Internacional

É possível que o estabelecimento do mercado comum no Brasil, Argentina, Uruguai e Paraguai resulte no incremento da concentração e centralização de capitais. Para que propicie uma verdadeira melhoria na qualidade de vida de suas populações, a integração entre os países latino-americanos deve levar em conta a reestruturação da sociedade e da economia de cada um deles

[nextpage title="p1" ]

Em julho de 86 os presidentes Raul Alfonsin, da Argentina, e José Sarney, do Brasil, assinaram uma série de acordos, que deram origem ao Programa de Integração e Cooperação Econômica Argentina/Brasil (Pice). Os novos governos de Carlos Menem na Argentina e de Collor de Mello no Brasil decidiram, por sua vez, ampliar o Pice, dando origem ao Mercosul, instituído pelo Tratado de Assunção, em março de 91. O governo uruguaio de Lacalle decidiu aderir a esta proposta, e a substituição da ditadura de Stroessner pelo regime transicional do general Rodriguez favoreceu a incorporação do Paraguai. Vejamos, na sequência, as características de cada fase deste novo processo de integração latino-americana.

O projeto original do Pice foi constituído por 24 protocolos setoriais, formulados a partir de princípios estratégicos de "gradualismo, equilíbrio e realismo". Isto lhe deu características novas em relação a experiências anteriores latino-americanas de integração, que pecaram por excesso de ambições, e permitiu-lhe inserir-se na nova normatividade proposta pela Aladi. Sua importância em termos de relações regionais não pode ser menosprezada, já que pôs fim a uma antiga rivalidade entre as duas maiores nações sul-americanas. Pode implementar-se em função da desmoralização e deslegitimação política dos atores que tradicionalmente respaldaram essa rivalidade (Forças Armadas), porém foi também uma estratégia para afiançar os novos regimes democráticos.

Com efeito, na Bacia do Prata a recuperação democrática coincidiu com um agravamento da crise econômica. Incapacitados para recuperar as propostas desenvolvimentistas clássicas, os novos governos buscaram um recurso já desacreditado por experiências anteriores: o da integração regional. Desta vez, as características da proposta a tornaram mais viável.

A proposta do Pice supunha:

- "unir-se para crescer", através da formulação de uma alternativa de desenvolvimento de um amplo programa de integração econômica e cooperação.

- o interesse maior do programa era o favorecimento da integração interindustrial através do intercâmbio de insumos industriais semi-elaborados, superando as limitações que a recessão impunha a cada economia nacional e moderando os efeitos deficitários, no comércio exterior, de uma futura reativação.

- os intercâmbios comerciais de bens primários e de bens industriais terminados eram parte importante do Pice, porém não seu fim estratégico: tinham o sentido de fortalecer e agilizar vínculos entre duas economias que se mantinham relativamente protegidas em relação ao mercado internacional.

- os objetivos do Pice se explicitam com a inclusão de vários protocolos referentes à colaboração científica e tecnológica, incluindo indústria militar, energia nuclear e biotecnologia. Tratava-se de uma resposta comum aos desafios tecnológicos contemporâneos, um equivalente em dimensões latino-americanas ao projeto Eureka europeu. Existe também um protocolo cultural, que se refere à indústria editorial, cinematográfica, à televisão e à promoção de atividades nesse âmbito.

Assim, a iniciativa dos governos criou um marco para uma nova proposta de desenvolvimento, ao mesmo tempo seletiva (com negociações por setor e por produto) e multidimensional (não se baseava somente em intercâmbios comerciais, mas em um amplo registro de perspectivas de colaboração). O gradualismo do processo tinha como objetivo dar tempo para que os setores produtivos de ambos os países se ajustassem às contingências criadas por esta abertura parcial e seletiva de mercados, sedimentar interesses entre todos os participantes e desenvolver projetos compatíveis com a realidade econômica de cada país.

A partir da Ata de Buenos Aires, assinada por Menem e Collor em julho de 90, e do Tratado de Assunção, de 26 de março de 91, que criou o Mercosul, incorporando Uruguai e Paraguai, o caráter do processo se alterou radicalmente. Vejamos suas novas características.

O critério "gradual e seletivo" foi abandonado e fez-se um acordo de desgravação progressiva, linear e automática, à razão de 20% ao ano, para culminarem 31 de dezembro de 94 com a liberação total, prazo que se estende por um ano para Uruguai e Paraguai. Esta liberação passou a incluir os produtos "sensíveis", como os argentinos de clima subtropical, que haviam constituído uma "lista de exceções". Dessa forma a integração tem agora um prazo fixo, perdendo seu caráter seletivo e isso implicará a formação de um mercado unificado. Aumentou drasticamente o número de setores afetados (todos), e limitou-se o tempo outorgado para ajuste às novas condições.

Ao mesmo tempo, os Estados Nacionais retrocederam radicalmente em sua função reguladora, e agora se limitam a deixar atuar as forças do mercado, concentrando-se na coordenação de suas políticas macroeconômicas (basicamente a política cambial).

Porém, à medida de que a integração se acelera, ela perde seu caráter global, e são desativados os projetos tecnológicos conjuntos.
A ênfase no mercado recoloca em um lugar estratégico os intercâmbios comerciais com a diminuição da ênfase do projeto original em buscar alternativas conjuntas de desenvolvimento, reduzindo o Mercosul a uma liberalização do comércio, na mais pura tradição ortodoxa.

O paradoxal é que, junto com esta aceleração da integração regional, os governos procedem a uma abertura geral de suas economias para o mercado internacional, especialmente no caso argentino. Em lugar de uma abertura preferencial e seletiva em relação a sócios regionais, ele processa uma diluição drástica da fronteira comum com a economia internacional. Desse modo o Mercosul se constitui a partir de uma contradição lógica, que confunde, desde o começo, seus objetivos. Com efeito, as discussões sobre a coordenação macroeconômica, no contexto da ofensiva norte-americana da Iniciativa para as Américas (que todos estes governos apóiam), parecem constituir um dispositivo a mais de pressão sobre o Brasil, país que alcançou o maior grau de desenvolvimento da região a partir de uma política de orientação protecionista, no sentido de forçá-lo agora a uma reconversão liberal. Essa posição foi claramente explicitada pelo representante paraguaio em dezembro de 91, na reunião de ministros da economia que se realizou no Rio de Janeiro.

Outro traço relevante é que começam a se estruturar núcleos de negociação e articulação. O Grupo Mercado Comum, organismo executivo com representantes dos ministérios de relações exteriores, da economia e dos bancos centrais, discute a harmonização de políticas e a formação de grupos de trabalhos com setores empresariais. Foi criada, também, uma Comissão Parlamentar Conjunta. Mas, chamemos a atenção para um fato decisivo: esta ampliação do espaço de discussão ocorreu quando todas as decisões fundamentais já haviam sido tomadas.

Em síntese, o projeto do Mercosul reafirma a opção neoconservadora do Estado mínimo, que se impõe em nível nacional e se reproduz na integração regional. Os Estados Nacionais que integram o Mercosul renunciam à sua capacidade reguladora: a reestruturação produtiva será processada pela lógica dos mercados, pela canibalização e ou cartelização. Mas esta opção abarca também os efeitos do processo sobre as estruturas regionais e sociais. O "fanatismo do mercado" é tal que, diferentemente de outros processos de integração internacional, como a Comunidade Européia ou o Pacto Andino, não está previsto nenhum tratamento diferencial para os países de menor desenvolvimento relativo.

Mas, já que nos referimos à Comunidade Européia, assinalemos outra diferença: a lógica que presidirá a integração e a necessária reconversão não é a da expansão, ampliação e incorporação de novos setores, mas a de economias que aprofundam seus mecanismos de exclusão, em contextos recessivos. Se décadas de prosperidade européia tiveram como resultado "sociedades dos dois terços", com significativas desigualdades regionais e sociais, a lógica de mercado do Mercosul supõe, na melhor das hipóteses, a cristalização das tendências de exclusão vigentes, na forma de "sociedades de um terço".

Qualquer observador informado sabe que a Comunidade Européia é produto de décadas de negociações multilaterais, que supuseram sucessivos desdobramentos da capacidade reguladora dos Estados Nacionais, como o estabelecimento da Política Agrícola Comum, ou o tratamento dos desequilíbrios nacionais e regionais. Os protagonistas foram governos representativos, pela sua capacidade de articular interesses sociais diversificados, e que tiveram sempre como objetivo um incremento das perspectivas de renda e de bem-estar de suas populações e uma ampliação e potencialização da acumulação de capital. O oposto do que ocorre em nossas democracias neoconservadoras periféricas, onde o desmantelamento da capacidade reguladora do Estado e das mínimas conquistas sociais e trabalhistas da população, junto com a consolidação de novos mecanismos de exclusão, são apresentados como êxitos.

Coerentemente com sua inspiração, os governos realizaram a parte fundamental das negociações, até a assinatura dos tratados, sem promover a informação, o debate, a análise das consequências e a participação dos setores que seriam afetados pelo processo de integração. Somente a partir da constituição do grupo Mercado Comum é que se incorporou uma instância orgânica de diálogo com interesses societários, apenas para viabilizar a implementação de decisões estratégicas já tomadas.

Esta convocatória, por outra parte, está organizada por setores econômicos, o que limita seu alcance aos problemas estritamente localizados, sem afetar a orientação do processo global. Além disso, está restrita aos empresários de cada setor. Somente no Uruguai o movimento sindical reivindicou (e obteve) sua participação no conjunto das comissões.

Desde a Independência, o fantasma da integração latino-americana percorre com assiduidade nosso continente. Possui uma série de conotações positivas, que o articulam a reivindicações próprias do campo democrático-popular, como a insistência em recuperar nossas identidades comuns, a busca de uma posição conjunta e claramente latino-americana na ordem internacional, um modelo de desenvolvimento alternativo, que interiorize seus benefícios para as maiorias populares.

Mas, também é verdade que esta bandeira, em sua operacionalização concreta, foi com mais frequência uma tendência ligada às necessidades de expansão e racionalização do capital multinacional (regional e extra-regional) face aos limites estruturais dos mercados internos latino-americanos. Quer dizer, foi levantada mais como uma alternativa para manter a viabilidade de modelos excludentes de acumulação de capital e para conservar uma ordem social polarizada, do que para apoiar uma reorientação democrática de nossos países.

Não queremos desenvolver aqui uma avaliação crítica das intenções de integração latino-americana. Basta dizer que o projeto original do Pice parecia informado dos "impasses" desta história, e não se propunha como fundamento de uma alternativa regional. O Mercosul, ao contrário, se apóia assumidamente em uma filosofia social neoconservadora, e faz da bandeira da integração regional uma leitura estritamente liberal, reduzindo-a à liberação do comércio, o que contradiz a doutrina integracionista. No contexto de uma dissolução geral das fronteiras com a economia internacional e da Iniciativa para as Américas (feita pelo presidente Bush em junho de 90, localizada cronologicamente entre o Pice e o Mercosul), a proposta perde seu sentido básico de sedimentar um bloco sub-regional frente ao resto do mundo (tendencialmente aberto a outros países da região), para constituir um dispositivo regional de harmonização de espaços econômicos, tendo em vista sua incorporação à área de hegemonia comercial dos Estados Unidos.

O discurso integracionista está constituindo, no âmbito do Mercosul, uma estratégia de ocultamento. O debate se reduz à discussão de normas técnicas, reservada aos especialistas e tomadores de decisões, públicos e privados, excluindo sistematicamente a explicitação das possíveis consequências sociais do processo. O discurso político legitima este silêncio, através de invocações abstratas à "herança doutrinária peronista" (no caso argentino), à mitologia latino-americanista (com conotações democrático-populares) e com a constatação "realista" (e falsa, já que não se baseia em análises "reais" de casos de integração econômica) de que o sinal dos tempos é a formação de grandes espaços econômicos (curiosamente, a desintegração do Comecon e da União Soviética são citados como exemplos a favor desta tese). A criação destes espaços consiste na supressão, o quanto antes, de qualquer restrição ao comércio e à mobilidade do capital, junto com uma retirada geral do Estado da sua função reguladora (quando 35 anos de experiência européia indicam o contrário).

Esse é o único caminho possível para alcançar o desenvolvimento e o bem-estar geral, consequência automática do livre jogo de mercado. Idéias já tão velhas na América Latina que doem por sua falta de imaginação.

[/nextpage]

[nextpage title="p2" ]

 

Setor Industrial

Tomando como um dado a irreversibilidade do processo de formação do Mercosul sugerimos uma agenda de questões, sobre a qual poderá orientar-se a reflexão acadêmica e política.

Em primeiro lugar, pode-se esperar um incremento na concentração e centralização de capitais, com crescentes acordos entre capitais multinacionais, para redistribuição de mercados e integração interindustrial (como é o caso da Ford e Volkswagen, através do holding Autolatina). Em um ambiente oligopólico aumentarão as exigências de eficiência e competitividade, mas isto não supõe, necessariamente, a diminuição de preços ao consumidor.

Ao mesmo tempo, novas oportunidades se abrirão para pequenas e médias empresas que não dependam de compradores oligopônicos, e que possuam aptidões setoriais, organizacionais, tecnológicas e/ou de localização para incorporar-se vantajosamente no novo espaço econômico. Algumas empresas argentinas já estão conseguindo isso, e nos parece que este será o único espaço viável para as empresas uruguaias e paraguaias, assim como para muitas do sul-brasileiro. Mas a competitividade destas empresas depende em grande parte de condições trabalhistas especialmente penosas. Muitas outras empresas desaparecerão ou se manterão como ofertastes marginais em um mercado oligopólico.

Esta reestruturação terá grandes efeitos sobre os mercados de trabalho. A previsão óbvia é a de um aumento do desemprego global, sem perspectivas de ser neutralizado por eventuais reativações setoriais, que absorverão a capacidade ociosa ou incorporarão tecnologias capital-intensivas.

O novo nível de competitividade, o processo de reconversão e o aumento do desemprego terão efeitos negativos não somente sobre os salários reais (com o que reforçarão as limitações de mercado da integração), mas também sobre os níveis atuais de relações trabalhistas. Na Argentina, por exemplo, o Mercosul é utilizado para justificar a flexibilidade trabalhista, em nome da competitividade. São invocados os "interesses nacionais" (ameaçados, em todo caso, por compromissos assumidos pelo governo sem consulta à sociedade) para completar o retrocesso social e o isolamento político dos trabalhadores.

No plano trabalhista, a projeção, para os quatro países parece ser a de um fracionamento ainda maior do setor, numa perspectiva de nivelação para baixo de níveis salariais e de condições de trabalho. Isto sem que se cumpra a hipótese mais catastrófica, mas implícita no Tratado de Assunção, e aceita despreocupadamente pelos governos da Argentina, Uruguai e Paraguai: a livre mobilidade de fatores de produção (que em qualquer manual de economia inclui a força de trabalho) suporá o desbordo do imenso potencial demográfico brasileiro (150 milhões de habitantes) sobre os países vizinhos pouco densamente povoados (38 milhões) com consequências fáceis de imaginar.

Setor agrário

O setor agrário é o mais vulnerável à abertura para a economia internacional, já que não pode ajustar-se a condições de competição por limitações naturais e estruturais. Ao mesmo tempo, sua preservação tem claros objetivos sociais e até ecológicos, como mostra a experiência da Comunidade Européia. Mas desde o século 19, os países europeus (com exceção da Inglaterra) já adotaram políticas protecionistas em relação à agricultura. A extensão total da integração no Mercosul, diferentemente do Pacto Andino, por exemplo, centrado nos intercâmbios industriais, permite prever graves conseqüências neste setor, que não serão atenuadas por regulações estatais. As tendências à concentração e à repressão/dispersão social podem ser maiores no setor primário que no industrial.

A concentração no setor produtor de insumos para a agricultura e no setor agro-alimentício tenderá a aumentar a subordinação dos pequenos produtores, com todas as conseqüências previsíveis (crise da pequena produção, migrações, crises localizadas de abastecimento etc.).

Um mercado unificado provocará uma intensa reestruturação agrícola, segundo as condições naturais e competitividade técnica. O notável potencial argentino em produtos agrícolas de clima temperado se fará sentir sobre o Sul do Brasil e o Uruguai, enquanto a produção brasileira eliminará do mercado argentino os produtos tradicionais do Nordeste e Noroeste, e também do Paraguai, como o açúcar, o algodão e a erva-mate.

A questão regional

Parece provável que o conjunto destas questões se manifeste politicamente como uma redefinição da questão regional. Em condições de livre mercado, a integração tenderá a assumir a forma de uma dinamização dos intercâmbios entre regiões privilegiadas (mais do que entre países, tal como foi o caso na Comunidade Européia), desarticulando esquemas já estabelecidos de divisão regional do trabalho. As regiões mais capazes de afrontar as novas condições de competitividade e a dinâmica do mercado unificado serão também as mais favorecidas pelos novos fluxos de inversão. Aumentarão os desníveis regionais, o que redefinirá até as formulações clássicas da unidade nacional.

No Brasil, as importações vindas da Argentina afetarão gravemente o setor agrário do Rio Grande do Sul, Santa Catarina e Paraná, e eliminarão do mercado os produtores de baixa produtividade do Centro. No entanto, esta crise setorial terá compensação com a introdução de novos cultivos para o mercado interno e a exportação. Fora do setor agrícola existem nestas regiões atividades industriais que se beneficiarão com a integração.

Na Argentina, a situação pode ser muito mais grave. O Norte argentino se integrou ao mercado nacional de acordo com uma divisão regional do trabalho que o tornava provedor de bens agrícolas subtropicais, abastecendo as grandes concentrações urbanas e industriais do pampa úmido, onde se localizaram historicamente os pólos dinâmicos de crescimento. Estes setores, compostos socialmente por pequenos produtores de baixa produtividade, já têm sido afetados pela desindustrialização e a recessão crônica das últimas décadas, e as importações provenientes do capitalizado e eficiente setor agroindustrial brasileiro prometem deslocá-los definitivamente do mercado, sem que fiquem abertas alternativas viáveis de reconversão. Previsão semelhante pode ser feita sobre o setor agrícola.

O Mercosul, por sua vez, favoreceria as exportações agrícolas e agroindustriais da Argentina central, pampa úmido e províncias vinícolas e frutícolas, altamente competitivas em relação ao Sul brasileiro, e moderadamente em relação ao Uruguai. A demanda desta região de produtos subtropicais será abastecida pelo Brasil, com o que se agravarão os desequilíbrios regionais argentinos (já notáveis) em uma magnitude até agora desconhecida.

Desafios para a imaginação

Como as forças políticas que se inscrevem numa perspectiva democrática e popular enfrentarão este novo cenário? As respostas não podem ser dadas neste ou em outro texto, mas trataremos de indicar algumas notas para discussão.

A curto prazo, não parece possível oferecer alternativas à consolidação do Mercosul, da mesma forma que não se consegue modificar as políticas econômicas nacionais. Isto não se deve apenas à debilidade e desorganização do campo popular mas, também, à sua homogeneidade e, inclusive, à falta de informação e ausência de discussão pública sobre o tema.

Por esta razão, nos parece que nem sequer seria desejável, a curto prazo, uma tomada de posição contrária ao Mercosul. Mas será perigoso ignorá-lo com o argumento de que "beneficiará somente os empresários". Prejudicará alguns empresários, e seguramente prejudicará muitos trabalhadores, ainda que outros se beneficiem.

Recentemente, em uma conferência no Rio de Janeiro, Giuseppe Vacca utilizou uma referência gramsciana: a "internacionalização passiva". A internacionalização está se produzindo, irreversivelmente, por cima das forças populares, sem convocar sua participação. É necessário, então, que estas se mobilizem e assumam um papel ativo, autônomo e democratizador do processo. Se não o impedirem, devem pelo menos tratar de minimizar seus efeitos negativos e estar dispostos a atuar nas novas condições.

A curto prazo, os partidos políticos e as organizações populares devem abrir o debate nos âmbitos regionais e nacionais, solicitando informações sobre o processo, formulando diagnósticos setoriais e globais, discutindo alternativas com os setores afetados e os governos locais. A participação nas negociações deve ser reivindicada desde que não seja meramente decorativa.

Neste sentido, deve-se destacar que desde 1989 a Central Única dos Trabalhadores do Brasil vem desenvolvendo um ativo programa de trabalho com organizações sindicais dos países vizinhos, e realizou vários encontros setoriais e da região de fronteira. Este trabalho é, de certa forma, produto da nossa participação nesta iniciativa.

Internacionalização democrática

Enquanto isso, deve-se preparar o terreno para uma internacionalização democrática. Será necessário conhecer os possíveis aliados, tarefa na qual os intelectuais poderão realizar importantes contribuições. Para isto será necessário conhecer os cenários políticos nacionais e regionais, e organizar-separa neutralizar convocatórias nacionalistas, que ao opor-se à integração o fazem em nome de recortes ou de identidades que dividem as forças populares.

As possibilidades que se abrem para o movimento sindical são enormes. Talvez a melhor alternativa seja manter a autonomia das centrais sindicais, estreitando os laços de colaboração a nível setorial. Em primeiro lugar, será necessário o conhecimento mútuo entre sindicatos e seus membros, e a comunicação intensa em relação a condições de trabalho, de negociação e, em geral, da marcha de todo o setor. Os sindicatos metalúrgicos e da indústria automotriz já estão trabalhando neste sentido.

Será preciso dispor de uma informação sistemática sobre estas questões para poder enfrentar as relações com o patronato na nova etapa do Mercosul. Isto permitirá a convergência de reivindicações, regidas sempre pelo princípio inegociável de igualar "para cima" e não "para baixo". Esta será a única forma de evitar retrocessos e impedir que os avanços reivindicativos em um contexto nacional se convertam em prejuízo para os trabalhadores da mesma empresa ou setor em outro país. A internacionalização dos capitais e dos mercados obriga o movimento sindical a internacionalizar suas estratégias.

As organizações do setor agrário, por sua parte, devem buscar formas associativas que transcendam as fronteiras. Cooperativas e outras associações de produtores que facilitem sua defesa contra os monopólios de comercialização, que permitam influir na política de preços, de incorporação de tecnologia e, sobretudo, propor modelos alternativos solidários de organização da produção. Vários encontros foram realizados na região das Missões, congregando pequenos produtores argentinos e brasileiros.

Além desta imprescindível estratégia defensiva, o movimento democrático deve formular estratégias positivas, convergentes na constituição de uma "linha de frente" internacional, a partir do enclave nacional. Isto suporá, por exemplo, a capacidade para participar e propor alternativas de reconversão setorial ou regional, sem descuidar o plano global/nacional. É muito provável que o âmbito regional missioneiro (o Sul brasileiro, o Nordeste argentino, o Leste paraguaio e o Norte uruguaio) seja o espaço privilegiado para exercer esta estratégia, onde, com maior perspectiva de êxito e de repercussão as organizações populares poderão desenvolver suas propostas de internacionalização democrática e, a partir dali, chegar ao plano nacional.

Uma estratégia de ação multinacional imediata não parece viável, nem sequer a médio prazo. No momento atual, não poderia significar mais do que declarações de cúpula, com dificuldades até para formular um programa mínimo de ação. Ao contrário, uma estratégia que valorize a dimensão regional e setorial permitirá desenvolver ações conjuntas desde já, acumular forças e experiências da integração. No flanco deixado pela proposta canibal de integração, pela onipotência dos mercados, há um grande espaço a ser ocupado. Apesar de tudo a unidade latino-americana sempre formou parte do horizonte popular e democrático do continente.

Uma primeira linha de ação positiva, então, pode ser recuperar alguns elementos presentes na proposta original do Pice, descartados pelo Mercosul. Retomar, dotando de um sentido próprio, uma proposta de integração que não se esgote em intercâmbios comerciais, mas que avance decididamente em termos políticos, sociais e culturais. Esta proposta deverá recuperar os abortados projetos de colaboração tecnológica, redefinidos para atender às necessidades populares.

A médio prazo, consolidado um espaço legítimo e efetivo de ação a nível regional, deverá ser assumida a discussão da reconversão regional, que, inevitavelmente, provocará conflitos entre as instituições políticas locais e o governo nacional, caso este persista em sua vocação de Estado mínimo. Esta reconversão exigirá um compromisso estatal não só em termos financeiros, mas também políticos. Não se discutirá apenas o apoio creditício aos projetos de reconversão regional, de recuperação dos níveis de emprego e de apoio aos produtores agrícolas assolados pelo mercado, como se tornará evidente a necessidade de uma presença reguladora dos poderes públicos neste âmbito. A efetividade das ações realizadas e a acumulação de forças permitirão uma participação neste processo, sob a forma de planificação democrática: outra razão para se insistir na prioridade das ações no âmbito local e regional.

O argumento fundamental (que é um princípio e também constitui um objetivo final) para enfrentar os problemas decorrentes da implantação do Mercosul é o de ter sempre presente que os conflitos e crises inerentes a esta proposta se devem à persistência de um regime de acumulação restritivo e excludente.

Uma reestruturação da sociedade e da economia dos quatro países vinculados ao Mercosul, que tivesse como objetivo a satisfação das necessidades básicas de sua população, eliminaria, sem dúvida, as perspectivas catastróficas do modelo "soma zero" que nos é apresentado.

Hector Alimonda é professor do curso de pós-graduação em Desenvolvimento Agrícola da Universidade Federal do Rio de Janeiro e membro do Grupo de Trabalho Permanente sobre Mercosul, da CUT.

[/nextpage]