Política

Crítica x fé. O militante precisa ter uma participação independente para poder realizar a mediação entre consciência e ação. Que o 1º Congresso propicie a elaboração de uma nova ética para a atividade política.

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Quando Marx se retirou para seu exílio interior no Museu Britânico, seguiu a estratégia do 'um passo atrás, dois passos à frente’, roubando tempo à política para moldar uma ferramenta a ser depois utilizada na própria política...'De volta ao Museu Britânico' não é um slogan que atraia as massas, mas os marxistas deveriam levá-lo em consideração.
Jon Elster, in Marx hoje.

Em 1880, Engels comparou, em As lutas de classes na França, as perseguições sofridas pelo cristianismo primitivo com as que sofria o movimento operário no século XIX. Esta foi, na história do pensamento socialista, provavelmente, a primeira vez que os apóstolos cristãos constituíram-se em paradigma para considerações sobre a militância política de orientação anticapitalista. A iniciativa encontrou eco. No crepúsculo do século passado, Karl Kautski, em As origens do cristianismo, recuperou o cotejo engelsiano, entre o movimento operário e a Igreja Católica, para indagar, no entanto, se o movimento não reproduziria o processo de burocratização que atingiu a Igreja, na época de Constantino, quando esta se transformou em força espiritual hegemônica na sociedade.

Porém, o próprio Kautski, seguindo a ortodoxia marxista respondia negativamente, após ponderar que a Igreja Católica chegou ao poder num contexto de atrofia das forças produtivas. Ao contrário, segundo ele, o socialismo só conquistaria o poder, impulsionado por um desenvolvimento vertiginoso das forças produtivas, o que projetava, por um lado, o desaparecimento progressivo da divisão social do trabalho, e, por outro, uma verdadeira revolução na cultura ideológica da sociedade. Nessas circunstâncias, afirmava Kautski, dada a universalização da riqueza material e da cultura civilizatória, a burocratização não teria meios de prosperar. O futuro seria melhor para com os militantes do proletariado do que fora o passado para com os apóstolos do cristianismo.

Por sua vez, Rosa Luxemburgo, em O socialismo e as igrejas, folheto escrito logo depois da primeira Revolução Russa (1905), continuou com a comparação, embora demarcando as diferenças de caráter estratégico, na ação de ambos. "Assim, os cristãos dos primeiros séculos eram comunistas fervorosos. Porém era um comunismo baseado no consumo e não no trabalho e se demonstrou incapaz de transformar a sociedade, de pôr fim à desigualdade entre os homens e de derrubar as barreiras que separavam os pobres dos ricos". A ênfase na divergência de estratégia tinha um sentido importante nessa época. Em 1891-92, Noske, um representante influente do anarco-sindicalismo na Alemanha, profetizava, em tom pessimista, uma similitude de destino do movimento operário com a Igreja Católica. Para Noske, as organizações do movimento operário, ao se desenvolverem no decurso da história, se burocratizariam, inelutavelmente, tal qual sucedera com a Igreja Católica.

Por conseguinte, ao postular uma identidade moral entre os cristãos primitivos e os "comunistas" (na linguagem de então) mas, ao mesmo tempo, vincar uma divergência de estratégia na construção da nova sociedade, Rosa Luxemburgo sublinhava a primazia da teoria da práxis, o marxismo, sobre a fé na prática, o cristianismo. Rosa, desse modo, também recriminava, ainda que indiretamente, os seguidores do sindicalismo revolucionário (Sorel e cia.), que, num tom otimista mas ingênuo, sem contarem com uma teoria da práxis, com a fé na prática, se empenhavam em reformar moralmente o mundo, como Sísifo da modernidade. Com efeito, as tendências sindicalistas do princípio desse século, de maneira geral, e em especial a do chamado sindicalismo revolucionário caracterizavam-se por um grande irracionalismo.

Influenciado pela concepção filosófica bergsoniana do "élan vital", da qual Sorel se tinha como um porta-voz, em sua inflexão social, o sindicalismo revolucionário postulava que a natureza do homem devia se expressar em projetos de ação, e não em ideais racionais a serem alcançados. Fazia o elogio da combatividade em si mesma, inspirado numa moralidade militante. O problema do sentido encontrava, empiricamente, uma pseudo-solução na militância do sentido, qualquer que fosse. Não espanta, por isso, que Mussolini tenha confessado que o fascismo devia muito às Reflexões sobre a violência, de Sorel.

É preciso ainda lembrar que o lema do sindicalismo revolucionário se resumia no encorajamento do movimento operário independente, assim entendido, a partir da exclusão dos intelectuais, "cuja direção tenderia por resultado restaurar as hierarquias e dividir a massa dos trabalhadores. A função dos intelectuais é a de auxiliares". Noutros termos, "todo o futuro do socialismo repousa no desenvolvimento autônomo dos sindicatos operários". No movimento sindical brasileiro, no campo e na cidade, já vimos esse filme numa cópia adaptada à nossa realidade histórico-social, através de uma espécie de neo-sindicalismo-revolucionário. Mas, por hora, o que nos importa é destacar que a fé, na prática ativista, e o menosprezo pelas atividades intelectuais, apesar da observação da famosa pensadora polaca, sobre a primazia da teoria da práxis, são elementos que vieram se somar a uma visão apostólica da militância política, de orientação anticapitalista também vivenciada (como demonstram as analogias recorrentes com a Igreja Católica) ao modo de instrumento de expiação e sacrifício pelos pecados do mundo. Nessa atmosfera carregada, é que a questão da militância vai se converter dentro da história do pensamento socialista, cada vez mais, na questão do partido.

Os Super-apóstolos

Lenin, em Que fazer?, ao se contrapor, de um lado, ao utopismo anárquico dos revolucionários populistas russos do final do século XIX e, de outro lado, ao oportunismo evolucionista dos revolucionários que mais tarde ficariam conhecidos como mencheviques, acusa tais correntes do movimento operário popular de conduzirem na atrasada Rússia czarista o proletariado à paralisia e à derrota. Recusa a idéia de que a passagem do capitalismo para o socialismo pudesse decorrer, de modo necessário, de alguma dialética das "leis férreas da história", mediante "fatal e unívoca conclusão das forças objetivas intrínsecas da sociedade capitalista". Para Lenin, o proletariado, através de suas próprias energias políticas, jamais poderia ultrapassar o nível de consciência trade-unionísta, economicista. O nível de consciência comunista, conforme o líder bolchevique, só poderia ser introduzido de fora, o que, de resto, antes de Lenin, já preconizara o depois "renegado" Kautski. Lições, digamos assim, que logo ganhariam uma validade universal, propagada pelo bolchevismo, embora reportassem inicialmente a um contexto determinado.

Em consequência, a função do partido, visando o despertar revolucionário das massas, na qualidade de portador da teoria científica da práxis, seria a de constas mediações táticas entre o nível de consciência trade-unionista e o nível de consciência "comunista". Nas condições históricas repressivas da Rússia czarista, tratava-se de uma tarefa que apenas poderia desempenhar um partido, sob forte centralismo democrático, formado por revolucionários profissionais, com disciplina interna extraordinária, que garantisse tanto uma unidade de ação no movimento operário popular, quanto o segredo, aos olhos da repressão policial. Lenin, depois de 1905-06, flexibiliza em alguns pontos essa concepção blanquista de partido, passando a defender a entrada de trabalhadores assalariados nas instâncias de direção do partido. Em 1907, em um novo prefácio para Que fazer?, ele, inclusive, admite até abertamente que esse livro continha certas expressões "mais ou menos infelizes ou imprecisas".

Porém, Trotski, em 1903, e Rosa Luxemburgo, em 1904, já haviam criticado o centralismo leninista, pela ameaça que representava de autonomização do aparelho do partido, inclinado, por tendência, à auto-conservação da organização como uma finalidade em si mesma. O curioso é que essa crítica profética à tendência de burocratização embutida no blanquismo das formulações de Lenin, em 1902, ainda hoje, sofre desqualificação de parte de alguns dogmáticos que lhe põem a etiqueta de "menchevique" (sic). Tergiversação compreensível em epígonos, mais leninistas do que o próprio.

Mas a discussão sobre a teoria leninista de organização não se resume à tecnicidade de um modelo de práxis política, que viabilize a transição do capitalismo ("ditadura da burguesia") para o socialismo ("ditadura do proletariado"). A importância de Lenin para a tradição marxista, em particular, e para a ciência política, em geral, está em que ele soube, verdadeiramente, destacar a autonomia relativa da práxis política, ou seja, da subjetividade, em relação às estruturas sócio-econômicas da realidade concreta, isto é, a objetividade propriamente dita. Teoricamente, o papel do partido, sob essa perspectiva, tornava-se central para um desenlace revolucionário das massas, nos períodos histórico-conjunturais de crise da dominação burguesa. O reconhecimento da autonomia relativa da práxis política, na teoria, abria a possibilidade da revolução, na prática. Reconhecimento que, na versão do teórico italiano Lucio Magri, pressupunha os seguintes atributos para o partido: ser de classe, de vanguarda e de luta. Stalin, a respeito dessas responsabilidades, colocadas pelo partido sobre os ombros da militância, em um discurso pronunciado por ocasião dos funerais de Lenin, dirá que "nem todos podem resistir aos infortúnios e tempestades a que estão expostos os membros deste partido". Só os super-apóstolos do proletariado, já acostumados à idéia de expiação e de sacrifício pelos pecados do mundo acrescentaríamos nós, sem modificar o conteúdo do panegírico stalinista.

A citação invocada por associação de idéias é propositalmente provocativa. Apesar dos apelos de Lukács e Gramsci, na década dos 20, para a democratização dos PCs, o modelo ultracentralizado, proposto por Lenin em Que fazer?, agravado pelas resoluções do 10º Congresso do PCUS em 1921, prevaleceu na vida real das sociedades pós-capitalistas. Assim, as deformações burocráticas potenciais configuraram-se em ato, na história subseqüente, com o stalinismo. Os revolucionários "vinte e quatro horas por dia", imaginados por Lenin, cederam lugar aos burocratas de turno integral, protocolados por Stalin, guardando em comum, no entanto, uma idêntica a-sociabilidade. No lugar da capacidade de iniciativa do "tribuno do povo", ficaram a predisposição para o cumprimento de normas burocráticas, a obediência aos chefes, a defesa incondicional do aparelho organizacional - além de uma forte desconfiança para com a teoria como tal e de um ranço antiintelectualista e ativista, adquirido pelo hábito de pensar e agir por intermédio de slogans.

Em resumo, a evolução da totalidade dos PCs confirmou, no âmbito do bolchevismo, a análise que Robert Michels, em 1912, empreendera acerca da social-democracia em Political Parties. A saber, que a direção desses partidos realizava a manipulação burocrática de seus crédulos recursos humanos, os militantes. Congressos e encontros, esvaziados de seu poder decisório sobre os rumos futuros do partido, avaliando, quando muito, os rumos do período anterior, transformaram esses eventos em rituais de legitimação das linhas políticas traçadas pelos notáveis. A par disso, encontros desse tipo serviam para reforçar, psicologicamente na militância, o sentimento de identidade ideológica e de pertença à história: na realidade, reduzida ao debate parlamentar pela social-democracia. Entretanto, com os rituais de reforço do sentimento de identidade ideológica e de pertença à história - o "reino do céu" secularizado -, produzia-se, ciclicamente, na militância, a sensação de culpa por não ter atingido todas as metas no cumprimento das tarefas e, por isso, de não ser digna de entrar, talvez, na "casa do Senhor", o socialismo.

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Participação Independente

Lukács e Gramsci na Hungria e Itália respectivamente, viveram uma experiência de burocratização, antes até de Stalin assumir o controle dos PCs do mundo inteiro, através da Internacional Comunista. O que prova que, sob esse aspecto, o stalinismo significou, a rigor, uma maximização da índole bolchevique e não a sua negação absoluta. Em todo caso, é com Lukács, em História e consciência de classe, que a militância política, de orientação anticapitalista, organizada num partido, recebe um estatuto filosófico. Os militantes, desde já identificados com o ser genérico da humanidade, presentificariam o homem do futuro, o que, na caracterização satírica de Cornelius Castoriadis, em A instituição imaginária da sociedade (1975), "mais uma vez seria o Absoluto-Sujeito de Hegel baixado de seu pedestal e andando sobre a terra". A suposição de presentificação teria, aliás, como apólice de seguro, a adesão a uma ética hegeliano-marxista, para a qual o mal consistiria no indivíduo cuidar de si próprio como um singular - sem consideração para com seu álter-ego, a exemplo do que acontece nas sociedades reguladas pelo mercado. Evidentemente, o administrador dessa empresa ética deveria ser o partido, para o qual todos renderiam submissão voluntária, a fim de escapar à condenação de "individualismo intelectual burguês", que Lenin, certa vez, lançara contra Martov.

Em conclusão, numa época em que o nível de democracia e de moralidade caia, assustadoramente, nas relações internas dos PCs existentes, voltou à cena, por outras vias, revestida de uma linguagem filosófica, a visão de militância apostólica e sua antiga idéia de expiação e sacrifício purgatório. Desta vez, ainda mais sobrecarregada de "sentido", já que, à fé pela prática ativista e ao menosprezo pelas atividades intelectuais, juntaram-se novos predicados, vale dizer, na expressão de bronze de Stalin: "o grande título de ser membro do Partido" - com pé maiúsculo. Logo, a responsabilidade estóica de ser, hoje, o que todos nós seremos, amanhã, pela redenção "comunista". Como se nota, a idealização lukacsiana da militância teve um depositário, em contraste com as pretensões do autor, pois acabou por reforçar a manipulação burocrática do material humano crédulo, os militantes. A dialética pretendida entre a solidariedade ao coletivo e a liberdade individual conduziu a uma absorção total, trágica, da personalidade do "herói" (cada um dos militantes) pelas exigências gerais do "destino" (fixado por uma entidade transcendente, a burocracia).

Decerto, um partido burocraticamente degenerado, com militantes limitados a uma participação dependente das palavras de ordem proferidas pelos centros superiores de decisão, reproduz a alienação da sociedade capitalista. A participação dependente, essência, em nosso entendimento, do fenômeno da alienação, oculta-se sob a capa de uma hierarquia apresentada como sendo puramente funcional, em nome da causa compartilhada, diluindo a clivagem entre dominantes e dominados. O que, no quadro de uma organização "comunista", entre indivíduos que acreditam em sua condição de militantes, toma essa clivagem, para Claude Lefort, em As formas da história (1979), de difícil decifração.

Na intimidade de uma organização ou de um partido de esquerda é como se a socialização, forjada pela razão militante, pudesse eliminar as determinações de classe e os mecanismos ideológicos de reprodução da alienação. Ora, nesse campo também se estabelecem relações sociais com os traços da sociedade que desejamos combater. Sua superação, exige, entretanto, uma disposição permanente para a crítica e para a educação, em uma acepção ampla, contra a fossilização política e moral - o que, óbvia e regimentalmente, deve ser garantido em todas as instâncias da vida partidária. Sob esse enfoque, os apelos à observação de uma ética, nas relações intramilitantes de um partido revolucionário, denuncia a sua ausência e, simultaneamente, testemunham a presença de traços pequeno-burgueses, involuntariamente, reproduzidos.

O militante precisa ter uma participação independente para poder realizar a mediação entre a consciência e a ação, sem o que, sequer, poderá reivindicar uma ética. No interior do partido de que participa, as decisões devem partir dele, na 'base", e não de instâncias superiores, fetichizadas por uma auréola de sabedoria porque compostas de notáveis. De outra forma, os movimentos sociais não poderão esperar da parte do militante a maturidade política de um dirigente. O partido não poderá esperar que seu próprio corpo político estabelecer; rousseaunianamente, uma vontade geral, estatal.

Para satisfazer essas expectativas, nas sociedades modernas, é preciso, convém insistir, uma revisão dos predicados tradicionalmente incorporados ao perfil da militância. Isto implica antes o exercício crítico da teoria da práxis, que a fé na prática; antes a dedicação às atividades intelectuais que a urgência ativista; antes o orgulho pela condição de revolucionário, na teoria e na prática, que o "título de membro do partido". Não sendo, ainda, despropositado, juntar a essa revisão uma maior abertura à sociabilidade e até às regras convencionais de educação, no trato humano como nas discussões políticas.

A unidade de ação de um partido, na modernidade, não pode ser assegurada, pura e simplesmente, pelos dispositivos disciplinares. Se é verdade, conforme disse Marx, que o homem se transforma ao transformar o mundo, então, um partido que se pretenda revolucionário e de massas deve criar, internamente, as condições para esse auto-desenvolvimento. Não basta que ele já seja de classe, de vanguarda e de luta, se sua experiência interna em nada contribui para criar o embrião de uma nova cultura ideológica. Só uma esquerda arcaica pode se furtar a essas obrigações políticas e morais, com o pretexto empobrecedor de que elas nos remeteriam a um "individualismo intelectual burguês", logo, à desagregação. O elogio sub-reptício da participação dependente, contido numa tal "acusação", interessa, exclusivamente, à manipulação burocrática, mas não àqueles que buscam praticar, conscientemente, o sentido da militância política de orientação anticapitalista.

Os apóstolos cristãos que se dirigiam aos corações, podiam prescindir da teoria. Os militantes revolucionários, dirigimo-nos aos corações e às mentes dos trabalhadores para construir uma nova cultura ideológica na virada do milênio. Aprendemos que a ignorância pode ser eventualmente generosa, mas não o fundamento de uma radicalidade libertária, capaz de representar a batalha pela ampliação dos direitos civis, políticos e sociais, sem o semblante de quem carrega as dores da humanidade ou a melancolia de que nos falava Walter Benjamin. Ora, somente num partido que tenha como objetivo maior a elaboração estratégica de uma teoria da revolução será possível cultivar o perfil de militância que pleiteamos. As lides organizativas, junto aos trabalhadores, e a disciplina partidária são momentos dessa elaboração intelectual, não substitutivos como prega a manipulação burocrática.

Eis o desafio colocado, em nosso país, para o futuro do Partido dos Trabalhadores, desde que, este não venha permitir que o "direito de tendências", em seu interior, o transforme numa "federação de tendências", que venha a sufocar toda participação independente da militância. Que o 1º Congresso - esse metafórico retiro para o Museu Britânico - por parte dos construtores de uma alternativa socialista, à crise brasileira, sob esse ângulo, seja também "pragmático".

J. Luiz Marques é professor de Ciências Políticas da Universidade Federal do Rio Grande do Sul e autor de Elogio da Utopia.

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