Mundo do Trabalho

As trabalhadoras rurais continuam a não ser reconhecidas em seus direitos básicos como parte da população economicamente ativa. O Estado tem a obrigação de garantir condições para que essas mulheres possam atuar de forma digna nos múltiplos papéis que lhes são exigidos

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No interior das comemorações do Dia Internacional da Mulher de 1992 destacou-se a caravana de mais de mil mulheres vindas de quinze estados do país - com uma grande participação de mulheres rurais - que se dirigiram aos Ministérios do Trabalho e Previdência, da Justiça, da Saúde e da Agricultura, encaminhando uma pauta que evidencia as reivindicações das trabalhadoras do campo. Nas várias audiências, realizadas entre 11 e 12 de março, foram colocadas, fundamentalmente, as seguintes reivindicações: regulamentação da Constituição federal sobre a reforma agrária; pagamento imediato da aposentadoria aos trabalhadores rurais; fim da esterilização em massa; fim da violência praticada contra as mulheres; direito à creche; cumprimento do atendimento à saúde integral à mulher e, finalmente, a reivindicação da derrubada do veto presidencial ao salário maternidade para as trabalhadoras rurais em regime familiar. Esta reivindicação responde ao veto de parte do projeto de lei que dispõe sobre os Planos de Benefícios da Previdência Social. Em sua mensagem nº 381, datada de 24 de julho de 91, o presidente da República vetou no projeto de lei n° 35 a concessão do salário-família e maternidade aos segurados especiais. Na justificativa argumentou que, de acordo com a lei vigente, os segurados especiais (isto é, o produtor, o parceiro, o meeiro e o arrendatário rural), não tendo uma relação empregatícia, não teriam correspondência segura entre a formação dos recursos e as despesas.

Este veto mostra como uma lei pode se tomar um claro mecanismo de reprodução das discriminações sociais. Torna as relações econômicas fontes de disparidade de tratamento entre trabalhadores empregados e autônomos, e recoloca para a sociedade a retomada de antigos mecanismos que, durante muito tempo, perpetuaram o afastamento das trabalhadoras rurais da cidadania.

Este veto explicita o não reconhecimento das mulheres rurais como parte da população ativa; a exclusão da esfera pública do exercício de um de seus direitos individuais fundamentais, isto é, a maternidade; a negação da garantia fundamental do afastamento do trabalho no período do parto e pós-parto, entendidos como respeito coletivo à procriação.

Podemos compreender melhor estes diferentes significados quando vinculamos as profundas transformações da agricultura às relações de trabalho. Este contexto de reestruturação atinge uma das mais antigas formas organizativas: a unidade de produção familiar. A mulher enfrenta uma série de desafios em seu mundo doméstico: a distribuição de seu tempo, a repartição das atividades familiares sem o subsídio e o auxílio dos serviços públicos. Ao mesmo tempo, ela se vê assumindo a co-responsabilidade da administração dos bens da unidade de produção familiar, da escolha das inovações tecnológicas, dos investimentos e dos compromissos junto às agências bancárias. Enfim, ela atua para manter os bens da unidade de produção, garantir a sobrevivência de seu núcleo familiar e contribui para a perpetuação do grupo social ao qual pertence. Tais condições são indispensáveis e desafiam a manutenção da eficiente e rentável inserção desta organização no cenário da produção agrícola no Brasil.

Ressaltamos que estes desafios vêm alterando, há mais de vinte anos, as antigas concepções de "isolamento" e "ineficácia" da unidade de produção familiar rural, sem por isso dar a esta uma visibilidade social e o reconhecimento jurídico por parte do Estado. Não podemos esquecer que só a Constituição de 88 propõe explicitamente uma equiparação entre trabalhadores urbanos e rurais.

Não recuperar estes desafios significa voltar a algumas antigas concepções da vida da família rural. O veto, contradizendo a Constituição, retira o dever público de estender às mulheres produtoras rurais o acesso ao salário-maternidade. Não podemos desconsiderar o fato de que o salário-maternidade é um valor monetário que expressa econômica e simbolicamente, em um momento especial, um estilo de vida e as relações familiares.

A elaboração simbólica dos direitos das mulheres deve ressaltar coerentemente os novos vínculos entre a produção e a reprodução. Deve ser capaz de dignificar as múltiplas expressões de sua individualidade. A compreensão destas dimensões permite uma defesa eficaz dos direitos das trabalhadoras em geral e das mulheres rurais em particular, seja no mundo do trabalho ou nas práticas da reprodução físico-social.

Trabalho e maternidade

Tanto as análises das estatísticas, como as pautas dos movimentos sociais, têm evidenciado que a instabilidade do trabalho remunerado que atinge as mulheres rurais deve ser atribuída às modalidades pelas quais se realizou a modernização da agricultura. As práticas da realização do trabalho doméstico, porém, não estão excluídas destas mudanças estruturais, apesar de nem sempre estarem evidentes as forças que obrigam as mulheres a reorganizar sua vida familiar. De fato, estas práticas sofrem mudanças e colocam desafios, sobretudo, às trabalhadoras que querem manter sua inserção produtiva externa ao lar. O trabalho rural, mais ainda que o trabalho urbano, impõe uma continuidade às atividades, sendo muito difícil distinguir até onde vão as práticas produtivas, onde começam e onde terminam as atividades de manutenção familiar. Há uma profunda permeabilidade entre o lar e o trabalho na agricultura. Este múltiplo conteúdo de "ser mulher" coloca para a produtora a necessidade de um grande investimento tanto para organizar o lar durante sua ausência no tempo da produção, como para realizar as tarefas domésticas e até para se preparar e atualizar profissionalmente.

Neste campo, as maiores dificuldades se manifestam na exigência de combinar os respectivos tempos das diferentes atividades; no fato destas implicarem grande esforço e desgaste físico-emocional; na luta para introduzir valores culturais que possam favorecer a repartição de algumas responsabilidades com seus companheiros; no fato de poder contar sempre com uma política trabalhista, social e previdenciária que promove o princípio da "responsabilidade coletiva- na produção e na reprodução.

É nestes aspectos que se estabelece, ainda hoje, a profunda diferença entre as mulheres trabalhadoras e os homens trabalhadores. Frente às pressões no seu cotidiano, as trabalhadoras não podem assumir verdadeiras decisões. As alternativas possíveis são, na verdade, falsas escolhas: abandonar o trabalho extradoméstico ou dedicar-se compulsoriamente à vida doméstica; ou, a mais frequente, se submeter a um cotidiano "duplo" e profundamente desgastaste.

Cada uma destas "opções" implica uma simplificação das responsabilidades da mulher frente à sociedade, renovando o sentido de exclusão. A atividade profissional de produtora rural poderia ser um exercício para ampliar a tradicional identidade doméstica feminina, já que exige uma maior competência técnica, uma racionalidade organizativa e uma prática administrativa. Ao mesmo tempo, essas novas capacidades poderiam redimensionar o valor aparentemente "privado" e invisível das práticas domésticas cotidianas. Em outras palavras, quando a mulher rural se profissionaliza como trabalhadora, ocorrem transformações culturais e econômicas que incentivam o grupo familiar a rever o sentido das práticas ligadas à própria definição tradicional de feminilidade. Se alteram também as fronteiras entre as atribuições sociais do feminino e do masculino e, consequentemente, se corrige definitivamente a tradicional exclusividade da imagem do homem provedor.

A "opção" de abandonar o trabalho agrícola para dedicar-se compulsoriamente ao trabalho doméstico também enfatiza o caráter seletivo, isto é, de exclusão, que limita as interligações e fortalece as fronteira, entre a produção e a reprodução, obscurecendo as relações sociais e econômicas. Na situação atual de desenvolvimento da produção familiar, a designação de somente uma destas atividades, isto é, a priorização da identidade doméstica da mulher, desconhece a existência social da outra.

Não seria este um profundo ato de exclusão?

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A segunda forma de exclusão faz referência à combinação das duas atividades, dentro do lar, em condições de desamparo legal e jurídico. Isto implica submeter a trabalhadora assalariada a um cotidiano duplamente desgastante. A ausência do reconhecimento jurídico dos papéis domésticos (entre outros a maternidade) faz com que todas as atividades, quando confrontadas, sejam avaliadas só pelo critério produtivista. Assim, estas atividades recebem uma classificação muito contrastada: a extradoméstica é supervalorizada, enquanto a doméstica é naturalizada e, por isso, tomada invisível, insignificante para o cálculo produtivo.

Alguns exemplos podem ser lembrados. Os empresários rurais estão resistindo a empregar trabalhadoras casadas, prevendo sua possível gravidez que, além da interrupção do trabalho, acarretaria ônus econômico decorrente da maternidade. Muitos deles estão adotando estratégias que estão "na moda" nas empresas urbanas: contratam mulheres por períodos curtos, somente após a certificação de seu estado civil de solteiras, ou exigindo a comprovação de sua esterilidade, ou pior ainda, despedem as trabalhadoras nos primeiros meses de gestação.

As trabalhadoras rurais, que produzem sob regime familiar e cuja atividade econômica se completa só no momento da venda da colheita, também enfrentam pressões para articular, em condições condignas, seu cotidiano doméstico e de trabalho. Com efeito, é esta a mais antiga relação de trabalho na qual se combinam, num contínuo profundamente heterogêneo e diversificado, as atividades produtivas e as práticas de educação e de socialização, entre outras. Todas realizadas no pequeno espaço social da família. Assim, as produtoras rurais familiares, mesmo estando a salvo da ação autoritária do empresário, para preservar sua integridade física e sua identidade, devem superar uma série de obstáculos.

Apesar da unidade de produção familiar contribuir para a produção capitalista esta não tem recebido, por parte do Estado, um reconhecimento jurídico de uma relação de trabalho legal capaz de proporcionar aos seus membros a cidadania plena. As trabalhadoras engajadas na unidade de produção familiar permanecem, com o veto presidencial esquecidas pela legislação previdenciária. Elas só podem buscar apoio e cooperação no seio da família para cumprir a longa e dupla jornada de trabalho, conciliando a roça e todos os cuidados que uma família necessita. Participam na definição do orçamento familiar, se responsabilizam, com maior dedicação e profissionalismo, não só da produção, mas também da gestão, da administração, da comercialização. Para preservar sua integridade física e sua identidade elas organizam privadamente seu cotidiano. A quase total ausência de serviços coletivos que possam substituí-las durante o tempo de trabalho na roça, ou até que possam socorrê-las em caso de acidentes ou de doença, torna o cotidiano muito cansativo e desgastante, já que não lhes permite pausas. Este ritmo não é interrompido, nem mesmo aliviado quando grávidas... Nem mesmo os cuidados dos filhos recém-nascidos, sua amamentação ou doenças, conseguem, interferir no seu cotidiano na roça e no lar.

A instabilidade ocupacional das produtoras rurais, ligada à descontinuidade do ciclo agrícola, torna-se ainda maior quando a mulher quer associar sua responsabilidade de mãe. O período de gravidez e pós-parto, que aguça todas as tensões, faz emergir todas as ambiguidades, torna evidente que sua ausência no estatuto jurídico de trabalhadora se transforma em exclusão da cidadania e na reprodução da desigualdade nas relações de gênero.

A decisão de abandonar o trabalho na roça, renunciando sua identidade ocupacional, a falta de tempo para se preparar profissionalmente, os casos muito frequentes de interrupção da gravidez, a alta mortalidade de recém-nascidos ou das próprias mães, são fatos que podem ter, agora, uma "explicação oficial". O presidente da República, com seu veto, sancionou que o direito ao trabalho e o direito à maternidade para a sociedade e para o Estado se contrapõem socialmente, se excluem mutuamente.

A impunidade das ilegalidades praticadas pelos empresários, a inconsistência com a qual a lei trata o caráter coletivo do trabalho doméstico, a ausência de normas (ou o desrespeito a elas, quando existem) que contemplem a interrupção do trabalho no período da maternidade, são a demonstração da arbitrariedade com que a dupla identidade feminina é concebida no seio das relações sociais.

Um profundo autoritarismo comanda o movimento de inclusão e exclusão da mulher no mercado de trabalho, apoiado na visão tradicional de que existe uma impossibilidade social de articular o emprego com a maternidade.Sujeitos do direito

O rápido e recente desenvolvimento da agricultura brasileira, mesmo que parcial, setorializado e concentrado em certas regiões, comportou não somente a reorganização do uso da terra e das técnicas de produção, mas, também transformou as condições de sobrevivência da população rural. A abertura das fronteiras do Norte e Centro-Oeste provocou a migração de um grande número de famílias provenientes de todas as regiões do país que, ao se instalar em terras praticamente virgens, conseguiram se impor como produtores capazes de formular ao poder público demandas que não exigem só a melhoria de suas condições produtivas, mas também de suas condições sociais e o respeito de seus direitos.

Ao mesmo tempo, em outras regiões, aproximando Sul e Nordeste, se expandiram as agroindústrias e com elas os produtores "integrados" que, mantendo o regime de produção familiar, passam a produzir, com ou sem contratos, nos ritmos impostos pelas empresas.

Nas áreas de produção canavieira de São Paulo, Pernambuco, Alagoas, Rio Grande do Norte e Rio de Janeiro, assim como nas áreas de produção de laranja, algodão, café etc, o contingente de assalariados torna-se sempre mais numeroso.

Todas estas mudanças, que atingiram e transformaram as famílias dos trabalhadores rurais, alteraram profundamente suas condições de vida. Nestes processos tão diferentes de reorganização das relações de trabalho as mulheres sempre estiveram presentes, mudando seu exclusivo estatuto de "dona de casa". Elas se tornaram também trabalhadoras, assalariadas, integradas.

Estes novos comportamentos, que aparentemente privilegiam, pela participação na produção, a atividade econômica, expressam os esforços de afirmar uma mais ampla identidade social e pessoal de mulher. A posição social dos indivíduos não está ligada somente à integração na economia mas também ao conjunto das relações que esta integração proporciona. O trabalho põe os produtores em contato, não só entre si, mas com os grupos e as instituições que implementam a modernização na agricultura. Incluem-se, assim, as relações dos trabalhadores com os empresários rurais, com as agências bancárias, com as indústrias de implementos e insumos, com as entidades de classe e com o próprio Estado.

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Neste processo, são definidas categorias administrativamente novas, suscetíveis de contribuir para a criação de novas identidades que poderiam beneficiar-se destas ações. A identidade social da mulher como "trabalhadora", "assalariada", implica que ela passa a agir e a querer ser reconhecida pela sociedade como tal. Deste modo o estatuto exclusivo de dona de casa é superado.

Como um dos principais agentes de apoio à promoção das mudanças na agricultura, o Estado deveria ter assumido também a responsabilidade de institucionalizar, através da promulgação de novas normas, a transformação da identidade da mulher rural "dona de casa" em seus novos estatutos, via reconhecimento destas nas leis trabalhistas, na previdência social, nas políticas de emprego e nos programas de desenvolvimento rural.

A implementação deste princípio aconteceu em 88 quando foi promulgada a nova Constituição, e mesmo assim de forma bastante precária, já que vários artigos são inoperantes pela falta de leis que os regulamentem. O veto presidencial denota que o Estado está se retirando desta responsabilidade em vez de prosseguir em sua promoção.

É claro que para a nova situação da agricultura o papel do Estado não deve se limitar à elaboração de leis que incluam essas novas categorias, mas tem que intervir democraticamente em diferentes instâncias a fim de que haja o respeito e um amplo reconhecimento destas diferenças.

Em outros países, como França, Canadá, Itália, Suécia, logo após a Segunda Guerra Mundial, as lutas dos movimentos sindicais, via negociações coletivas, fizeram com que a ação do Estado não se limitasse a classificar profissionalmente essas categorias e a institucionalizá-las, mas o levaram a assumi-las como interlocutoras nas definições de uma série de políticas. Citamos como exemplo as políticas para manter o emprego e melhorar o nível de remuneração, investir na formação profissional, ampliar o sistema de aposentadoria, reclassificar os trabalhadores desempregados.

Desta interação deriva uma concepção mais ampla de proteção social, já que assegura todos os cidadãos enquanto efetivos, potenciais ou ex-trabalhadores. Esta concepção passou a designar o conjunto de disposições tomadas para garantir àqueles que exercem uma atividade profissional uma série de obrigações e direitos; aos inativos assegura outras tantas formas de direitos justificados seja pela atividade profissional passada, futura, ou indiretamente desempenhada, seja enfim por uma idéia de solidariedade nacional.

Supera-se, assim, a visão paternalista, de proteção tutelar, já que todos os indivíduos são contemplados como participantes, mesmo que estejam em posições provisoriamente distantes da produção. A escolarização, a maternidade, o desemprego, a aposentadoria são situações que não excluem a possível, a passada, a presente, a futura, prática de trabalhador. Todos, homens e mulheres, jovens e aposentados, devem estar em condições de se apresentarem como sujeitos de direito frente à sociedade e ao Estado.

Alguns equívocos que perpassam a visão corrente sobre o direito previdenciário, quando este não estiver inserido nas relações sociais mais abrangentes, devem ser corrigidos.

Inicialmente, deve-se ressaltar o caráter inovador da legislação de proteção social. Esta, no sentido amplo do termo, é um elemento fundamental, ajudando a renovar o tipo de reconhecimento social atribuído aos indivíduos de uma coletividade. É uma política através da qual o Estado pode intervir sobre a hierarquização social, remodelando até as classificações sociais que desvirtuam os princípios democráticos de igualdade. É necessário, portanto, que a legislação de proteção social seja capaz de corrigir os estigmas, descaracterizando a produção das desigualdades que porventura se manifestem no mercado de emprego. A política social deve ser elaborada tendo, por parte do legislador, uma visão profundamente crítica das relações sociais. O princípio organizador deveria possibilitar a eliminação ou reajustar os explícitos e implícitos mecanismos de segregação, de exclusão e de marginalização de gênero ou de raça. Isto é possível, mantendo e ampliando sempre mais a presença dos trabalhadores e sua interlocução com todos os grupos sociais.

No que concerne às mulheres deve-se considerar o conjunto dos mecanismos que as deixam em desvantagem frente à mão-de-obra masculina. É necessário oferecer visibilidade às suas múltiplas posições sociais e, consequentemente, atribuir a estas um estatuto jurídico positivo, que se apóie num vínculo seguro com a manutenção da prática produtiva. O Estado, para respeitar as diferentes posições no mercado de trabalho das mulheres ou seu provisório afastamento e seu específico ciclo de vida, deve garantir condições dignas a fim de que também a mulher rural possa atuar contemporaneamente como trabalhadora, mãe, esposa e educadora. Consequentemente, o sistema de assistência deve fixar direitos e deveres de forma que tanto as normas como as práticas administrativas reconheçam a relação de reciprocidade interna a estas posições.

Os diferentes status de "assistidos"/"beneficiários" devem ser concebidos à luz das dimensões que vão muito além da posição de trabalhadores e devem incluir a combinação entre atribuições produtivas e reprodutivas. O sistema da previdência na França, por exemplo, reconhece o estatuto de "assistido" a partir das mais diversas situações: quando a pessoa é portadora de problemas físicos; quando pretende assumir a educação de crianças, seja quando a mãe ou o pai ficam sozinhos ("isolados") após o divórcio ou a viuvez, se responsabilizando pela educação delas; quando a pessoa não dispõe de condições suficientes para assegurar a manutenção e a educação de seus próprios filhos.

Observamos as relações entre as características da vida, produtiva dos trabalhadores e a concepção no Brasil da legislação previdenciária. Aproveitamos a oportunidade para recuperar algumas das propostas do ministro do Trabalho Reinhold Stephanes, expostas em entrevista no Jornal do Brasil dia 26 de janeiro de 92.

O ministro explicita como a atual legislação previdenciária deveria ser mudada. Em primeiro lugar dever-se-ia implantar a aposentadoria "por idade", estabelecendo uma idade mínima para tal direito: 65 anos para os homens e 60 para as mulheres. Em segundo lugar, dever-se-ia eliminar a diferença na idade dos homens e das mulheres para fins de aposentadoria. Finalmente, para aumentar os recursos da Previdência, as contribuições dos agricultores deveriam ser definidas a partir do módulo rural e não como prescreve hoje a Constituição, isto é, mediante uma alíquota sobre o resultado da comercialização da produção rural. Tais propostas do ministro se inspiram nos sistemas previdenciários de outros países, que ele chama de "organizados" e que definem a idade para a aposentadoria em 65 anos para os homens e 60 anos para as mulheres, após terem realizado de 15 a 25 anos de trabalho consecutivos.

No Brasil, no entanto, é outra a trajetória da população trabalhadora. É mais do que sabido que os trabalhadores brasileiros se tornam disponíveis para o mercado de trabalho muito mais cedo que a média dos trabalhadores na Europa. Este fato se acentua com um nível de vida muito mais precário, com uma alta taxa de analfabetismo e a ocupação de lugares produtivos onde é alto e intenso o desgaste físico, psicológico e moral. Prova disso é o fato de que hoje a expectativa de vida dos brasileiros é muito baixa se confrontada com a dos países chamados "organizados".

É fácil perceber que, se adotássemos uma idade mínima para aposentadoria muito próxima do limite da expectativa de vida, estaríamos não somente praticando, mas também legalizando, o uso predatório dos trabalhadores. Estaríamos impedindo que a grande maioria dos que trabalham durante toda a vida chegasse a gozar da aposentadoria, buscando se recompor das péssimas condições de trabalho enfrentadas, dos frequentes períodos de desemprego formal, das precárias condições de saúde, dos vários deslocamentos migratórios, fatores esses que contribuem para o rebaixamento da qualidade de vida.

Estes fatos são tão notórios que não é mais possível avaliar a população brasileira como jovem. De fato, quando se enfatiza tal "juventude", esconde-se a realidade de uma expectativa de vida que não supera, para os homens, 60 anos quando, em outros países "organizados", é de 70/75 anos. Se, no Brasil, o trabalhador parece jovem, é porque, na verdade, não consegue atingir a velhice. Portanto parece muito inoportuna a afirmação de que no Brasil "o tempo de inatividade chega a ser maior do que o tempo de contribuição".

Já que o ministro pretende conceder o direito de aposentadoria após pelo menos 40 anos de contribuições, deveria entender que, no Brasil, a média dos trabalhadores atinge este total de anos de serviço com uma idade física de 45/50 anos. Este fato ficaria evidente se os empregadores pagassem regularmente as contribuições. Por isso a proposta de cancelar a aposentadoria por anos de serviço e manter apenas por idade se afasta largamente das condições reais do país.

A sugestão de eliminar a diferença de idade entre os homens e as mulheres, fundamentada na maior expectativa de vida destas últimas (72 anos), ignora as condições específicas em que o trabalho produtivo é exercido. Sem contar o trabalho doméstico que, no Brasil, é iniciado já na infância. Portanto, não se deve perceber a chegada antecipada da mulher à idade da aposentadoria como um privilégio. Até sua mais alta expectativa de vida (72 anos, contra 60 dos homens) nada nos informa a respeito das condições em que ela chega a esta idade, nem mesmo como ela está vivendo a velhice. Assim, se uma reestruturação do sistema estatal da previdência brasileira deve ter como real objetivo o bem-estar da população, é preciso que se combine com uma série de iniciativas para corrigir, efetivamente, as gritantes perversidades que caracterizam as atuais relações entre as condições de vida e de trabalho, sobretudo a alta taxa de trabalho infantil, a grande evasão escolar no primeiro e segundo grau, a precaríssima assistência médico/hospitalar.

Paola Cappellin é professora de Sociologia na UFRJ – IFSC – Núcleo de Pesquisas Sindicais.

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