Estranho fim de século. No mesmo momento em que o capitalismo alcança, enfim, a unificação do mundo, em que a economia se internacionaliza a um grau sem precedentes, em que as empresas multinacionais dominam o mercado mundial, em que um comitê transnacional de banqueiros (FMI) dita sua política econômica e social para três quartos da humanidade, em que a Europa marcha a passos acelerados rumo à unidade supranacional, o nacionalismo volta espetacularmente à cena, tornando-se, em numerosos países, o único movimento político capaz de mobilizar multidões e o único valor-refúgio aceitável para uma grande parte da população.
Em lugar nenhum o fenômeno é tão evidente quanto na Europa do Leste e na ex-União Soviética. Eis o comentário de um observador arguto que resume perfeitamente a situação nesta parte do mundo: "Os últimos vestígios de solidariedade entre as nacionalidades não emancipadas do ‘cinturão de populações’ misturadas desaparecem com o fim desta burocracia central despótica que serviu para unificar e jogar umas contra as outras, as raivas difusas e as reivindicações nacionais rivais. A partir daí cada um está contra todos os outros, e, sobretudo, contra seus vizinhos mais próximos, eslovacos contra tchecos, croatas contra sérvios, ucranianos contra poloneses".
O mais chocante nessa análise é que ela não data da semana passada. Trata-se de uma passagem do livro fundamental de Hannah Arendt, As origens do totalitarismo (1951), que descreve a "atmosfera de degradação" da Europa do Leste durante os anos 20, isto é, depois da liquidação da monarquia austro-húngara e do império czarista, as duas "burocracias despóticas" apontadas na citação.1
Em outros termos: nós somos reconduzidos, numa larga parcela da Europa, a 60 anos atrás. Isto também faz parte do balanço "globalmente negativo" do stalinismo.
Por outro lado, sob certos pontos de vista, quase se poderia dizer que nós nos encontramos cem anos atrás, na época de um outro fim de século: hoje, como em 1892, o triunfo do capitalismo parece sem concorrente, as revoluções foram vencidas e o mundo burguês europeu se apresenta estável e destinado a um belo futuro. O movimento operário socialista é fraco e o nacionalismo é de longe, a ideologia dominante, exceto pelo fato de que, no fim do século passado, a II Internacional existia e tentava unir o movimento operário além de pátrias e fronteiras, o que não é o caso, atualmente.
Hoje, como em 1920, não há nada de regressivo - muito ao contrário! -, quando impérios multinacionais, que se tornaram verdadeiras "prisões de povos", desabam e nações oprimidas reencontram a liberdade. Socialistas e democratas não podem senão se regozijar ao ver os tanques soviéticos deixarem a Alemanha Oriental, a Polônia e a Hungria e as tropas da KGB se retirarem dos países bálticos, deixando estes povos decidirem eles próprios sobre o seu futuro e escolher livremente a unificação, a separação ou a federação.
Seria necessário todo o cinismo stalinista e pós-stalinista para legitimar a anexação da Lituânia e da Moldávia, a russificação da Ucrânia ou a invasão da Tcheco-Eslováquia em nome do socialismo ou do internacionalismo proletário.
Essa imensa mistificação já acabou, esta gigantesca mentira institucionalizada foi derrubada. Este grilhão se quebrou e as nações dominadas reencontraram seus direitos. Tanto melhor! Entretanto, nem tudo é tão brilhante assim neste quadro, o melhor e o pior estão inextricavelmente confundidos nestes movimentos nacionais. O melhor: o sonho democrático das nações espoliadas. O pior: o despertar dos nacionalismos chauvinistas, dos expansionismos, das intolerâncias, das xenofobias; o despertar das velhas querelas nacionais, dos ódios contra o "inimigo hereditário" e, sobretudo, o despertar das tendências hegemonistas conduzindo à opressão das próprias minorias nacionais.
Paradoxalmente, estes traços negativos e sinistros, este retorno do reprimido, esta ressurreição das antigas vendetas nacionais não se manifestam em parte alguma de maneira tão brutal e absurda como na Iugoslávia, o único país dito socialista que havia escapado ao controle de Moscou e que havia conseguido constituir uma federação relativamente igualitária entre as diversas nações.
A perplexidade frente a este desencadeamento súbito da violência nacionalista pode ser ilustrada pelo erro de julgamento de um observador dos movimentos nacionais tão lúcido e inteligente como Eric Hobsbawm: "A revolução iugoslava conseguiu impedir que as nacionalidades no interior de suas fronteiras se massacrassem umas às outras... E mesmo se este sucesso está, infelizmente, se perdendo, no fim de 1988 estas tensões nacionais ainda não tinham produzido uma única morte"2
Evidentemente pode-se explicar este paradoxo através de múltiplas e complexas causas econômicas, culturais, políticas, religiosas e históricas - sem esquecer a pesada responsabilidade do regime sérvio stalinista-nacionalista de Milosevic que abriu, por sua política de opressão dos albaneses do Kossovo a caixa de Pandora dos nacionalismos na Iugoslávia.
Não se pode desprezar um núcleo irredutível de irracionalidade pura, nesta explosão recíproca de raiva contra "o outro".
É impossível prever, no momento, se o "paradigma iugoslavo" vai se estender e se os conflitos atuais entre eslovacos e tchecos, húngaros e romenos, moldavos e russofônicos, azerbaidjanos e armênios, georgianos e ossetianos etc. vão tomar ou não a forma de um enfrentamento geral e se a dissolução em curso da ex-União Soviética vai ou não conduzir a uma guerra de todos contra todos (com armas nucleares?), que faria o atual conflito na Iugoslávia parecer uma peripécia. Tudo pode acontecer, o pior não deve ser excluído e o otimismo não está dado neste fim de século nacionalista.
As razões dessa explosão nacionalista que atinge todo o antigo "bloco socialista" são evidentes: de um lado a revolta contra a discriminação nacional e o hegemonismo da "grande-Rússia", de outro a crise e o desmoronamento das ideologias, culturas e valores "de classe". A política, como a natureza, tem horror do vazio e contrariamente ao que pensam os liberais e outros pós-modernos, o indivíduo em si mesmo não é um valor suficiente para cimentar uma sociedade. Face ao desaparecimento dos valores socialistas, desacreditados por meio século de manipulação e cinismo burocráticos, os povos se agarram a outros valores transindividuais não comprometidos com o velho regime autoritário: a religião e sobretudo a nação (valores estes freqüentemente associados).
Numa situação tão caótica frente a esse confuso Maelstrom de conflitos territoriais, reivindicações históricas, exclusões chauvinistas e movimentos libertadores, de que nos servem instrumentos analíticos e políticos do marxismo?
Como visão de mundo internacionalista, o marxismo distinto de suas múltiplas contrafações burocráticas nacionais - tem a vantagem de uma posição universalista, lúcida e crítica diante das paixões e embriaguez da mitologia nacionalista. Sob a condição de que este universal não permaneça como simples negação da particularidade nacional, mas seja um verdadeiro "universal concreto" (Hegel) capaz de integrar em si, sob a forma da Aufhebung dialética toda a riqueza do particular.