Sociedade

Herbert de Souza, "o irmão do Henfil", relembra fatos importantes da sua vida - a militância na Ação Católica, na AP e o exílio. Além disso, ele discorre sobre a luta contra a Aids, a defesa do meio ambiente e revela que tem dúvidas em relação ao PT: "Um partido de quadros é perigoso."

 

De seu nascimento, a 3 de novembro de 1935, passando por uma infância marcada pela hemofilia e pelo convívio com as "duas escolas de vida" (como ele as chama) em que cresceu - a penitenciária e a funerária onde seu pai trabalhou -, Betinho discorre sobre os fatos mais importantes de sua vida: a militância na Ação Católica em Minas Gerais, sua participação na fundação e atividade política da Ação Popular, sua visão sobre a "loucura política" vivenciada no interior da AP, sua integração na produção em uma fábrica de porcelana em Mauá, no ABC paulista; as viagens na clandestinidade para o Uruguai e Cuba; o exílio no Chile, Canadá e México e seu retorno ao Brasil, onde dirige o Ibase (Instituto Brasileiro de Análises Sociais e Econômicas) e a Abia (Associação Brasileira Interdisciplinar de Aids ). Portador assintomático do vírus da Aids, Betinho nos brinda com suas reflexões sobre o sentido da democracia.

Como foi sua infância?
Eu nasci em 1935, em Bocaiúva, nordeste de Minas Gerais. Tive uma infância marcada, primeiro, pela hemofilia, a doença que se manifesta desde os primeiros dias de vida, e depois pelo fato de ter passado oito anos morando, com minha família, numa penitenciária onde meu pai trabalhava. Uma parte da infância e da adolescência eu vivi num outro ambiente inusitado, uma funerária. Acho que ninguém nasceu numa penitenciária e se criou numa funerária. Herbert de Souza

Seus irmãos também passaram por essa experiência?
O Henfil ainda mais do que eu, porque ele nasceu na penitenciária e se criou praticamente na funerária. Então, todo aquele humor negro, todo aquele sadismo e masoquismo tinham uma razão muito real, ele via aquelas coisas. O Chico já não teve a experiência da penitenciária. Talvez por isso ele fosse o menos politizado. Eu acho que é uma combinação altamente política, penitenciária e funerária.

Quando você chegou a Belo Horizonte, como começou seu relacionamento com a Ação Católica?
Minhas irmãs tinham sido educadas em colégios de freiras, e uma delas entrou para a Ação Católica. Foram elas que introduziram a família neste outro ambiente. Eu adoeci nos anos 50 e, quando saí da doença, entrei em contato com os padres dominicanos, particularmente o frei Mateus, que chegara a Belo Horizonte para fundar a JEC (Juventude Estudantil Católica). Por muito tempo os padres dominicanos exerceram em Belo Horizonte uma influência dentro da Ação Católica e particularmente dentro da JEC.

Você foi da direção da JEC?
A militância na JEC era muito grupal. A gente não dava importância a título ou cargo. Eu fazia parte de um grupo de pessoas extremamente ligadas entre si, com uma convivência intensa. Eu lembro de nós como um grupo que andava e trabalhava junto. Quando dizem que eu era da direção, eu acredito que tenha sido, mas não é uma lembrança marcante. Essa questão do poder interno não era determinante.

Como funcionava a JEC?
Tínhamos reuniões quase todos os dias, numa sede em cima do Cinema São Luís, em Belo Horizonte.

E as discussões eram em torno da Bíblia e da realidade?
Existia o método da ação Católica, que era Ver-Julgar-Agir. Esse método na verdade era aplicado em cima de duas preocupações. Era toda uma discussão em torno do Evangelho. A ação católica não lia a Bíblia, lia o Evangelho. Era uma visão bastante revolucionária do que significava o Cristianismo. A outra vertente era a análise política. Essa constituía para todo mundo uma novidade, porque de repente chegava um cara e dizia que Cristo era homem, que o Evangelho revolucionava a vida, quando você tinha sido criado numa Igreja conservadora. A Ação Católica produziu um choque cultural e conseguiu atrair uma turma grande. Esse período se caracterizou por um amplo processo de recrutamento. Alguns anos terminavam com quinze caras decidindo largar tudo e entrar para o convento. E foi assim que a Ordem dos Dominicanos cresceu imensamente neste período.

Esse grupo da JEC de que você participou teve grande inserção no movimento secundarista?
O movimento secundarista cresceu lá pelos anos 60. Tivemos na JEC um começo, que se politizou mesmo e virou movimento estudantil na JUC (Juventude Universitária Católica), quando disputávamos a direção da UNE.

Em que ano você entrou na JUC?
Em 58, e fiquei até 62.

Parece que a Faculdade de Ciências Econômicas, em que você estudou, era um núcleo forte da JUC em Minas Gerais.
Eu diria que foi o núcleo que gerou o pensamento político da JUC e depois o da Ação Popular. Vinícius Caldeira Brandt foi um dos que escreveu parte do documento-base da Ação Popular, e Antonio Otávio Cintra era outro que tinha um desenvolvimento intelectual e cultural forte. Acho que nós três tínhamos uma presença maior. E esse grupo, depois, se articulou com outros fora da Faculdade e de Minas Gerais. Veio a articulação com o grupo do Rio, da PUC, onde se deu o encontro com o padre Vaz, o Landim e outros. Mas eu acho que quem realmente partiu para um processo de elaboração de pensamento foi esse grupo de Minas.

Como era o relacionamento da JUC com a hierarquia da Igreja?
As relações eram com alguns padres, particularmente de algumas ordens. A Ação Católica se desenvolveu de uma forma muito autônoma, graças às ordens religiosas, basicamente a dos dominicanos. Eles se reportavam muito mais à França, à Europa, do que ao Vaticano ou à hierarquia tradicional da Igreja.

Foi por aí que veio todo o embasamento no personalismo de Mounier?
Começou por Lebret, depois Mounier e toda a linha personalista. Os próprios dominicanos tinham a pretensão de ter um pensamento próprio, de abrir suas linhas de influência.

Como foi o contato com outras correntes de pensamento a partir da militância estudantil da JUC?
Eu localizo dois grupos com os quais a gente tinha uma tensão muito grande. Um se reunia em torno do Centro de Estudos Cinematográficos, CEC. Era um grupo da área de cultura que nos hostilizava muito. Era formado por Silviano Santiago, Carlos Kroeber, grande amigo do Cazuza, Maurício Gomes Leite, Teotônio Jr., enfim, a nata do pessoal de teatro, da literatura e da crítica de cinema. De outro lado nós, os católicos, que nos sentíamos revolucionários. Eles zombavam de nós, dizendo que éramos "o atraso". A outra tensão, que se manifestou na JUC, era a divergência com o grupo marxista. Ali, no mesmo edifício da Faculdade de Ciências Econômicas, onde estavam os fundadores da Ação Popular, estavam também os fundadores da Polop (Política Operária). Teotônio dos Santos Júnior, Simon Schwartzman etc. Era o conflito entre cristãos e marxistas, que, de alguma forma, levou o grupo cristão a estudar marxismo. Eu não li primeiro Marx, li sobre Marx através de um jesuíta. Mas Teotônio e os outros já estavam lendo direto Marx. O nosso grupo nasceu e teve que debater com os novos marxistas, com o Partidão, com este grupo cultural que infernizava a nossa vida e com a Igreja tradicional.

Você chegou a participar da redação do "Ideal Histórico"?
Participei. O "Ideal Histórico", elaborado pela JUC, é a preliminar do documento-base da Ação Popular. Eu diria que ele ficava além do pensamento cristão clássico e um passo aquém no debate com o marxismo. Fazia a crítica do capitalismo, mas não falava em socialismo. O documento-base da AP tenta situar muito mais concretamente a questão democrática e da revolução, da política. Foi um passo dado quando percebemos que era impossível fazer o tipo de política que queríamos dentro da Igreja.

Este é um documento nacional, que foi aprovado em 62, não?
É, ele foi discutido nacionalmente.

E atraiu para esta discussão setores não jucistas?
Alguns. O documento-base não era uma produção da JUC, enquanto tal, mas a JUC foi muito atraída por ele. Eu diria que todo jucista politizado acabaria na Ação Popular. Exatamente porque o documento-base não fazia uma profissão de fé ideológica, marxista. Usava o marxismo mas não tinha aquela coisa que veio depois, quando você tinha que afirmar que era marxista, como um primeiro passo, depois ter que provar que era marxista e depois que só nós éramos marxistas.

Em outras entrevistas você chegou a comparar o nascimento da Ação Popular com a proposta do PT. É desse ponto de vista?
Eu acho que existem analogias possíveis. Na origem, inclusive nesta combinação de vertentes e de tendências, uma forte presença cristã, preocupação com a base, com o popular. Uma outra coisa é o sentido ético do engajamento. A militância da Ação Popular foi muito marcada pela ética. É o militante full time. O sujeito que se engajava na luta com a alma, o corpo, com a vida, com a morte. Essa coisa do engajamento quase xiita é uma marca. Nós tínhamos uma militância radicalizada e uma identificação muito grande com os pobres, com os dominados, com a desgraça. Essa marca cristã no pensamento de Ação Popular continua no PT, de uma certa forma. Existem marcas muito profundas que talvez venham da mesma matriz, que é a matriz judaico-cristã, de uma grande identificação com o hostilizado.

A partir de quando a Ação Popular se constituiu como organização?
Teve uma pré-fundação com a chamada reunião de Belo Horizonte, em 61. Estavam o padre Alípio, o padre Lage, se eu não me engano o padre Vaz apareceu por lá, essa militância toda de que eu falei, algumas lideranças sindicais, alguns profissionais liberais que já tinham saído da JUC mas que estavam conosco. Depois houve a reunião de Salvador, o Congresso, em 62, e aí é que se fundou realmente a Ação Popular.

Como funcionava organicamente a AP?
No início tínhamos uma direção nacional. Eu fui eleito coordenador nacional. Tinha uma coordenação nacional, um secretariado. Em seguida nós trabalhamos a implantação por estados e por setores: movimento sindical, movimento estudantil etc. Mais tarde apareceu uma espécie de fração parlamentar, que começou a ser criada pouco antes do Golpe de 64. Vieram numa reunião do secretariado nacional, no Rio de Janeiro, pedindo formalmente ingresso na Ação Popular, o Almino Afonso, o Paulo de Tarso Santos e o Plínio de Arruda Sampaio. O Almino tinha sido ministro do Trabalho e o Paulo de Tarso da Educação. Essa foi uma reunião muito curiosa, porque eles pertenciam a uma geração mais velha e se apresentavam a uma coordenação que era muito mais jovem do que eles.

Você trabalhou com o Paulo de Tarso no Ministério da Educação?
Eu fui coordenador da Assessoria do Paulo durante o tempo em que ele esteve no ministério, sete meses. A assessoria era chamada "os meninos do poder", porque era toda uma moçada, uns sete ou oito. E, por incrível que pareça, entre os jovens um deles se chamava Leopoldo Collor de Mello. Mas não se pode dizer que tenha havido algum tipo de influência mais organizada da AP no governo Jango. Afora o Ministério da Educação, onde tínhamos uma influência grande, nós atuávamos muito mais como pressão em torno do governo Jango, na Frente de Mobilização Popular, na Frente Parlamentar Nacionalista etc. A representação política da AP correspondia muito mais a uma força de base.

Durante o período em que você esteve na coordenação, a AP consolidou, no movimento estudantil, maioria que durou praticamente até a dissolução da UNE. Como você vê esta hegemonia?
No movimento estudantil tinha uma disputa de poder entre nós, o PC e a Polop - que era um pouco ousada. Quando você falava assim: "cinco nossos, três do PC e dois da Polop", era a forma de garantir maioria, porque a Polop não tinha bases para as representações que conseguia. Ela tinha pouquíssimos quadros, todo mundo sabia quem eram os caras da Polop. Nos congressos, que elegeram o Vinícius ou José Serra, quando a AP fazia reunião de bancada esvaziava o plenário. 60% eram membros da Ação Popular, que faziam o trabalho escola por escola. Faziam o trabalho de base mesmo, e apostavam neste trabalho. A partir da experiência da UNE Volante, quando passamos pelo Brasil inteiro, o Aldo Arantes com o Centro Popular de Cultura, o CPC da UNE, nós fomos convocando assembléias em todas as faculdades. Foi um trabalho gigantesco de massa.

Você ficou na coordenação da AP até quando?
De 62 a julho de 64, quando fomos embora para o Uruguai. Eu, Aldo Arantes, e logo depois o Jair Ferreira de Sá.

Como foi a relação com o Brizola?
Para o Uruguai foram, logo depois do Golpe, todas as lideranças conhecidas do CGT (Comando Geral dos Trabalhadores), PUA (Pacto de Unidade e Ação), UNE, AP, Polop, trotskistas, o grupo do Brizola, representantes do Arraes etc. Fazíamos a reunião da Frente de Mobilização Popular lá, com os mesmos personagens. E, lá basicamente, foram formados dois grupos: um articulado em torno do Jango, com o Valdir Pires, Darci Ribeiro, Almino. E outro que se articulava em torno do Brizola. Nós estávamos nesse. E aí o Brizola compôs uma espécie de comando com ele, obviamente, Paulo Schilling, Max da Costa Santos, Neiva Moreira, Cibilis da Rocha Viana, Aldo Arantes e eu. Nós como Ação Popular. Iniciou-se aí, dentro desta direção, um debate entre duas linhas. A linha da mobilização propunha uma insurreição: o Brizola entraria em Porto alegre e formaria a Rede da Legalidade de novo. O Brizola trabalhava intensamente nisso. Havia contatos com setores das Forças Armadas, da Brigada Militar do Rio Grande do Sul, com sindicatos etc. À medida em que essa linha não apresentava resultados, que o dia da "insurreição" era desmarcado sucessivamente, e que o Golpe ia se consolidando, nós começamos a ler Mao. Eu me lembro que lá no Uruguai eu li Escritos Militares. E aí começou a surgir em nossa cabeça, a influência da Revolução Cubana: a idéia da guerrilha. O Brizola dizia: "Bom, vamos tentar os dois. Eu só acredito na insurreição, mas se as pessoas querem fazer guerrilha, eu apóio". Quando nós saímos de lá, em 65, esses dois grupos estavam armando as suas atividades. Nessa época nós víamos que as coisas não iam bem com a Ação Popular. As informações que tínhamos era de que tudo estava desmobilizado. Aí decidimos voltar, para propor à AP a guerrilha. Viemos para São Paulo, retomamos a direção da Ação Popular e foi aí que se decidiu que o caminho da revolução era o da luta armada.

Qual era a sua visão sobre esse processo?
A nossa visão era muito esquemática e eu diria que profundamente equivocada. Nós achávamos que devíamos fazer a luta armada por intermédio da guerrilha, criando um foco, que geraria conflito, e este conflito jogaria a ditadura contra nós, mas a revelaria à sociedade. Esta, sob o impacto da revelação, iria nos apoiar e se rebelar. Boa parte das teorias guerrilheiras da época trabalhavam com a hipótese de um período de guerrilha e, logo depois, um período de greve geral e insurreição, que era o modelo cubano.

E a sua leitura maoísta no Uruguai?
A minha leitura de Mao foi muito específica: era uma leitura de Mao com olhos de Debray. A gente chegava com a teoria da guerrilha mas na verdade começava a fazer trabalho de massa. A AP não montou um grupo guerrilheiro. Não passamos da teoria à prática neste ponto, mas começamos a trabalhar com o movimento sindical, com mulher, com jovem, com Igreja etc.

Como foi sua viagem para Cuba?
A AP tinha participado de um congresso da Organização Latino-Americano de Solidariedade (Olas). Neste congresso tinha sido eleita uma representação do Brasil composta pelo Marighella e pelo Vinícius. Aí se resolveu que, durante um período, a representação permanente na Olas seria a Ação Popular. Eu fui escolhido para ir a Cuba. Fiquei lá onze meses. Pouco depois morreu o Che Guevara. Ele era o pivô de toda a articulação da Olas. Na verdade ela estava articulada tendo como centro a luta guerrilheira do Che na Bolívia. Quando ele morreu, morreu a Olas. Só que os cubanos não enterraram. E eu fiquei esperando onze meses a Ola se reunir e a Organização nunca se reuniu. Até que eu decidi que não tinha nada para fazer lá e vim embora. Isso foi em 67/68.