Internacional

"O programa dos Verdes traz a herança da extrema esquerda francesa" - Entrevista Alain Lipietz

O mundo se transforma rapidamente. Crise do 'socialismo real', fim da Guerra Fria multipolaridade, novas tecnologias e sistemas de trabalho, degradação do meio ambiente etc. A velha Europa mais uma vez ocupa um papel central nesse processo em que se delineiam traços do novo século. Quais as perspectivas de atuação da esquerda nesse novo contexto? Teoria & Debate, consciente da importância desses processos e da forte incidência que eles têm sobre nosso país, abre nesse número suas páginas para o economista e militante francês Alain Lipietz. Estudioso e participante ativo desses movimentos, Lipietz esteve várias vezes no Brasil onde acompanhou com simpatia a evolução do PT. Em sua última passagem por aqui, em junho, ele nos concedeu a entrevista que se segue.

Qual é a sua formação?
Sou economista de profissão e politicamente venho da extrema esquerda. Após 68, participei de um movimento maoísta até os anos 70, e como todas as organizações revolucionárias da Europa, entramos em crise em meados dos anos 70. Durante uma dezena de anos participei de todos os debates de refundação da esquerda revolucionária. Nós tentamos reunir todos os movimentos sociais, o que quer dizer a extrema esquerda que tinha feito autocrítica em relação ao stalinismo, o feminismo, o movimento terceiro-mundista e o movimento ecológico. Considerei, a partir de 1986, que o movimento verdadeiramente unificador que havia na Europa, para todas as forças que contestavam o sistema - digo bem, na Europa - era a ecologia política. Assim, entrei para o Partido Verde. Fui em 86, pela primeira vez, o "candidato dos Verdes" para toda uma grande circunscrição. Na época, eles representavam, na França, em torno de 12%. Logo, quase duas vezes mais que o Partido Comunista Francês, sendo, no Parlamento Europeu, a força principal de oposição ao consenso capitalista. Esta é uma situação que ocorre, um pouco, em toda a Europa, exceto na Itália, onde o Partido Comunista soube guardar uma grande importância, mas ao preço de um enorme ecletismo ideológico. Sou, portanto, desses que pensam que a força política de oposição ao capitalismo, no futuro, na Europa, será o movimento de ecologia política. Sou porta-voz da Comissão Econômica dos Verdes. O nosso programa econômico e social traz toda uma herança da extrema esquerda francesa. Isto se baseia numa análise mais aprofundada de uma certa fraqueza do marxismo tradicional e na preocupação de considerar que mesmo na crítica do capitalismo, feita pelo movimento operário, havia insuficiências, especialmente no que se refere ao futuro do planeta, na questão sexual etc. Portanto, é de fato uma mudança do paradigma, algo estratégico. É claro que esta característica, totalmente anticapitalista da ecologia política, na Europa, nos leva quase naturalmente a ter uma relação particular, difícil aliás, com as forças tradicionais do movimento operário. O Partido Socialista Francês apoiou a Guerra do Golfo; a oposição à Guerra foi assim co-dirigida pelo Partido Comunista Francês e pelos Verdes. Foi uma aliança, evidentemente, conflituosa, porque o Partido Comunista não foi, a nosso ver, suficientemente crítico em relação a Baath iraquiano.

Você fala de uma certa herança política, mas há também uma certa herança intelectual. Você faz parte de um grupo de economistas que desenvolve uma nova abordagem da crítica do capitalismo justamente a partir das insuficiências do marxismo...
Sou um economista de origem marxista. Nós tentamos superar as insuficiências do marxismo que herdamos, que não é verdadeiramente o marxismo stalinista. Já era alguma coisa transformada, em primeiro lugar, pela crítica da revolução cultural chinesa, do guevarismo, particularmente, a crítica da teoria das forças produtivas: que bastava desenvolver as forças produtivas, para chegar ao socialismo. Nós notamos que o capitalismo era algo bem menos simples do que se dizia. Na realidade, o capitalismo tinha evoluído, de compromisso em compromisso entre o capital e a classe operária. Uma reprodução do capitalismo implica, de certa maneira, o acordo implícito ou explícito de uma parte do movimento operário: o que nós chamamos um compromisso institucionalizado. Por exemplo, o movimento operário nasceu, na França, na recusa da relação assalariada; ainda está nas palavras de ordem da CGT, um grande sindicato francês, uma abolição. Desde o fim do século XIX, porém, a classe operária passou a aceitá-lo e hoje, a meu ver, ela aceitou em demasia, ou seja, o sindicato e o Partido Comunista Francês recusam a idéia de que os operários possam criar suas próprias empresas. É um paradoxo: o movimento francês começou como um movimento cooperativista, de operários que tinham domínio técnico, que não queriam entrar na relação assalariada, que queriam criar seus próprios empregos e depois de 1930, de maneira definitiva, o movimento operário francês considera que não é tarefa dos operários criar empregos, se ocupar da organização do trabalho. É uma reviravolta completa. Portanto, desenvolvemos, enquanto intelectuais, toda uma teoria da história do capitalismo como sucessão de modelos de desenvolvimento, sendo cada modelo um modo de resolver contradições do capitalismo. Acredito que a noção de modo de regulamentação, ou seja, a maneira pela qual, a cada dia, são reguladas as contradições, é o que caracteriza um pouco nossa escola, é o que faz com que ela seja internacionalmente conhecida como "Escola Francesa da Regulação". Eu insisto, de qualquer modo em um ponto: os "regulacionistas" - se vocês o chamarem assim - não têm as mesmas opiniões políticas. Alguns são Verdes, outros são vermelhos e Verdes, outros são rosas, ou seja, algumas vezes estão no coração do Partido Socialista. No plano internacional, um dos fundadores da Escola, é Carlos Ominami, chileno que estava refugiado, hoje, ministro da Economia no Chile. Eu represento, um pouco, com Phillipe Zariphiant, a ala mais radical disso que, profissionalmente, chamamos de Escola da Regulação. Mas não se pode dizer que essa Escola esteja identificada com uma tomada de posição política. Temos um ponto em comum, no que dizemos que o antigo tipo de relação - dos operários com seu trabalho e do capital com os operamos - está caduco. Mas não estamos de acordo sobre qual o novo tipo de compromisso que se deve ter.

Uma das tradições que você traz, com a qual você teve choques, comporta uma visão catastrófica na análise econômica do capitalismo.
Precisamente. A Escola da Regulação nasceu com a crise do modelo de desenvolvimento do pós-guerra e a questão que nos colocamos, em primeiro lugar, é: por que esta crise não chegou antes? Nos apercebemos que o capitalismo tinha encontrado, após a Segunda Guerra Mundial, o meio de superar um certo tipo de crise - identificada por Marx -, que era a de superprodução, causada pelo subconsumo; não havia compradores suficientes, portanto, há crise. É justamente o tipo de análise feita por Rosa Luxemburgo, por exemplo, que é freqüentemente utilizado como argumento pelos marxistas e que também lhes serve para explicar o imperialismo. Os marxistas explicavam o imperialismo como uma maneira de resolver a tendência à superprodução. Nós mostramos que, após a Segunda Guerra Mundial, o modelo de desenvolvimento que se colocou no lugar resolvia esta contradição do capitalismo de uma maneira totalmente imprevista. Se não houve crise no capitalismo do norte, entre 1950 e 1970, é porque o capitalismo encontrou um meio de não explorar em demasia a classe operária. Dito de outro modo, houve uma conjunção entre três coisas: em primeiro lugar, o capitalismo encontrou, no início do século, um meio de fazer a classe operária produzir muitas mercadorias e muito rapidamente. Isto é o que chamamos de taylorismo, forma de organização do trabalho, na qual os engenheiros concebem e os operários executam. Essa maneira muito eficaz de produzir, sob o capitalismo, provocou, efetivamente, a grande crise de subconsumo e de superprodução de 1930. Pode-se dizer que a grande crise dos anos 30 e a Segunda Guerra Mundial representaram uma espécie de guerra civil, em escala mundial. Entre as várias soluções para a crise. A que ganhou foi uma mistura de social-democrata e de iniciativa da facção progressista do capital, que consistia em dizer: "bom, a solução é aumentar regularmente o poder de compra dos assalariados". Esta solução, evidentemente, era defendida há muito tempo no movimento operário pela social-democracia, mas foi cada vez mais defendida, por banqueiros, como Keynes, e por industriais, como Ford. Por isso, esse modelo é chamado de desenvolvimento fordista. Foi Gramsci quem deu, aliás, esse nome. Mas, evidentemente, para que os assalariados vejam seu poder de compra aumentado, é preciso que os empresários aceitem, de maneira coordenada, aumentar o salário de seus empregados. Não é possível que cada patrão tenha o problema: "se eu elevo o poder de compra dos meus assalariados e se meus concorrentes não o fazem, eu vou ser derrubado pela concorrência". Portanto, é preciso uma rede de forças coercitivas, de obrigações, o que chamamos de modo de regulação, que obriga os países a aumentar os salários ao mesmo tempo: é a convenção coletiva, é o Estado assistencialista, a legislação social. Enfim, é a participação da classe operária e das forças progressistas na batalha contra a outra solução à crise, isto é, o nazismo, o fascismo. Foi a participação das forças populares, na França com a Resistência, na Inglaterra e nos Estados Unidos, com o apoio de Roosevelt, que permitiu à classe operária esse compromisso. É preciso observar que, no caso dos Estados Unidos, esse compromisso "fordiano" levou à transformação da classe operária em aristocracia operária: é a AFL-CIO. Para os países bem mais pobres, como a França de 1945 a 1950, esse compromisso só foi obtido por uma batalha permanente dos assalariados. Enquanto a AFL-CIO estava no poder, ilustre e rica, os sindicatos franceses se confrontavam com greves muito duras. Mas, o resultado foi quase o mesmo. Esse grande compromisso andou muito bem, durante trinta anos; a classe operária viu seu poder de compra triplicar na França. Como esse compromisso se arrebentou? Há duas razões e uma grande parte da crise do sindicalismo vem da incapacidade de analisar essas razões e de responder à altura. A primeira que é suficientemente fácil de compreender, é que o compromisso era nacional - há a legislação, o Estado assistencialista, o salário-mínimo etc - e está baseado na idéia de que quando o patronato dá mais dinheiro aos assalariados, eles compram mais mercadorias do capital. Pode-se acelerar e ampliar a escala da produção, aumentar a produtividade e o lucro aumenta ao mesmo tempo que o poder de compra. Isto é verdade em economias relativamente autocentradas. Quando a economia se internacionaliza esse compromisso se torna impossível, e a grande tentação para o capital é quebrar o Estado assistencialista, repudiar as convenções coletivas, flexibilizar as relações salariais. As relações eram muito rígidas, agora, flexibilizam-se. É a posição que foi adotada pela maioria das elites mundiais no fim dos anos 70, experimentada, na Argentina e sobretudo no Chile. Colocada em prática, em seguida, na Grã-Bretanha, nos Estados Unidos e, a partir de 1983, na França socialista. Os social-democratas, tendo chegado ao poder, tentaram relançar o velho compromisso. Perceberam que a balança comercial os impedia de fazer essa política e, portanto, caíram para o lado da flexibilização, do liberalismo. O segundo problema da crise do fordismo é a crise da forma de organização do trabalho. O taylorismo foi baseado numa divisão entre os que pensam e os que executam, os engenheiros e os operários, estes sem qualificação importante. Para um capitalista, seria muito mais interessante ter um operário que pensa, que reflete, que participa na ativação das forças produtivas de maneira mais eficiente, que zela pela qualidade do produto. É evidente que quanto mais a relação assalariada é flexível, menos é possível, para o capital, obter a participação do assalariado na batalha pela produtividade e pela qualidade, pois, para que ele participe na melhoria do processo produtivo, é preciso que tenha um interesse de longo prazo no sucesso da empresa na qual trabalha.

É a ligação japonesa?
Justamente! Se Taylor era contra, é porque evidentemente a implicação do assalariado na ativação das forças produtivas leva a reforçar o seu poder de negociação. Portanto, Taylor preferia um assalariado obediente e que não soubesse fazer nada do que um que soubesse organizar o trabalho e fosse capaz de contestar a autoridade patronal. A posição de Taylor tinha sido, de fato, adotada pela União Soviética. A URSS, em particular Lenin, tinha razões muito boas para isso, visando transformar os camponeses, que na indústria não sabiam fazer nada, em operários.

O taylorismo é, para os soviéticos, um método que permite acelerar a industrialização. Para Stalin isso se transforma no contrário: o taylorismo se torna um método para impedir o controle pelos operários de suas próprias fábricas, que são formalmente as fábricas do proletariado. É o que faz com que, a partir de 1930, Stalin e a Internacional Sindical Vermelha ataquem no movimento sindical francês, italiano, inglês, inclusive alemão, as posições acusadas de "anarco-sindicalistas", que consideram que o operário deve se defender para conservar o domínio de sua gestão produtiva. Vejam que, por uma confluência de motivos muito bizarros, o taylorismo, a social-democracia clássica, a AFL-CIO e o stalinismo eram contra a implicação dos assalariados. Entretanto, a partir do fim dos anos 70, um certo número de patrões, de início em empresas isoladas, depois em países inteiros, passa a ter o seguinte raciocínio: "Nós estamos em crise, não somente por causa da internacionalização, há também uma crise de organização do trabalho. Com o taylorismo, nós somos obrigados a comprar máquinas cada vez mais caras, por exemplo, robôs, que os operários taylorizados não sabem colocar em atividade. Se um, robô entra em pane, somos obrigados a ir procurar um engenheiro que mora, às vezes, a milhares de quilômetros, para o recolocar em funcionamento. Portanto, seria infinitamente mais inteligente obter da parte de meu assalariado, primeiro, que ele seja qualificado, que ele seja capaz de diagnosticar a pane do robô e, talvez, mesmo repará-lo e participar da sua melhoria; sobretudo, que seja capaz de gerir o processo produtivo, relativamente complexo, no interior dos estabelecimentos". Evidentemente, é uma aposta radicalmente oposta à da flexibilidade. Se se quiser, certos economistas falam de flexibilidade interna, porque se conserva o mesmo pessoal, mas se muda completamente a sua qualificação. Espera-se dele que seja capaz de intervir em todos os aspectos da organização do trabalho. O problema, evidentemente, é o que se dá em troca ao assalariado. Se pedimos ao assalariado para participar na batalha pela produtividade e pela qualidade do produto trata-se exatamente do que Marx chama de "trabalho qualificado", que é mais caro do que o trabalho simples. O trabalho taylorizado era o paroxismo do trabalho simples, a sua realização. O trabalho, tal como esse tipo de empresário começa a procurar, é, pelo contrário, um trabalho muito qualificado, que leva potencialmente a devolver um enorme poder de negociação aos assalariados, pois, lhes dá a possibilidade de fazer uma "operação padrão". Basta que o assalariado observe as regras para que tudo entre em pane num tal sistema, visto que a máquina só funciona se o assalariado inventa sem parar, resolve problemas sem parar. Portanto, a questão fundamental, que se coloca para esses outros capitalistas, era em que nível negociar? O que darão os assalariados, em troca? Em geral dependendo do nível da negociação, determina-se, parcialmente, o que é que se vai dar em troca. Há um primeiro tipo de negociação que é individual: diz-se a um operário: "se você é inventiva, se você dá idéias, se você é bem sucedido nas coisas, você tem prêmios, você tem vantagens de carreira". É o que chamamos, em francês, individualização da relação assalariada. O problema da individualização é que isto não é adequado às formas de organização do trabalho, que são muito coletivas na realidade. Você vê como numa fábrica japonesa, por exemplo, a Toyota, cada assalariado deve pensar permanentemente, não somente na maneira de melhorar sua força de trabalho, mas também na articulação com todos os outros. Portanto, não é possível negociar individualmente para chegarmos à ótima utilização das instalações capitalistas. Logo, a segunda solução é negociar coletivamente, isto é por empresa. É o modelo japonês, por ramo industrial; é o modelo alemão; ou coletivamente, por inteiro - é o modelo da Suécia ou, um pouco, da Emilia Romagna, na Itália. Evidentemente, na medida em que a negociação passa do individual para uma forma de negociação coletiva, nós nos deslocamos, na realidade, da direita à esquerda.

Pode-se pensar que, atualmente, a Suécia ou a Itália do Norte represente o pólo mais avançado das conquistas sindicais. Então, no inicio dos anos 70, havia essas duas soluções que se opunham à solução da flexibilização e da implicação negociada. São os países da implicação negociada que ganharam a guerra intercapitalista dos anos 80. Todos os países que tinham escolhido a flexibilização - os Estados Unidos, a Grã-Bretanha, a França - são hoje países que perdem velocidade. São países onde, certamente, a taxa de lucros foi restabelecida, mas são também aqueles com um déficit da balança comercial que aumenta, mês a mês. Desde 1985, os Estados Unidos acumulam 10 bilhões de dólares de déficit comercial, por mês, o que faz com que, hoje, eles tenham um total de dívida, frente ao resto do mundo, maior que a metade da dívida do Terceiro Mundo. Praticamente, eles dependem, no dia-a-dia, de empréstimos alemãos e japoneses. A Inglaterra está numa situação não muito diferente e a da França é um pouco menos grave. Ao contrário, países como o Japão, a Alemanha, os que chamamos o Arco Alpino - a Suíça, a Áustria e a Itália do Norte - e os da Escandinávia são países que têm equilíbrio comercial ou um grande excedente. O mais forte é, evidentemente, do Japão que conseguiu acumular, um pouco, as vantagens dos dois modelos. O Japão pratica a implicação negociada nas grandes empresas, para os homens. Pode-se dizer que nas grandes empresas há, praticamente, só homens e no sindicalismo japonês, também. As mulheres estão no enorme sistema da sub-contratação, é o modelo da flexibilização. Trata-se de uma sociedade dual, conforme o sexo. É o que faz com que o Japão tenha todas as vantagens ao mesmo tempo. O funcionamento de todas as indústrias um pouco sofisticadas é feito por homens. Tem-se o emprego, por toda a vida, com o maior salário do mundo. E tudo o que é indústria banalizada, que deve servir à indústria de exportação de alta tecnologia, fornecendo peças, é feito nas pequenas e médias empresas pelas mulheres, com uma forma de trabalho bem flexível. É o que faz com que o Japão ganhe um pouco dos dois lados: o baixo salário para as mulheres, mais flexibilidade; e salários muito altos e muita implicação para os homens, nas grandes empresas. No sul, durante os anos 70 e 80, vimos se instalar, em alguns países, a industrialização através do taylorismo. É o que chamamos de os novos países industrializados. O Brasil participou deste movimento e a Coréia também. A Coréia que esteve, em 1980, mais endividada que o Brasil, em relação a seu Produto Nacional Bruto, está, hoje, sem dívida e agora é uma exportadora líquida de capitais, como Taiwan que também empresta aos Estados Unidos. Isto por que esses países conseguiram juntar uma flexibilidade bastante alta, junto às mulheres, e uma transição em direção à forma de implicação dos trabalhadores, junto aos homens. Isto levou, aliás, a uma cisão do sindicalismo coreano. Há um sindicalismo de mulheres, sustentado pela igreja, com uma idéia de defesa contra a exploração; e há um movimento operário, não muito diferente, aliás, do PT original, de operários muito qualificados. Foram estes operários que fizeram revolução em 85, 87, na Coréia, e agora ganham 10% de poder de compra, a cada ano. A Coréia se desenvolve com base no seu mercado interno, com um governo de direita e uma oposição sindical de esquerda, muito radical e que lhe permite substituir, pouco a pouco, seu mercado exterior por um desenvolvimento do mercado interno. O que não lhe causa problemas, já que ela não está mais endividada, graças às suas exportações, no período anterior.

Entretanto, é preciso notar que, no quadro atual da Coréia, o que é explosivo é a requalificação muito rápida da classe operária, um pouco à maneira japonesa. Porém, ainda muito longe do Japão, já que é, apesar de tudo, um país de renda per capita de 4 mil dólares anuais, enquanto o Japão tem cerca de 17 mil, agora. Nas devidas proporções, a Coréia seguiu a via japonesa, enquanto o México ou o Brasil, até o momento, seguiram, sobretudo, a via americana, quer dizer, obedeceram a uma convergência de toda a América - do Norte e do Sul - na direção de um modelo de flexibilização, seguindo um padrão derrotado internacionalmente. Os países que fizeram a Guerra do Golfo são países perdedores. A Alemanha, o Japão, a Escandinávia, o Arco Alpino não participaram da Guerra do Golfo. Se foi o caso, deram dinheiro, pois é necessário comprar algo dos Estados Unidos, quase à força. Mas o problema dos Estados Unidos é um pouco o problema de todos os países endividados. Num dado momento, os outros são obrigados a lhes comprar qualquer coisa, se quiserem ser reembolsados. Assim, o Japão devia comprar algo deles para ser reembolsado, um pouco, de todo o empréstimo que fez aos Estados. Unidos. O que os Estados Unidos podem dar ao Japão? Arroz ou exército? O Japão, até agora, recusou o arroz e aceitou pagar, um pouco, o exército. Como se diz, os Estados Unidos tomam-se uma espécie de mercenário forçado do Japão e da Alemanha.

Um país de serviços?
É uma exportação de bens de serviço. Isto rende, aliás, 52 bilhões de dólares, ou seja, meio ano de déficit comercial norte-americano. Isto custou 30 bilhões de dólares e não é muito, porque, além do mais, eles são ladrões, vendem muito mais caro.

Eles têm o monopólio, apesar de tudo.
Têm o monopólio. Então, creio que isto coloca a questão do que será o imperialismo, doravante. De início, eu acredito que ele será duravelmente multipolar. Quando se está na América do Sul, é evidente que o peso dos Estados Unidos é enorme. Mas quando se vai à Ásia, que é dez vezes mais populosa que a América do Sul, é o do Japão. Eu estive lá, no momento da mobilização para a Guerra do Golfo, em outubro último. O governo estava interessado na idéia de mudar a Constituição para enviar tropas contra o Iraque. Era a ocasião para retomar um certo poder militar. As forças da oposição de esquerda, enfim, progressistas, no Japão, que são essencialmente o movimento de mulheres, o movimento ecologista e um pouco do que resta do movimento sindical autônomo, se opuseram, mas o governo insistia. Foi suficiente, durante dois dias, que todas as novas zonas de influência japonesas, ou seja, as duas Chinas, as duas Coréias, a Indonésia, a Malásia declarassem: "nós não desejamos ver o Japão retomar a um papel de potência militar", e em dois dias isto foi resolvido. E o Japão disse: 'bem, se nós enviarmos tropas ao exterior, desagradaremos nossos amigos, então renunciaremos a este projeto". Ou seja, é uma dominação pela pura tecnologia e não pela força. É um modelo capitalista economicista puro muito eficaz. No conjunto da Ásia, esse modelo é considerado como o melhor, invejado pela China, Malásia, Indonésia. É uma verdadeira hegemonia, no sentido cultural do termo, ninguém pensa em outra coisa a não ser em fazer como o Japão. Ele não necessita ter força bélica, nessas condições. Em contrapartida, os Estados Unidos são um modelo, apenas para os países do Leste. Portanto, temos uma dupla multipolaridade da dominação capitalista sobre o mundo. Uma multipolaridade geográfica, ou seja, ao Japão se reserva a Ásia; a Europa toma a África, uma parte do Oriente Médio e o novo 'Terceiro Mundo", o que se tornou o antigo campo socialista. E os Estados Unidos guardam toda a América. Esta é a multipolaridade geográfica que se desenhou, há 20 anos. Mas a ela se superpõe uma multipolaridade funcional. De uma certa maneira, a Alemanha e o Japão tomam-se os ministros de forças e os Estados Unidos tornam-se o ministro da polícia. Isto permite jogar com as contradições desses diferentes pólos funcionais e geográficos. Então, a grande derrota que nós sofremos, em particular as forças progressistas européias, na Guerra do Golfo, é que o pólo norte-americano foi capaz de fazer o que queria, sem que os outros se opusessem. Os outros ficaram totalmente neutros. A Alemanha perguntou à França o que deveria fazer, já que na Europa há, um pouco, a mesma divisão multifuncional do trabalho: a Alemanha é o primeiro-ministro, o ministro da economia, e a França é o ministro das relações com o Terceiro Mundo. Mitterrand disse: "tanto pior se há a guerra, mas não há alternativas". A Alemanha disse: "bom, já que você acredita que precisamos fazer a guerra façamos a guerra". E eles mandaram dinheiro. Não era uma coisa tranqüila. Durante três, quatro meses, o Parlamento Europeu esteve muito dividido. Os Verdes foram capazes, num certo momento, de reagrupar um terço dos votos contra a guerra, somando-se a metade da social-democracia alemã ao Partido Trabalhista inglês e ao Partido Comunista Italiano. Hoje, temos a impressão de que há uma nova hegemonia americana. Acredito que ela seja muito frágil, transitória, em escala mundial. Não devemos nos assustar com a sua força. Mas, é claro que na América Latina é diferente. Aí os Estados Unidos controlam muito mais o jogo.

Há notícias sobre o começo de uma crise, entre os sindicatos e o partido social-democrata, na Suécia. E você citou a Suécia como um dos países mas avançados.
Acredito que a Suécia chegou a um ponto que o compromisso capital/trabalho é o mais insustentável no quadro da concorrência mundial. O fato de que os dois modelos possam coexistir, o modelo flexível e o de implicação negociada, vêm de que há uma certa arbitragem possível entre um trabalho pouco qualificado com um salário muito baixo e um trabalho muito qualificado com um salário muito alto. É o que faz com que a Suécia possa, apesar das vantagens sociais consideráveis, continuar competitiva. O problema é que ela está exatamente no limite. No momento é o último nível de compromisso compatível antes que se torne inabsorvível pelo capitalismo. Parece que a Suécia está permanentemente à beira de se tornar incompatível com a concorrência internacional. É preciso notar bem que a Suécia é totalmente aberta. Não é um país que se protege, que protege seus compromissos sociais atrás de barreiras alfandegárias, é um país livre-cambista. Portanto, é um país que paga bastante seus operários, porque eles são altamente qualificados e, a cada momento, correm o risco de que os operários um pouco menos qualificados, com um salário menor, sejam mais competitivos que os operários suecos. A Suécia está permanentemente correndo o risco de ficar um pouco cara demais para o mercado.

É um país que taxa pesadamente sua burguesia.
Sim. A grande diferença entre a negociação individual, a negociação por empresa, a negociação por ramo, a negociação por território diz respeito, evidentemente, à socialização do compromisso. No Japão, o salário de um operário da Toyota está entre os mais elevados do mundo, mas, só um operário dessa indústria ganha isso. Dito de outra maneira, o sindicalismo da Toyota, que era um dos mais combativos do mundo, deu lugar à nova aristocracia operária mundial, ou seja, é praticamente apenas um sindicalismo de pura e simples co-gestão, onde a contestação operária é muito fraca. O operário da Toyota não é muito duramente explorado. Eu visitei uma de suas fábricas e conheço o trabalho na indústria automobilística francesa. Os seus operários trabalham de maneira menos fatigante que o operário francês e ganham uma vez e meia o que eu ganho. Portanto, nessa fábrica, o compromisso é muito vantajoso e não o é no resto da sociedade japonesa. Enquanto na Suécia, quando o compromisso é acertado entre o sindicato, o patronato e o governo, ele é válido para toda o país, homens e mulheres, assalariados e desempregados. É um compromisso de toda a sociedade e por isso, muito mais custoso para o patronato sueco do que para o japonês. O Japão não tem o Estado assistencialista, a não ser mediante o preço do arroz. É o que podemos chamar de rizicultura assistencialista. Portanto, o compromisso sueco é muito mais caro para o capital e não é evidente que ele seja sustentável na concorrência internacional a longo prazo.

E a Alemanha, como você avalia esse novo quadro pós-unificação?
No caso da Alemanha é diferente, já que o compromisso é feito por setor. O IG Metall, que é o sindicato mais poderoso do mundo é capaz de negociar compromissos muito vantajosos. Mas no setor que chamamos "empresas de serviços", ou seja, aquelas que vão limpar, que vão fazer todos os trabalhos "asquerosos" dentro da empresa é diferente; lá estão os turcos, não-sindicalizados. A situação da Alemanha é intermediária entre a do Japão e a da Suécia. Dá-se uma negociação por setor, onde praticamente todos os homens alemães e mesmo muitas mulheres são bem protegidos, mas os turcos não. Então, é aí que o desmoronamento do bloco soviético vem interferir na questão. Mas, o que seria, de fato, esse bloco socialista? A meu ver, um capitalismo de Estado, que tinha vivido durante muito tempo na base de uma substituição total de importação com um protecionismo integral. Portanto, era totalmente possível ter o pleno emprego, porque seus produtos seriam comprados mesmo que não fossem muito interessantes. Tinha-se dinheiro, mas não como gastá-lo, porque os produtos interessantes não eram produzidos, era um compromisso capital/trabalho como outro qualquer. Era politicamente autoritário mas, do ponto de vista da relação salarial - é o que os operários diziam - "nós fazemos de conta que trabalhamos e eles fazem de conta que nos pagam". Agora, esse sistema se desmorona e começa a se abrir à concorrência internacional. Não há nenhuma fábrica, em qualquer um dos países do Leste, que seja competitiva em relação a um dos dois modelos nem ao da implicação negociada, porque não há a qualificação, o know how, a acumulação tecnológica; nem ao modelo flexível - pois esses países são, apesar de tudo, menos flexíveis e pagam melhor do que os países do sul. O resultado é um agravamento extremamente rápido do desemprego. Quando eu discuti com os dirigentes do Solidariedade, eu disse que era completamente idiota sua estratégia de liberalização rápida, pois eles não são competitivos no mercado mundial em nenhum produto: "Vocês vão suprimir todos os empregos". Eles disseram: "Sim, mas faremos como os países da Ásia do Sul; com baixos salários poderemos vender". Nesse momento eu lhes disse: "Mas, escute, vocês querem fazer como no Egito?" E o Egito é três ou quatro vezes menos caro (como salário) que a Ásia do Sul, e o Egito não consegue vender nada porque a sua organização do trabalho é muito ruim. Logo, é preciso de algum modo ter uma organização do trabalho eficaz. Então, eles me responderam: "Mas nós temos o capital humano". E eu respondi: "A Argentina tem muito mais capital humano do que a Polônia e, no entanto, a Argentina, com a liberalização, perde todas suas empresas. Em todos os países do leste assistimos à mesma espécie de desmoronamento devido à redução das barreiras alfandegárias em países que não são competitivos, nem por ter baixos salários, nem por ter uma tecnologia boa o bastante, nem uma qualificação suficiente da sua mão-de-obra. Então, acredito que assistiremos a uma fratura no antigo campo socialista, a Tchecoslováquia se integrando, pouco a pouco, ao modelo de implicação negociada, tornando-se um prolongamento do Arco Alpino. A Polônia e a Romênia tomando-se, por outro lado, uma espécie de Terceiro Mundo em contato direto com a Europa, sendo utilizadas para sub-contratação, pois é possível aproveitar a pouca distância. Apareceu assim um bloco de reserva de mão-de-obra barata que vai fazer concorrência com o Marrocos, a Tunísia, a Turquia. A Europa tem agora um imenso cinturão de países junto aos quais ela pode fazer sub-contratação. Alguns desses países ela utilizará como reserva, outros ela fará progredir para integrá-los no modelo de implicação negociada. Esta política de utilização diferenciada da Europa do Leste começou a ser colocada em funcionamento em 89. Infelizmente para a Alemanha, eles cometeram um erro enorme, ou talvez, um crime. Por razões de politicagem interna, Kohl decidiu efetuar a unificação imediata das duas Alemanhas. Ora, de um ponto de vista econômico, isto é estritamente impossível, é necessária uma transição. Desde o instante em que Kohl unifica a Alemanha é impossível impedir os preços de se igualarem à concorrência, sobretudo porque há infinitamente menos distância entre a fronteira oeste, a das duas Alemanhas e a polonesa, do que entre Rio de Janeiro e São Paulo.

Pode-se de qualquer canto da Alemanha Oriental ir trabalhar na Ocidental e voltar pra casa no fim-de-semana. Tem gente, hoje, que faz duas horas de estrada para trabalhar na Ocidental, portanto, é impossível manter os homens de baixo salário na Alemanha Oriental, imediatamente os salários vão aumentar. E se eles trabalham com um salário que é 70% do salário médio da Alemanha Ocidental, e trabalham em condições de produtividade nulas em relação à Alemanha Ocidental, logo, instantaneamente, todo o aparelho produtivo do Leste vai quebrar. É possível manter as empresas de comércio, mas toda a manufatura será destruída. Estima-se que, no mês de agosto, a metade da força de trabalho da Alemanha Oriental estará desempregada. Então, acredito que é um caso de demagogia que se volta contra seus autores. Há quatro meses Kohl, obteve uma maioria esmagadora na Alemanha e hoje há manifestações contra ele em toda a Alemanha Oriental. Os que votaram em Kohl são gente menos qualificada, ou seja, os operários do sul da Alemanha Oriental, do Saxe, da região de Leipzig. Os operários muito qualificados ou os técnicos de Berlim votaram Verde, social-democrata ou no antigo Partido Comunista, o PDS, partido da democracia social. E são os que votaram nele que fazem uma enorme manifestação para pedir sua demissão. Portanto, acredito que a Alemanha Ocidental cometeu um erro enorme. Talvez fosse difícil fazer diferente, pelo medo da imigração. Mas o medo da imigração não era muito válido porque, em Portugal, tínhamos, apesar de tudo, experiência em administrar uma transição. A Alemanha e a França tinham aceitado, no momento da entrada da Espanha e Portugal no Mercado Comum, uma transição onde havia protecionismo para os espanhóis, ou seja, que eles se protegessem no mercado contra a produção européia e onde havia livre câmbio de produtos que saíam da Espanha para ir para o resto da Europa. Assim, foi possível modernizar, fazer as coisas progressivamente, levar a Espanha a competitividade. No caso da Alemanha Oriental, é a destruição e nada mais.

E neste quadro, qual é a perspectiva para o movimento operário?
Acredito, de início, que o movimento operário nos diferentes países deve jogar a carta da implicação negociada. Toda a história do capitalismo é a história do compromisso, entre o capital e o trabalho. Penso que, primeiramente, é necessário se engajar nessa batalha. Não leva a nada dizer que não queremos a implicação, não queremos tampouco a flexibilidade, nos protegemos atrás das barreiras alfandegárias. Seja na Argentina, na Inglaterra, nos Estados Unidos ou na Rança, esta é uma estratégia perdedora, porque é uma estratégia conservadora. Sem compromissos, o capitalismo de seu próprio país será batido na concorrência mundial, portanto, a classe operária será batida também e isto não adianta nada. A questão é saber se estamos no jogo. De qualquer maneira, o capitalismo de cada país achará uma saída, seja pela flexibilidade, seja pela implicação negociada de seus assalariados. A vantagem dos assalariados é evidentemente a segunda solução, com a condição de que se negocie verdadeiramente. Isto é, que não seja unia implicação individual dos assalariados que querem cooperar com o capital, que sejam forças sociais que o capital e os assalariados digam: "Aí está, é isto o que nos interessa. Nos interessa que os produtos sejam melhores; nos interessa sermos eficazes. Isto porque nós temos a ambição de, um dia, dirigir a sociedade, para isso preferimos a força operária qualificada, técnicos, operárias polivalentes, inteligentes e capazes de perceber como funciona uma empresa. Isto nos interessa, estratégica e taticamente". Mas, as condições para tal estratégia são múltiplas. Primeiramente, deve visar defender o conjunto dos trabalhadores e não somente uma aristocracia. É preciso lutar permanentemente contra a divisão étnica, contra a divisão sexual etc. Em segundo, é sobre o que vai tratar o compromisso, ou seja, se vamos em direção à superação da distinção entre operários e técnicos. Essa distinção é algo profundamente fordista, tem base na idéia de que não é o mesmo que pensa e que executa. Se nos voltamos para um trabalho mais qualificado, a distinção operário/técnico se esvai. Então, o que vão exigir os assalariados em troca de seu trabalho mais qualificado? No Norte, eu considero que a questão central é a questão do tempo livre, da solidariedade, da melhoria das condições de vida etc. No Sul, eu penso que a questão das condições de vida é também uma questão vital. Eu não sou desses que pensam que a ecologia é reacionária, um luxo. Para que a relação do homem com a natureza é uma questão decisiva, inclusive, do ponto de vista da reprodução da força do trabalho. Creio que a questão de um desenvolvimento das condições de vida, de um quadro mais harmonioso, mais vivo, é fundamental. Dito isto, acho indispensável acrescentar que o Sul precisa melhorar seu consumo de mercadorias, de produtos cuja contrapartida deve ser bem mais monetária do que no Norte. No Norte, eu sou contra aumentos dos salários, agora. É muito mais interessante ter um aumento do tempo livre. Pode ser que, aqui, o aumento do poder de compra seja muito mais importante. Então, é preciso notar que a questão da ecologia tornou-se agora uma questão mundial. Há crise global, ou seja, se continuarmos durante quarenta anos com o mesmo modelo do Norte, o planeta vai se aquecer de dois a três graus e depois há o problema da camada de ozônio etc. O risco é enorme e é por isso que é muito importante que as forças progressistas tratem seriamente a questão ecológica. Há um risco de que o Norte, frente à ameaça ecológica global, imponha regulamentações ecológicas que impeçam o desenvolvimento industrial no Sul. É uma das questões em jogo na Conferência do Rio de Janeiro. Face a uma crise global há duas respostas possíveis: podemos dizer que é preciso evidentemente partilhar os recursos que se tornaram raros no planeta, inclusive a atmosfera. Pode-se dizer que a partilha se fará proporcionalmente à população. Isto quer dizer que o Sul tem o direito de poluir mais e o Norte deve imediatamente poluir muito menos, ou então, pode fazê-lo sobre a base dos direitos adquiridos. No Sul, cada país deve diminuir sua poluição. Como o Norte já polui bastante, se ele diminui um pouco ele ainda ficará com muito mais direito a poluir. É esta a jogada. É preciso não considerar, de forma alguma, a ecologia como hostil ao movimento operário, ao movimento dos assalariados em geral. De qualquer maneira as forças progressistas devem se apoderar desta questão, tomar a questão da sobrevivência sobre a terra como o problema número um. Na minha opinião, a oposição entre o crescimento e a ecologia é uma questão de classe média ou de países médios. Os países que dizem que "a ecologia se opõe ao crescimento e ao desenvolvimento" são os que ganham já muito dinheiro, mas, apesar de tudo, muito menos que a classe dominante do Norte. Há a declaração do primeiro ministro da Malásia que diz: "os direitos do homem, o sindicalismo, a ecologia e a democracia são as barreiras que o Norte quer opor ao crescimento de seus futuros concorrentes". Portanto, para os povos de todos os países, a questão da ecologia é fundamental, nem que seja apenas porque a reprodução da força de trabalho, da vida mesmo se faz, bem amplamente, por fora das relações comerciais e salariais, mesmo quando se é assalariado. Portanto, a questão da melhoria da qualidade da vida local e global é decisiva. Em contrapartida, as classes dominantes dos países pobres ou as classes médias dos países ricos opõem ecologia e desenvolvimento e é preciso ter consciência de que a questão será muito dura no debate preparatório à Conferência do Rio de Janeiro, já que os Estados Unidos têm explicitamente o projeto de fazer o que o primeiro-ministro da Malásia diz, ou seja, utilizar a regulamentação ecológica como meio para impor um protecionismo contra a produção brasileira, indiana, malasiana etc. Acredito que será necessário muita responsabilidade da parte do PT a esse respeito, denunciar bem a manobra dos Estados Unidos, mas não deixar passar a idéia de que a ecologia é uma arma imperialista.

Ermínia Maricatto é secretária municipal de Habitação.

João Machado é membro do Conselho de Redação de T&D.

Marco Aurélio Garcia é secretário de Relações Internacionais do PT.