças deixadas pelo dinamismo econômico de décadas passadas é uma infra-estrutura - como veremos, decadente - que integrou o país e tomou acessíveis ao cultivo imensas áreas, isoladas durante séculos, especialmente nos cerrados. O país detém a tecnologia necessária para ocupá-las produtivamente, mas não pode fazê-lo na escala necessária. As estruturas de propriedade o impedem. A realização de reforma agrária - especialmente nas imensas áreas sub-aproveitadas, mas potencialmente agricultáveis e integradas ao sistema econômico - é outro objetivo nacional importante, para desbloquear o acesso ao Brasil Central e, entre outras conseqüências, aliviar as pressões sobre as cidades e a Amazônia.

8 Essa reestruturação da relação entre população e território nos leva a um terceiro aspecto: agricultura e alimentação. O padrão alimentar do nosso povo está completamente degradado, sem que, mais uma vez, hajam motivos de natureza física ou tecnológica que nos condenem a conviver com isso. Políticas agrária, agrícola e de comercialização, combinadas com o aumento do poder aquisitivo dos consumidores, podem gerar rápido dinamismo na produção de alimentos, pois a agricultura brasileira tem potencial de resposta. Ganhos de produção e de produtividade, obtidos aí, tendem a se distribuir para toda a sociedade, na forma de comida mais barata. O aumento da oferta de alimentos, além de reforçar uma vocação dos pequenos e médios proprietários e de cumprir objetivos sociais evidentes, pode ser estratégico também para ampliar as possibilidades de outras atividades econômicas. Nosso povo, gastando boa parte da renda para comer mal (e morar mal), não consome outros bens, cujos mercados se atrofiam.

9 O quarto problema com que nos defrontamos é o do sucateamento da infra-estrutura básica - energia, transportes, comunicações, portos - cujo desempenho influencia fortemente, para o bem ou para o mal, a produtividade de todas as áreas. A ineficiência desses setores se transforma em ineficiência sistêmica, que coloca claros limites a qualquer processo de modernização intrafirmas. É a brutal recessão das atividades econômicas que, por enquanto, tem evitado o racionamento de energia; transportes e portos, ineficientes e caros, inibem inúmeras possibilidades. São setores que exigem investimentos grandes e de longa maturação, tradicionalmente (mas não necessariamente) estatais e sempre relacionados a um planejamento estratégico.

10 Por fim, se a sociedade brasileira continuar a tratar educação e saúde públicas como problemas de retórica eleitoral, o passivo de incultura e endemias se tornará grande demais para que possamos caminhar. Não preciso me estender. Talvez a maioria da população brasileira já seja formada pelos chamados analfabetos funcionais: sabem assinar o próprio nome, mas não podem entender um artigo simples ou escrever uma carta com coerência. Essa mão-de-obra abundante, urbanizada e desqualificada se dirige majoritariamente para um setor terciário - formal ou informal - que trabalha com níveis de produtividade muito baixos. Do ponto de vista meramente econômico, a conseqüência é uma persistente queda na produtividade geral. Tomando, como sempre, a parte pelo todo, os neoliberais comemoram o fato de o setor governo deixar de absorver essas pessoas, como fez no passado, o que de pouco adianta. Muito mais importante é o fato de que esse excedente cresce em proporção direta à aplicação das demais medidas do próprio receituário neoliberal. Não importa onde ele vai se alocar. Dentro ou fora do governo, continuará pressionando para baixo a produtividade do sistema.

Quanto à desordem sanitária, também é muito grave. Recrudescem endemias que já estiveram mais bem controladas e nosso povo está exposto a riscos inaceitáveis. É ínfima a percentagem de municípios brasileiros que têm tratamento de esgoto e pequena a da população que tem acesso à água potável e formas adequadas de eliminação do lixo e de dejetos.

11 Esses cinco pontos - ou, se quiserem, essas cinco pontas da estrela - configuram objetivos nacionais que, como disse, precedem a definição de política econômica. Eles permitem a formulação de um projeto simultaneamente generoso, realista, radical e politicamente viável. Generoso porque autêntico, vinculado a necessidades prementes do país e do povo. Realista porque liberto de fetiches e voltado para recuperar o potencial brasileiro. Radical porque, como veremos, sinaliza um duro enfrentamento com as elites. Politicamente viável, porque pode aglutinar em torno de si a grande maioria.

Também estão embutidas aí as idéias de que a economia brasileira pode recriar em si mesma um novo ciclo de expansão - o que não se confunde com a busca de autarquia - e que este ciclo pode ter como eixo de articulação um patrimônio de valor inestimável, desprezado desde sempre pelas nossas elites: o mercado interno de massas. A economia brasileira, por não ter feito reformas estruturais, não resolveu o problema representado por uma renitente tendência ao subconsumo. Esta acompanha nossa trajetória como um fantasma, exorcizado em diferentes momentos históricos através de várias estratégias. Estão nesse caso, principalmente, a substituição de importações (baseada na criação, pelo Estado, de insuficiências setoriais de oferta, num quadro de insuficiência global de demanda), a integração nacional (que realizou, digamos assim, um expansão extensiva desse mercado), a ativa atuação econômica do próprio Estado (tradicionalmente gerador de demanda) e, paradoxalmente, a própria concentração da renda (que criou um perfil adequado à expansão de certos mercados entre parcelas minoritárias, mas numericamente expressivas). Estes dois últimos mecanismos têm ajudado a produzir situações em que aparece excesso conjuntural de demanda, pressionando a inflação e criando uma espécie de ilusão de ótica que ilude muitos economistas ilustres, incapazes de enxergar os problemas de fundo.

Esgotados esses caminhos de driblar um subconsumo estrutural, surge nova solução conservadora: a saída exportadora, que pega carona no mote da integração internacional. A Europa tem fortes motivos para atribuir centralidade a esse movimento: há muito tempo os respectivos mercados nacionais estão integrados e, além disso, os países são relativamente pequenos. Os brasileiros seguem a moda, embora vivam num imenso país que não integrou seu próprio mercado, potencialmente tão grande quanto o de toda a Europa. Há os que sequer ficam corados quando nos apresentam Hong Kong e Cingapura como modelos.

É óbvio que exportações são necessárias e saudáveis, mas o modelo exportador não é bom para nós. Ele não é capaz de criar uma nova dinâmica para o conjunto da nossa economia, pois apresenta baixo multiplicador. Aliás, a atrofia do mercado interno, ao comprimir escalas de produção, estimular a busca de maior lucro unitário e elevar custos, colabora fortemente para que o Brasil consiga competitividade internacional por meios espúrios como aviltamento salarial, manipulações cambiais e subsídios -, incompatíveis com crescimento sustentado a longo prazo.1

A criação de um mercado interno de massas é a nova face fundamental embora não exclusiva - da questão nacional, marcada em décadas anteriores pela defesa dos recursos naturais e pela opção industrializadora. Os trabalhos disponíveis mostram que são grandes as possibilidades de ajustamento da estrutura produtiva a um maior consumo da população de baixa renda. Lia Hagenauer fez um estudo preliminar sobre os sete grandes complexos que sofreriam maior pressão de demanda e concluiu que os estrangulamentos de oferta tenderiam a ocorrer em casos localizados, que exigiriam uma atenção específica por parte do Estado .2

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12 Mas há o problema do financiamento desse processo, pois investimentos que só vão gerar bens e serviços no futuro exigem gastos no presente. De onde podem sair os recursos necessários? Os mecanismos tradicionais - arrocho salarial, inflação, investimentos públicos diretos, endividamento interno e externo e entrada de capital estrangeiro - não estão disponíveis ou não são eficazes na conjuntura atual. É verdade. Mas isso não quer dizer que nos reste diminuir ainda mais a participação do trabalho (e, conseqüentemente, do consumo) na renda nacional, ou ficar de joelhos pedindo a entrada de capitais externos (que, diga-se de passagem, devem ser bem-vindos, mas não podem constituir a base de nenhum projeto). Essa posição serve para duas coisas. A primeira é consagrar a recessão como estado normal da economia, como se leis objetivas da ciência econômica condenassem o país a viver um processo de autodestruição de sua força de trabalho (e de sua base produtiva) ou, no melhor dos casos, de paralisia. A segunda é justificar nossa posição internacional subalterna, pois se o futuro do Brasil está hipotecado lá fora, só nos resta ceder sempre. É o discurso de elites que, evidentemente, faliram.

O problema do financiamento não é insolúvel. Em primeiro lugar, não é desprezível nossa capacidade de gerar poupança, mesmo na crise (de onde saem os US$ 10 bilhões a US$ 12 bilhões que, a cada ano, são remetidos ilegalmente para fora?). Não temos sabido, no entanto, dirigir essa poupança - mesmo insuficiente - para onde importa, seja pela perda de horizontes de médio e longo prazos (fundamentais para orientar os investimentos), seja pela inadequação do sistema financeiro atual. A falta de projeto nacional, que se tornou proverbial entre nós, pode ser vista como um projeto que não se anuncia, pois permite que alguns sigam fazendo grandes negócios.

Além de minimizar a fuga de capitais (o que provavelmente implica controle sobre o comércio exterior) e reorganizar o sistema financeiro, pode-se mexer no estoque de riquezas acumulado3, utilizar a capacidade ociosa, planejar investimentos que maximizem investimentos já existentes e combater o desperdício (de alimentos no sistema de armazenamento e transporte; de energia na distribuição e consumo inadequados; de gente nos acidentes de trabalho e assim por diante). Isso, provavelmente, não reúne a massa ideal de recursos, mas coloca a economia numa dinâmica de crescimento com os recursos disponíveis, que tendem a ser repostos com acréscimo. Trata-se, como se vê, de caminho muito diferente do defendido pelos que só vêem futuro na importação de dólares e de novas tecnologias.

13 Há muito equívoco sobre este último assunto. Enquanto nosso potencial produtivo já insulado for, como hoje, significativamente maior do que a produção efetivamente realizada, a capacidade está ociosa e não há por que investir. É o investimento e não a retórica - que incorpora e difunde novas tecnologias, aumentando a produtividade do trabalho. Portanto, voltar a crescer com o que temos, fazendo a causalidade fluir da expansão do mercado interno para a produção/produtividade, não é apenas um caminho, mas o único caminho que nos habilita a buscar inserção internacional positiva e modernização verdadeira. Quanto mais essa retomada representar utilização de capacidade ociosa, menos contraditório se torna conciliar investimento e consumo.

Embora importante por motivos estratégicos, a absorção das chamadas novas tecnologias não é, nem de longe, o principal problema que impede a retomada do nosso crescimento, que ainda se dará sobre uma base tradicional, embora moderna, que dominamos bem. Ignácio Rangel tem razão: é sobre essa base que se assenta muito capital investido e não amortizado.4É sobre ela que a próxima fase expansiva pode se dar. Não há nenhuma contradição entre isso e modernização, por dois motivos principais. O primeiro: do ponto de vista da economia como um todo, a mais importante elevação de produtividade a ser feita agora, e a de resposta mais rápida e mais universal, não é a da ponta, mas a que possa difundir-se para amplos setores, hoje marginais. São imensos os ganhos de eficiência e produtividade disponíveis para serem capturados pela economia brasileira através de melhor organização social da produção, maior difusão de técnicas já dominadas etc, com forte impacto positivo sobre o nível de emprego. O segundo: não há porque considerar menores ou menos nobres os desafios tecnológicos a serem enfrentados para que possamos produzir em larga escala alimentos, bens de consumo de massa, energia, transportes coletivos, escolas e medicamentos. Muita informática, muita biotecnologia, muita química fina, cabem aí.

14 Uma proposta desse tipo, dotada de coeficiente de importações relativamente baixo, largamente baseada em tecnologias que a sociedade brasileira detém, capaz de ser traduzida em idéias simples e apontar metas com potencial de universalização, enfrentará, no entanto, duas grandes áreas de impasse: uma econômica, outra institucional.

Comecemos pela primeira. Os exemplos de governos de esquerda que se constituíram dentro da legalidade preexistente - e este parece ser o nosso caminho - são preocupantes: depois de uma fase redistributivista, a experiência se paralisa e se perde. Não é difícil ver por quê. Se os grandes grupos privados ligados ao modelo tradicional mantêm o controle da acumulação e do investimento (que garantem a oferta de emprego e de mercadorias), toda a sociedade continua dependente da sustentação de seus lucros. Qualquer governo, em grau maior ou menor, com mais ou menos ética, tem que ser solidário com eles, adotando mediações. Trata-se de solução e problema: feito por partes e de forma hesitante, o processo distributivo logo mostra sua "irracionalidade".

Em sociedades capitalistas, nunca houve, nem haverá, transição de modelo se os agentes transformadores não puderem exercer controle sobre a taxa de investimento. Isso não se confunde com a defesa de uma economia estatizada, que devemos rejeitar. Em muitos setores, esse controle público pode e deve ser indireto e/ou transitório, levando a redefinir o papel do Estado e do setor privado, inclusive com incremento deste último, seja via desestatização de certas atividades, seja via multiplicação de pequenas e médias propriedades e empresas, com abertura de oportunidades para muitas pessoas com essa vocação. Mesmo grandes empresas podem continuar operando à margem do Estado. Para controlar as variáveis macroeconômicas fundamentais, prover bens e serviços coletivos, induzir distribuição de renda, estabelecer a forma de exploração dos recursos não renováveis, promover o progresso científico e tecnológico e regular o intercâmbio com o exterior, o Estado não precisa deter muito mais do que 25% ou 30% do PIB5.Talvez essa percentagem tenha que ser maior num momento de transição, mas o crescimento econômico subseqüente e a normalização das atividades tenderão a recolocá-la nesse patamar, com a desejável multiplicação de formas não estatais de propriedade.

Outra hipótese clássica é entregar o processo distributivo apenas a políticas governamentais de manejo do excedente (transferências fiscais, políticas sociais e previdenciárias etc). O realismo nos obriga a reconhecer, no entanto, que no Brasil atual esse caminho está bloqueado. O acúmulo de pobreza e desigualdade presente na sociedade brasileira é grande demais, e o excedente disponível para ser distribuído pelo manejo de fluxos é pequeno demais. Para ser eficaz, a transferência de recursos teria que ser tão maciça que desorganizaria o setor moderno da sociedade brasileira - com todas as resistências antepostas a isso - muito antes de elevar substancialmente o padrão de vida do povo.

15 O estoque de desigualdade acumulada e o fluxo das atividades econômicas, faces de um mesmo sistema, reforçam-se mutuamente. A tal ponto que nosso problema econômico mais importante é o de conciliar a dinâmica da distribuição com a dinâmica do crescimento, sem o que o conflito distributivo não terá solução. Isso, como vimos, exige reformas estruturais combinadas com políticas ousadas, ofensivas, sistêmicas. Surge, então, a pergunta: é possível implantá-las mantendo intactas as bases do sistema atual de poder, tanto no Estado como na sociedade civil? A resposta é não. Nossos governos, na feliz expressão de Mangabeira Unger, "são fortes para favorecer e punir, mas são fracos para transformar"6. O Estado brasileiro é agigantado, mas débil. Deixado no bagaço pelas elites que vêm comandando o país, ele perdeu a capacidade de dirigir a sociedade e gasta quase toda sua energia para manter o que lhe resta da capacidade de dirigir a si próprio. Não se trata de problema menor. A reforma do Estado pode ser equiparada em importância às reformas agrária e urbana e ao confisco de parte do estoque de riqueza pelo imposto de solidariedade.

Com efeito, a forma atual de organização dos poderes é toda ela pensada de modo a preservar direitos adquiridos (muitos dos quais foram, na origem, nada mais que privilégios odiosos concedidos a diferentes grupos sociais) e facilitar os impedimentos que uma parte do Estado pode fazer às demais. O controle social sobre esse processo, em tempo real, é virtualmente nulo. Voltando a Mangabeira, "o efeito é estabelecer uma espécie de correspondência perversa entre o alcance transformador de um projeto e a severidade dos obstáculos constitucionais e políticos que se antepõem à sua execução".

Sejamos realistas: nenhuma transformação profunda se faz guiada por um poder paralisado por sua própria estrutura, incapaz de se mobilizar coerentemente no espaço e no tempo. Não se veja nisso uma invectiva contra a democracia, mas apenas o banal reconhecimento de que as instituições não existem nas nuvens, sendo totalmente dependentes do contexto social e cultural em que operam. Uma coisa é reconhecer o valor da democracia, vista como liberdade e pluralismo. Outra, diferente, é afirmar que estes valores estão garantidos no Brasil, sendo encamados e defendidos pelas atuais instituições do nosso Estado e da nossa sociedade civil.

Se queremos transformar a sociedade, precisamos criar um contexto institucional, pelo menos transitório, em que programas de reforma não sejam paralisados pela legislação ordinária que lhes seja anterior, direitos adquiridos sejam revistos, impasses de poder não se multipliquem ao infinito e a política ganhe transparência para o povo, condição de sua participação. E que o controle das variáveis estratégicas da economia nacional não esteja nas mãos dos que não querem mudar. A história ensina à exaustão que projetos parciais e excessivamente "realistas" perdem o ritmo e, com ele, a capacidade de mobilizar o imaginário social, que é o grande ponto de sustentação de qualquer mudança. Com isso, perdem também coerência, hesitam, prolongam-se no tempo, tornam-se ambíguos, geram crises insolúveis - e são derrotados.

Nunca, em parte alguma do mundo, sociedades modificaram a configuração inicial da distribuição da riqueza e da renda sem realizar reorganizações políticas de igual profundidade. A implantação exitosa de um projeto democrático exigirá, entre nós, o mesmo. O atual sistema de poder - que começa na hiperconcentração da riqueza e da terra, passa pelo predomínio dos oligopólios na economia, se reproduz no controle dos meios de comunicação de massa, apresenta poder de corrupção virtualmente ilimitado, garante sobre-representação de oligarquias no Congresso Nacional e tem como reserva um Judiciário conservador - esse sistema de poder, que aprisiona um grande país, tem que dar lugar a um outro, novo, para que o Brasil encontre sua vocação para o desenvolvimento e a democracia. Esse é o caminho para que se crie nova correlação estratégica de forças entre as classes sociais.

16 Nossos adversários extraem muita força do sistema atual, porque têm muito. Pagam caríssimo para comprar partidos cartoriais, estações de TV, cabos eleitorais, profissionais de todo tipo, pesquisas de opinião e consciências. Mas podem vir a ser fracos, porque são poucos. Transformar sua força em fraqueza deve ser nossa meta. Daí a importância de um programa de reformas democráticas que atinja todas as áreas, da terra à informação, da riqueza à cultura, da renda à composição do Congresso Nacional, e assim por diante. Ele nos dará um perfil coerente e firme e, ao mesmo tempo, viabilizará o exercício de uma política de alianças ativa e não casuística. Ajudará, desta forma, a interromper o processo de cooptação política e radicalização sindical do PT, que nos retira o potencial hegemônico e nos leva ao pior dos mundos.

Para que possamos construir um projeto consistente e coerente, muito esforço de formulação global e setorial nos espera, muito trabalho coletivo é necessário. Uma coisa me parece certa: se quisermos evitar que a crise nacional simplesmente nos atropele, precisamos dar a essa discussão um sentido de urgência, deixando para trás a perplexidade e a paralisia, encobertas pela excessiva ideologização dos debates. Perdemos a utopia de fundar o reino da felicidade na Terra, mas não devemos lamentar demais esse fato. Era um fardo pesado de carregar, para dizer o menos. Livres dele, podemos assumir de fato a propalada vocação laica do PT e nos dedicar a coisas mais chás, voltadas para aliviar a canseira da existência humana. Eliminar a miséria e a incultura no tempo de vida de uma geração e devolver dignidade ao país - isso sabemos fazer. Podemos fazer. Vamos fazer. Nossos adversários, não.

Precisamos dizer isso claramente, de forma simples, com idéias centrais capazes de organizar um imaginário alternativo ao do neoliberalismo. Proponho quatro idéias centrais: 1) o Brasil pode se levantar sobre seus próprios pés; 2) é possível harmonizar as necessidades que as pessoas têm de comer melhor, morar melhor e comprar mais bens com as necessidades de nossa economia; 3) para isso é preciso isolar e derrotar os que acumularam fortunas durante a ditadura e a crise dos anos 80, fazendo-os financiar compulsoriamente a retomada promovendo uma reforma patrimonial na sociedade; 4) esse projeto exigirá a construção de novas instituições democráticas e resultará na multiplicação de oportunidades de educação, trabalho e negócios para milhões de pessoas.

A chamada "esquerda" do PT não tem conseguido propor um caminho desse tipo porque não é sincera, não pensa o país. Transforma-se assim num alvo fácil. Trabalha com esquemas ideológicos preconcebidos, formulados a partir de lutas políticas que ocorreram em sociedades muito mais atrasadas que a nossa, sob todos os pontos de vista. Mas a saudável descoberta, por quase todos, dos limites e da não-universalidade do modelo bolchevique tem sido tomada por muitos como a descoberta de uma pretensa universalidade da experiência social-democrata, tal como ocorreu na Europa. Nesse sentido, a "direita" do PT é igualmente insincera. A proposta hoje chamada social-democrata foi sucessivamente derrotada na Europa por cerca de 50 anos. O incremento do imperialismo e da reação, a 1ª Guerra, a Grande Depressão, a consolidação do nazi-fascismo e a 2ª Guerra processos que, combinados, descartaram mais de 120 milhões de pessoas, pela morte ou a emigração - foram as conjunturas que sucederam o anúncio, por Bersntein e Kautsky, do advento de um capitalismo organizado.

Como todos os demais, o projeto social-democrata ganhou vigência em um momento histórico específico. O tecido econômico e social do continente estava em frangalhos; as cidades destruídas; o bloco soviético em aparente expansão; os movimentos populares fortalecidos; as elites dispostas a concessões importantes; os Estados Unidos preparados para oferecer retaguarda econômica, financeira e militar à reconstrução. A social-democracia européia abriu mão da luta pelo socialismo, mas teve o mérito de construir os chamados Estados de Bem-Estar, patrocinando visível distribuição de renda em seus países. Revoluções são eventos raros e excepcionais. Compromissos favoráveis aos de baixo, também o são. Se tentarmos repetir a experiência bolchevique ou social-democrata, faremos caricatura. Neste último caso, não só o socialismo, mas a pura e simples distribuição de renda será adiada para o futuro longínquo, em nome da preservação das instituições.

Pouco nos restará. Preocupados, nas crises, com a governabilidade, quando então proporemos transformações? Quando tudo estiver indo bem?

César Benjamin editou os fascículos de economia, questão agrária e questão urbana do Programa de Governo de Lula.

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