Cultura

É espantoso que o PT não tenha sido capaz, até hoje, de avaliar o significado da cultura para sua ação. É fundamental alargar esta conceituação e ultrapassar os marcos da institucionalidade vigente, que reduz às belas-artes.

[nextpage title="p1" ]

Frequentemente jovens simpatizantes do Partido dos Trabalhadores indagam porque é tão difícil aos petistas a comunicação rápida, direta, persuasiva e imediatamente convincente para com os outros. Por que - perguntaram muitos deles em 1989 - Fernando Collor captou a simpatia e a adesão dos trabalhadores mais pobres, justamente aqueles que deveriam identificar-se com as teses do PT?

Para os dominantes de uma sociedade de classes, pensar e expressar-se é coisa fácil: basta repetir idéias e valores que formam as representações dominantes da sociedade (afinal, dizia Marx, as idéias dominantes de uma época são as da classe dominante dessa época). O pensamento e o discurso da direita, apenas alterando o estoque de imagens, reiteram o senso-comum que permeia toda a sociedade e que constitui o código imediato de explicação e interpretação da realidade, válido para todos. Por isso é fácil falar, persuadir e convencer: os interlocutores já estão identificados com os conteúdos dessa fala, que é também a sua na vida cotidiana.

Para a esquerda, a dificuldade é imensa, pois o pensamento e o discurso são forçados a realizar quatro trabalhos sucessivos ou simultâneos: desmontar o senso-comum presente no discurso da direita; desmontar a aparência de realidade e de evidência que as condições e práticas sociais dadas parecem possuir e sobre as quais fundam-se tanto a fala da direita quanto a compreensão dos demais; reinterpretar a realidade em seus fundamentos, em seus pressupostos secretos e em suas determinações invisíveis, em seu modo de produção e de aparição para, assim, explicar e compreender o movimento de constituição do que chamamos de sociedade, política e história e, finalmente, encontrar um discurso novo, capaz de exprimira desconstrução das aparências e a nova interpretação do real. Um discurso que mostre ao interlocutor os poderes da ilusão do senso-comum, que convença o interlocutor da necessidade de uma apreensão crítica dos dados imediatos da experiência e, sobretudo, que seja capaz de transformar o interlocutor em parceiro e companheiro de mudanças sobre aquilo que foi desvendado e compreendido. Porque é da natureza mesma da esquerda a posição de crítica visando à transformação, de ruptura com o estabelecido - onde se reproduzem a exploração e a dominação, de afirmação da possibilidade da emancipação e da liberdade pela própria ação política e social, o vínculo da esquerda com a cultura é originário, essencial e definitivo. A cultura é, para a esquerda, a capacidade de decifrar a produção social da memória e a produção social da amnésia; a produção social das obras de pensamento e das obras de arte; a produção social das experiências, idéias e valores e, sobretudo, a esperança racional de que dessas experiências, idéias e valores surja um sentido emancipatório.
É através da cultura que os trabalhadores criam sua memória, sua crônica e suas tradições: inventam espaços, datas e símbolos próprios. A festa do 1° de Maio é o exemplo mais luminoso dessa criação autônoma da classe trabalhadora no campo cultural, propondo um calendário e, portanto, uma relação com o tempo (passado e futuro) oposta e diversa à da classe dominante e sua cronologia.

Sob essa perspectiva, nós, secretários municipais de cultura, julgamos espantoso que o PT não tenha sido, até hoje, capaz de avaliar o significado e a importância da cultura para sua ação e interpretação da realidade histórica. Espanta-nos também que não tenha sido percebido o vínculo interno entre política cultural e cultura política (não é surpreendente que o PT possua secretarias e departamentos de Formação Política nos quais não se toca nos problemas de política cultural?). Espanta-nos, finalmente, que num partido de esquerda a cultura possa ser vista (quando o é) como algo "setorial" ou "específico", à maneira dos transportes, da saúde ou da habitação.

Contextualizar a discussão

Nossa discussão sobre a cultura deve ser a mais contextualizada possível, que entendemos ser:

• a maneira como a questão cultural aparece - ou melhor, não aparece nos documentos partidários de preparação ao 1º Congresso;

• a maneira como a questão cultural aparece - ou não aparece - nas discussões dos encontros do PT, nas publicações petistas e na elaboração de plataformas eleitorais;

• a maneira pela qual a cultura é tratada pelos atuais governos municipais petistas: situação orçamentária, situação de infra-estrutura física e administrativa, lugar ocupado nas prioridades governamentais, visão que os demais membros dos governos municipais possuem acerca da cultura e das instituições públicas de cultura;

• a maneira como os parlamentares petistas se relacionam com as instituições culturais municipais;

• a maneira como os militantes e filiados petistas se relacionam com as instituições municipais de cultura;

• a relação entre a sociedade civil e as instituições governamentais municipais de cultura;

• a estrutura burocrático-jurídico-administrativa das secretarias ou departamentos municipais de cultura;

• as relações ou a ausência de relações entre as secretarias e departamentos de cultura dos governos petistas;

• o modo como a cultura é tratada no plano nacional, as ideologias em jogo e a hegemonia neoliberal.
Nos documentos preparatórios do Congresso e, particularmente, no documento da SAI (Secretaria de Assuntos Institucionais) sobre políticas setoriais, causa surpresa a total ausência da cultura. Pelo menos por três motivos: A estrutura das prefeituras obrigou os petistas a aceitarem a existência de serviços públicos de cultura e de atividades culturais patrocinadas pelos fundos públicos. Portanto, se a questão cultural, até 1989, não tinha porque ser discutida pelo PT, a partir de então, pelo menos a existência empírica e factual de secretarias e departamentos municipais de cultura poderia ter feito o PT colocar em seus documentos de preparação do Congresso um item dedicado à cultura.

Em segundo lugar, o primeiro ato do governo Collor, simultâneo ao plano econômico nacional, foi o da supressão dos serviços públicos de cultura e a apresentação de um projeto neoliberal para o setor, projeto que não pôde ser inteiramente aplicado justamente porque as atividades culturais de algumas prefeituras petistas criaram tamanho contraste e tamanha perda de legitimidade para o governo federal, que este não só tentou voltar atrás como ainda escolheu um secretário Nacional de Cultura proveniente da esquerda.

[/nextpage]

[nextpage title="p2" ]

 

O exemplo tcheco

Finalmente, parece não ter tido o menor efeito político sobre a direção partidária o fato dos tchecos haverem feito de um intelectual o Primeiro Cidadão da Tcheco-Eslováquia e, depois, o elegerem presidente da República justamente no país do Leste Europeu onde a atração neoliberal é a menor de todas e o combate ao totalitarismo foi constitutivo das discussões socialistas e democráticas.

Causa espanto a pertinácia com que o PT exclui de suas discussões a questão cultural. Esta quase não aparece em publicações do partido e, nos períodos eleitorais, a praxe é convocar um grupo de artistas e intelectuais para que produzam uma plataforma e um programa, a fim de que o candidato não apareça sem propostas para o setor. Que assim fosse até 1990, a história da formação do PT poderia explicar; que assim permaneça após 1990, não há como justificar. A construção do corpo político de Fernando Collor tem sido um dos mais espantosos fenômenos culturais da história do país e que o PT não se deu ao trabalho de avaliar. O presidente da República tem sua imagem elaborada a partir dos simbolismos corporais (juventude, masculinidade, erotismo, heroísmo, esportivo e bélico, elegância) que lhe dão a figura da invunerabilidade; a partir da indefinição de fronteiras entre o público e o privado (pai de família, marido, irmão, filho, amante tanto quanto chefe de Estado) que lhe garante direitos sobre o espaço público como se fosse propriedade privada; a partir de elementos do simbolismo místico religioso (ele sempre vem do "alto": rampa, helicóptero, avião); e a partir dos estereótipos da modernidade (a figura do executivo da grande empresa cujo lema é "vencer ou vencer"). Em suma, a elaboração das imagens da política nacional moldadas pelo corpo, místico do presidente para produzir um sistema fechado de identidade e de identificações, sistema cujo suporte fundamental é a mídia, é um acontecimento cultural (imaginário, simbólico, ideológico e mediático) ao qual o PT parece não querer dar atenção, tanto assim que não vimos documentos de preparação do Congresso que coloquem a discussão das telecomunicações, da produção ideológica através do sistema educacional, da produção editorial, da imprensa etc.

Cultura e diversão

Os demais integrantes dos governos municipais solicitam serviços culturais em dois tipos de ocasião: abertura e encerramento de atividades dos outros setores sociais, isto é, shows, concertos, espetáculos para "animar" a abertura ou encerramento de encontros e congressos, o início ou o término de mutirões; para "animar" os festejos locais de efemérides de cidades, regiões ou bairros. Cultura, geralmente, é o momento do "palco, som e luz" para espetáculos. Cultura é evento de animação cultural entendido como diversão. Não é sem motivo que a maioria dos artistas se revolta contra o PT; artista tem voz em comício e show eleitoral, ou no início e encerramento de "coisas sérias"'. Essa relação dos demais membros dos governos petistas com o setor cultural se repete na relação dos parlamentares petistas com as secretarias e departamentos de cultura: solicitação de espetáculos de contratações de artistas, vez por outra solicitação de construção de um "centro cultural" (sempre entendido como o lugar onde serão realizados espetáculos). Esse modelo se repete, mas com algumas modificações, nas relações dos petistas da sociedade civil (entendida aqui como associações, entidades e movimentos culturais) com as instituições municipais de cultura: solicita-se o espetáculo, com a peculiaridade de que seja feito pelo próprio solicitante, contratado para isso.

Assim, existe uma "cultura petista" sobre a cultura: trata-se da percepção da cultura de três ângulos que não são excludentes, embora possam vir isolados uns dos outros. De um primeiro ângulo, cultura é o que alguns talentosos ou especialistas sabem fazer para a contemplação passiva de todos os outros. É a cultura entendida como show. De um segundo ângulo, cultura é o campo especializado das "sete artes" que "eu sei praticar porque recebi um treino para, isso" (ideologia romântica do gênio inato) e que o Estado deve financiar no momento final, isto é, "no momento de exibir aos outros o meu produto". É o ângulo da cultura como balcão dos talentos. De um terceiro, muito próprio da esquerda, cultura é uma agitação social que fazemos usando como instrumento as sete belas-artes. Aqui, as artes propriamente ditas - seu conhecimento, suas exigências específicas, seu desenvolvimento próprio - não têm muito interesse, porque o que interessa é a "mensagem" política ou social que desejamos "passar" usando esse mero "instrumento". Deste ângulo, cultura é instrumento de persuasão e convencimento no qual todos - agentes e espectadores - estão a serviço de algo que não é propriamente "cultural". Do primeiro ângulo, temos um "público" passivo, do segundo temos um profissional "bem atendido" pelo Estado e do terceiro, temos a instrumentalização do "cultural" a serviço do "não-cultural" (a política). Espetáculo, balcão, agitação: eis o que herdamos como tradição.

Sobre a cultura como "agitação das consciências" algo mais merece ser dito. Geralmente, a preocupação com a cultura - sempre entendida como as belas-artes - interessa à esquerda quando esta se sente e sabe-se muito distante do exercício do poder político, entendido como poder do Estado. Por identificar poder e Estado, a tradição de esquerda sempre tendeu a compensar a "falta de poder" com a "presença nas consciências" - isto é, o uso da cultura belartista. Compensar a "falta" de poder com a "cultura" recebeu um nome: luta pela hegemonia. Porque, desde Gramsci, passamos da mera análise de ideologia - a dominação dos dominantes - à da hegemonia como luta no interior da sociedade civil e da sociedade política para mudança dos valores políticos, graças à mudança das consciências. Como a luta pela hegemonia começa no campo das idéias e dos valores, a esquerda interpretou a concepção gramsciana como se fosse a luta política que usa a cultura como instrumento. Essa interpretação equivocada do conceito de hegemonia (pois, para Gramsci, não se tratava de instrumentalizar a cultura para a luta política, mas de fazer uma luta de cultura política para alterar a correlação de forças na sociedade) produziu o efeito que chamamos de "agitação das consciências". Por "agitação cultural", a esquerda passou a entender a forma de sua atuação política como pedagógica (ensinar às massas a consciência correta), propagandística (convencer as massas sobre certas ações e posições políticas) e como atuação de produção do sentimento identificador (sentimento da consciência de classe). Essa visão agitadora deu um lugar proeminente ao que convencionamos chamar de "cultura popular", isto é, a maneira como as "classes populares" incorporam em seu universo próprio as sete belas-artes burguesas. Assim, a "luta pela hegemonia", transformada em mera compensação pela "falta" de poder, instrumentalizou a cultura belartista e introduziu a sua versão da cultura popular como instrumento eficaz para a pedagogia, a propaganda e a identificação políticas. Somos herdeiros disso também. É isso que explica o outro fenômeno que surge com freqüência no PT: quando a discussão cultural é introduzida, ela se faz pelo prisma. da divisão entre cultura popular e cultura de elite, entre cultura institucionalizada e "luta pela hegemonia", entre cultura dada e agitação cultural. Em lugar de colocarmos em discussão os termos assim postos, nossa tendência é operar a partir deles, como se fossem claros, distintos, óbvios, verdadeiros e balizas para orientar nossa prática cultural. Devemos, assim, acrescentar aos itens anteriores show, balcão, agitação - o equívoco do "popular" (que pode receber traduções: afro, indígena, feminino, juventude, ecológico, homossexual - todos termos que indicam "autenticidade de origem", "verdade de origem", "correção de origem" para constituir um sistema de identificações sociais).

Entraves burocráticos

Por outro lado, alguns traços de estrutura burocrática, jurídica e administrativa das prefeituras, atingem igualmente todas as secretarias e departamentos de cultura, bloqueando inovações e transformações.

A burocracia como sistema fundado na hierarquia dos cargos e funções, no segredo do cargo, na luta pelos postos de comando e no conhecimento dos escaninhos de paralisação das ações é, por sua própria natureza, um obstáculo mortal à política cultural democrática. O aparelho burocrático é incompatível com formas colegiadas de direção, é inimigo da participação sócio-política porque ela põe em questão o poder burocrático, possui uma lógica e uma dinâmica próprias cuja principal característica é a homogeneidade e a identidade - isto é, a burocracia que rege o setor de obras, limpeza pública, cultura etc. é rigorosamente a mesma, portanto avessa à especificidade do objeto, contrária à diferença específica das áreas, incapaz de operar segundo as exigências próprias do objeto e da área. Tanto como forma tácita de exercício antidemocrático do poder quanto como forma irracional da identidade operacional, a burocracia é, por sua simples existência, um obstáculo à ação cultural. O resultado mais freqüente desse obstáculo encontra-se no fato de que o aparelho burocrático opera voltado para si mesmo, interiorizado, e, portanto, tende a usar os recursos financeiros, de infra-estrutura e de pessoal, apenas para si mesmo, em detrimento da população e dos serviços públicos. Os recursos para manter as operações burocráticas, se pudessem ser postos a serviço das atividades culturais, dariam resultados verdadeiramente espantosos.

A estrutura também opera em toda parte com a mesma legalidade homogênea. A legalidade, além de ter sido posta por governos e legislativos cuja lógica é inimiga da classe trabalhadora e, além de ter sido estabelecida para a dominação e a opressão políticas, é profundamente irracional no caso da cultura, uma vez que a submete a uma temporalidade que impede seu pleno exercício. A velocidade cultural, a inventividade, o improviso, o imprevisto, a lógica do único e irrepetível, tudo isso é bloqueado pela homogeneidade irracional da legislação e de seus procedimentos, que tratam a compra de tijolos como a compra de livros, a aquisição de material elétrico como a realização de cursos e oficinas, a avaliação de preços do papel higiênico exatamente como a de historiógrafos ou dançarinos. A legalidade, no caso da cultura, tende a restringir as inovações, uma vez que a cultura é legalmente definida pelas sete belas-artes e tudo que fugir desse "campo funcional" torna-se impossível, porque ilegal. Seria preciso mudar a lei. Seria necessário que o legislativo discutisse novos projetos de lei e os votasse, mas não há interesse em fazê-lo.

Observações semelhantes podem ser feitas quanto à estrutura administrativa: homogênea, identitária, voltada para si mesma, secreta, irracional, auto-reprodutora. Aqui, vem acrescentar-se a figura do funcionário público, que se encontra na secretaria de cultura como poderia estar em qualquer outra: desconhece a especificidade do serviço que realiza, não tem interesse nem entusiasmo por ele, apega-se à rotina e teme toda mudança, opondo-se a ela tanto por inércia quanto por sabotagem. Autoritários, julgam formas democráticas de gestão pública "bagunça, desordem e caos". Corporativos ao extremo, desejam ter o Estado a seu serviço e não a serviço da população. Pode-se dizer que a gestão petista enfrenta a luta de classes no embate com o funcionalismo.

Comparações inócuas

Estas dificuldades e obstáculos não justificam, porém, alguns fatos que pudemos comprovar. Num balanço de nosso desempenho, do que conseguimos realizar e inovar, percebe-se que nos curvamos à definição institucionalizada e institucional da cultura, isto é, que mantivemos a cultura no campo das belas-artes - quer em sua versão letrada, erudita, "de elite", quer em sua versão "popular". Ampliamos serviços, criamos outros, multiplicamos programas e atividades, construímos ou reformamos espaços - uma comparação quantitativa entre nós e outros governos nos dá vitória inconteste. Um levantamento da população que antes e hoje usufrui dos serviços, atividades e programas revela a inversão de prioridades, isto é, que o atendimento se voltou para a classe trabalhadora, para os jovens, os idosos, as crianças. Uma comparação com outras gestões mostrará que demos particular atenção às áreas carentes das cidades, tanto na criação de espaços e serviços culturais, quanto na qualidade do que é feito; mostrará nossa superioridade em cursos, seminários, publicações, em trabalhos de aperfeiçoamento e aprimoramento de funcionários etc. No entanto, o simples fato de fazermos comparações já é significativo: revela que até agora não redefinimos o campo da cultura, que mantivemos, ampliamos e melhoramos o que tradicional e convencionalmente se chama de cultura (bibliotecas, teatros, cinema, vídeo, dança, música, pintura, escultura, literatura, patrimônio histórico). Não reinventamos o conceito de cultura, não inventamos outras práticas culturais, não saímos do campo convencional instituído. Somos governos de esquerda que não foram capazes - senão de modo esporádico e episódico - de propor outra prática e outro conteúdo para a cultura. Ainda não fomos radicais.

Até agora não formamos, enquanto governo, um coletivo disposto a alterar as telecomunicações, a intervir com grande força nas televisões e rádios locais, a criar rádios e televisões comunitárias alternativas. Não inventamos ainda um outro espaço de luta e de atuação. Mesmo um programa como a "Rede Imaginária", realizado em São Paulo e em Porto Alegre, não foi além do debate e da discussão sobre a televisão, não produziu efeitos políticos, seja no plano local, seja para mudanças na legislação federal de telecomunicações. Ficamos na mesma posição tímida que temos dentro do PT: assim como no partido não interferimos na política através da discussão cultural, nas secretarias ainda não fizemos da cultura uma forma de intervenção contra o mercado da mídia e contra a indústria cultural. Ainda estamos à margem naqueles setores de que o mercado não se apropriou monopolisticamente. Ainda não fomos radicais.

Embora tenhamos feito alguns encontros, tenhamos feito a experiência do "corredor cultural", tenhamos trocado experiências e atividades, ainda não conseguimos formar um coletivo para uma ação nacional (como os secretários de finanças já fizeram), nem para uma ação partidária (como fizeram as secretarias de transportes e de saúde). Resultado disso, o documento da SAI para o Congresso elencou tópicos a serem discutidos pelas várias secretarias sociais sem que esses tópicos - com exceção da discussão sobre Conselhos Populares e Participação Popular digam diretamente respeito às questões culturais.

Essas observações conduzem à discussão das relações entre as secretarias e departamentos municipais de cultura, sob dois aspectos: de um lado, os poucos laços existentes entre nós, a falta de relações mais orgânicas, de um plano de ação comum; de outro, as diferenças, muitas vezes enormes, das condições em que trabalhamos, tanto pelas diferenças das cidades e de suas histórias quanto pela estrutura das prefeituras (algumas sequer possuem departamento cultural), como ainda pelas diferenças das demandas e do grau de institucionalização da área cultural e ainda pelas diferenças quanto à quantidade e qualidade das atividades culturais das cidades e quanto aos recursos financeiros, operacionais, de infra-estrutura e de pessoal existentes. No entanto, se o PT possuísse uma proposta cultural que oferecesse diretrizes de ação aos secretários, talvez as relações entre as secretarias, a colaboração e a cooperação entre elas pudessem ter sido mais imediatas.

No que se refere à situação da cultura no plano nacional, devemos começar lembrando dois fatos: O primeiro ato do governo Collor foi confiscar a poupança e aniquilar órgãos federais de cultura. O PT esmerou-se nas análises e críticas econômicas e sequer percebeu o que fôra feito com a cultura. Não percebeu que se tratava do mesmo ato em duas frentes e que seu sentido era um só: a posição do neoliberalismo como afirmação da racionalidade auto-reguladora mercado contra racionalidade e ciência estatais.

A eleição de Freuty, em São Paulo, teve como principal articulador e cabo eleitoral o secretário Estadual de Cultura, cuja prática inteligente de marketing e balcão cultural agiu sobre a opinião pública de modo a legitimar a continuidade do quercismo. Os recursos dados ao secretário da Cultura, um homem de esquerda escolhido para neutralizar os secretários municipais de cultura petistas, deram legitimidade ao projeto político conservador.

O pouco caso com que o PT e os governos municipais trataram esses dois fatos isolaram as ações de resistência cultural das secretarias de cultura e não nos auxiliaram a dar um salto qualitativo essencial, qual seja, alterar a figura do produtor cultural. O governo Collor reforçou o vínculo entre o produtor e a indústria cultural; o governo Quércia reforçou o lado corporativo e clientelista dos produtores culturais. As secretarias de cultura petistas, isoladas em seu esforço para recusar essas duas atitudes, apareceram como inoperantes (face ao mercado) e não-democráticas (face ao balcão).

Além dos dois fatos, percebe-se de modo geral no país o resultado de uma contradição que atravessa o governo Collor e atinge a sociedade; a contradição entre um discurso social-democrata da compaixão (endereçado aos descamisados) e um discurso neoliberal da competição (endereçado aos empresários, executivos e à classe média em geral), isto é, entre um discurso que alarga o papel e a presença do Estado sobre a sociedade civil, por meio dos serviços sociais, e um discurso que restringiria tal poder ao mínimo e delegaria ao mercado a auto-regulação da vida econômica, social e cultural. Na área da cultura, essa contradição discursiva e prática tem levado a situações pitorescas: as mudanças nos rumos da Secretaria Nacional de Cultura mostram a desorientação reinante, pois o secretário se vê obrigado á afirmar que o Estado não pode abandonar os setores do patrimônio histórico e das subvenções artísticas e, ao mesmo tempo, a afirmar os privilégios do mercado como racionalizados da produção cultural. Essa contradição aparece também em discursos de secretários estaduais de cultura (foi o caso de Fernando Morais) quando procuram definir o espaço de contribuição da iniciativa privada em atividades públicas de cultura e o papel do governo estadual em subvencionar iniciativas culturais do setor privado. A confusão, na verdade, não o é. O Estado vem marcando sua presença na área cultural pelo privilégio conferido às atividades consagradas pela indústria cultural, portanto, pelas atividades que privatizam o espaço cultural, e, por seu turno, o mercado cultural tende a usar expedientes estatais para financiar as atividades culturais mais dispendiosas, em atitude clientelista.

[/nextpage]

[nextpage title="p3" ]

 

Política Cultural

Nem animação/agitação cultural nos marcos das belas-artes, nem captura e aprisionamento oficial/institucional das questões postas pela sociedade civil, mas cultura como:

• invenção coletiva-histórica de símbolos, valores, idéias e práticas que estabelecem a ruptura e a reflexão dos homens enquanto distintos das coisas naturais (linguagem, trabalho, relação com o tempo, percepção da morte e da finitude, diferença entre força e poder, relação com o ausente, o possível, o verdadeiro, o belo e o justo, determinação ética da existência pela liberdade e pela culpa etc.).

• expressão das diferençais sociais, sexuais, étnicas, religiosas e políticas (as diferenças como conflitos, oposições e contradições constitutivas das classes sociais na sociedade capitalista e constitutivas dos grupos sociais da modernidade).

• única possibilidade de totalização do fragmentado e do disperso pela descoberta de seu sentido, rumo, objetivo e destinação.

• trabalho de criação das obras culturais como capacidade humana para ultrapassar os dados imediatos da experiência vivida e dotá-la de um sentido novo trazido pela reflexão e pela escrita - obras de pensamento.

• constituição da maioria individual, histórica, social, como trabalho sobre o desgaste do tempo; o memoralista como sujeito e agente cultural, os diferentes suportes físicos da memória; a tomada de posição na luta de classes pela contradição entre a memória oficial dos vencedores e a tradição dos vencidos; redefinição do conceito de patrimônio histórico a partir da divisão social e não da unidade/identidade nacional.

• como direito do cidadão a cultura é, simultaneamente, um dado ou um fato - isto é, somos todos seres culturais porque não somos seres naturais - e um valor, do qual a maioria da população está destituída: o direito de fruir do conjunto das obras de pensamento e de arte, das obras de memória e da transmissão formal dos saberes e dos conhecimentos. Porque somos culturais e porque a sociedade de classe exclui os trabalhadores da produção e fruição dos resultados mais elaborados da vida cultural (as obras culturais) é que temos direito de exercer o que somos. Em outras palavras, o desafio petista está em propor e defender o paradoxo da cultura que é o modo de ser dos humanos e que, no entanto, também precisa ser tomada como um valor ou direito daqueles humanos que não podem exercer plenamente o seu ser cultural.
Política cultural nem "elitista" nem "popular": não retornar a uma oposição abstrata que determina de antemão a imagem da cultura como mero espelhamento da situação de classe na sociedade e que força a classe trabalhadora a ser repetidora de padrões desgastados da cultura dominante que se torna "popular" cada vez que sua origem permanece ignorada. Propor uma política cultural que opere com a oposição entre o experimental-inovador-transformador e o repetitivo-conservador-imobilizado, pois os dois pares de opostos podem ser encontrados tanto no que se convencionou chamar de "elite" quanto no "popular". Propor uma política cultural que não bloqueie o direito de acesso dos trabalhadores às formas mais sofisticadas, mais elaboradas e mais inovadoras das práticas e das obras culturais, da criação de um novo cotidiano e do acesso às formas de transmissão de saberes e conhecimentos especializados.

Não mistificar a "demanda popular" ou a "demanda da população": numa sociedade como a brasileira, onde as redes de rádio e televisão dominam a vida cultural produzida pela indústria e pelo mercado cultural, onde as formas mais reacionárias de religiosidade conformista e autoritária dominam as camadas mais carentes da classe trabalhadora, onde a escola pública está reduzida à miséria e à inoperância, fundara política cultural na suposta "demanda" é condenar a política petista à reprodução desagregada dos padrões da indústria cultural, à repetição leiga do conformismo religioso, à legitimação da situação atual do ensino público gratuito. Trata-se, para nós, de enfrentar o desafio de propor à classe trabalhadora e à sociedade civil uma reflexão crítica sobre suas próprias demandas e oferecer-lhes um quadro de espaços, serviços, atividades e programas culturais que despertem a crítica, alimentem a exigência cultural e proponham possibilidades de criação das obras culturais e de redefinição de símbolos, valores, idéias e comportamentos, além do direito à apropriação de sua própria memória como um bem e como forma de luta social e política.

Não separar cultura e política cultural, pois esta separação é uma das causas do descaso petista de uma sociedade democrática, na percepção crítica da diferença entre socialismo e totalitarismo. Essa separação tem gerado propostas políticas absurdas como a da criação de conselhos populares pelos governos municipais. Um mínimo de cultura e de cultura política teria feito o PT compreender o absurdo de tal proposta, uma vez que os conselhos populares são a tradução para o português do termo "soviet" e que os sovietes foram criados pelos trabalhadores num período revolucionário que visava a destruição do Estado, o autogoverno e a auto-regulação da sociedade por ela mesma. De sorte que propor aos governos municipais a criação de Conselhos Populares é o mesmo que propor uma circunferência quadrada. Também é a separação entre cultura política e política cultural que leva tanto o PT quanto os governos petistas a aberrações tristes quanto à "participação popular". De fato, um mínimo de cultura política, de cultura histórica e de não redução da cultura às belas-artes das corporações de artistas teria levado a compreender que participação popular não surge porque governos criam "canais de participação" para uma sociedade em cuja formação jamais entraram as práticas reais da representação e da participação política, imperando as relações de favor e de clientela.

Teriam compreendido, igualmente, que participação popular não é estabelecer relação preferencial dos governos petistas com suas próprias tribos, isto é, movimentos populares específicos e movimentos sindicais. A falta de cultura política torna impraticável a participação popular nos governos petistas, onde a "participação" assume forma da democracia cristã (o mutirão), da social-democracia (os conselhos municipais criados pelo próprio governo) e do modelo das comunidades eclesiais de base (definidas pela comunidade de destino e pela identificação com o Messias profetizando).

Não confundir serviço público de cultura com atendimento das "demandas" das corporações das belas-artes que, na longa tradição brasileira, sempre tomaram o Estado como entidade beneficente que profissionaliza e subvenciona as atividades privadas de grupos artísticos. O clientelismo corporativista que o PT tem alimentado no setor sindical e que torna as relações dos grupos, associações, entidades e sindicatos com os governos municipais uma fonte inesgotável de atritos e de mal-entendidos é uma forma tácita e disfarçada de privatização do que é o público.

Não aceitar como "democratização do Estado" que os interesses do funcionalismo público se sobreponham aos direitos dos cidadãos. Se o partido não separasse cultura política e política cultural teria desenvolvido idéias claras e práticas adequadas para enfrentar essas questões. Como, porém, a cultura política petisca estacionou nas práticas do início dos anos 80 e a política cultural nunca foi elaborada, os desastres políticos no plano governamental aí estão.

Em resumo: alargar o conceito de cultura, ultrapassar os - marcos definidos pela institucionalidade estatal vigente que reduz a cultura às belas-artes, examinar o sistema de confusões que tem desorientado nossa prática partidária, social e governamental no campo da cultura, não ceder à "demanda" instituída, não ceder à privatização disfarçada acarretada pelo corporativismo externo e interno à estrutura governamental, não ceder ao clientelismo disfarçado em "participação". Não separar cultura política e política cultural, pensar e agir no campo da cultura tomando como referência as noções de temporalidade, simbolismo, trabalho das obras e direito dos cidadãos.

Celso Frateschi é secretário de Educação, Cultura e Esportes de Santo André/SP.

Geraldo Lemos é secretário da Cultura de Ipatinga/MG.

Jefferson Goulart é secretário da Cultura de Piracicaba/SP.

Luís Pilla Vares é secretário da Cultura de Porto Alegre/RS.

Luís Roberto Alves é secretário da Educação e Cultura de São Bernardo/SP.

Marilena Chaui é secretária de Cultura e de Esportes de São Paulo/SP.

Vera Viana é secretária da Cultura e Esportes de Vitória/ES.

[/nextpage]