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No número passado de Teoria e Debate, nosso repórter relatou sua visita a três cidades do Nordeste administradas pelo PT. Agora, ele apresenta suas impressões a respeito de outros três municípios em que o partido exerce o Poder Executivo: Amambai (MS), São João do Triunfo (PR) e Ronda Alta (RS)

Conhecer as cidades que o PT administra no Mato Grosso do Sul, Paraná e Rio Grande do Sul equivale a investigar um dos motivos que levaram o partido a acolher em seu corpo a diferença. Diversidade é pouco para denominar este país.

Amambai (MS), São João do Triunfo (PR) e Ronda Alta (RS) formam um mosaico de culturas. Um painel que acolhe, com a mesma generosidade, a ânsia de esconder os 4 mil guaranis miseráveis e a multidão de brasiguaios que vivem nos arredores de Amambai, a resistência dos descendentes de poloneses a novos métodos de produção em São João do Triunfo e o efeito devastador de sucessivas políticas agrícolas nas médias e pequenas propriedades de Ronda Alta.

Construir o partido e tecer alternativas de desenvolvimento que não excluam a "maioria", nessas cidades, é um exercício de tolerância que nem sempre está presente no xadrez da disputa interna no PT. Marcadas pela "vocação" conservadora, as três cidades encontram na ação partidária inovações que tornam a política mais sofisticada e interessante.

De maldito a salvador, o PT percorre um caminho repleto de polêmica, esperança e até mesmo ódio. Mas não passa batido. E cresce, nas três cidades.

Cara-pálida

Andar de manhãzinha pela principal avenida de Amambai, a Pedro Manvailer, dá a impressão de que a trilha do dinheiro, e o conseqüente poder, ficam por ali. O movimento nos entrepostos das fazendas, nos bancos, nas lojas de implementos confere um visual bacana, misturando pick-ups importadas, gente com botas, chapéus no estilo John Wayne, uma ou outra bombacha e a cuia de mate.

De fraca tradição em organização popular, o município possui várias entidades onde os donos de fazendas, temas e lojas se reúnem. E decidem as coisas. Quem escolhe o ritmo do jogo e coloca as cartas na mesa está nas lojas maçônicas, nos escritórios das fazendas, nas lojas de implementos agrícolas, no Clube do Laço. A prefeitura é apenas mais um espaço passível de ser ocupado. Na definição de um antigo militante do PT, o partido "bateu a carteira da direita em 88. Ninguém esperava que o PT pudesse ganhar as eleições aqui".

É nesse caldeirão que os donos das botas de cano alto e dos chapéus John Wayne falam grosso contra partido e administração. Mesmo que essa tenha feito 47% do asfalto, esteja construindo sob consulta popular - a rodoviária, investindo 12% do orçamento em educação e mostre as contas da prefeitura. De quebra, a relação com o governador Pedro Pedrossian, do PST, é nenhuma. Pedrossian é seguidor da máxima de enviar o dinheiro público e firmar convênios apenas com gente de seu time.

Adenilson Rodrigues, o Prego, é um prefeito polêmico. Fundador do PT junto com o Movimento Sem-Terra, foi vereador da Arena e do PMDB antes de chegar ao partido. Embora não goste de falar no trabalho que realizou antes de ingressar na vida pública - "eu procurava sempre beneficiar, através do meu escritório de despachante, a população mais carente, que não podia pagar para tirar os documentos" -,ele avalia que seu carisma tenha contribuído para a vitória eleitoral em 88. Mas ressalta que "esse sempre foi um trabalho desinteressado".

Munido de noções que incluíam a democratização dos serviços prestados pela prefeitura, a defesa dos direitos da minoria indígena e a inversão de prioridades, Prego iniciou uma administração elogiada pela competência, mas intranqüila na relação com o partido. Sem gente para tocar a máquina, o prefeito concluiu que "o único caminho era avaliar os quadros existentes na administração e aproveitá-los de acordo com a capacidade técnica. Isso trouxe dificuldades".

Essas "dificuldades" ficaram insuportáveis quando os caminhos da administração se dividiram entre as prioridades exigidas pelo partido e a atuação da prefeitura. "A coisa ficou ruim quando o partido exigiu a demissão do meu irmão, que era secretário de obras."

Entre a administração e o PT, Prego ficou com a primeira. Houve renúncia coletiva dos petistas e o problema só foi superado um mês depois, quando o prefeito voltou atrás -"eu vi que havia uma contradição muito grande. Acabei entendendo que estava sendo injusto com a maioria que me elegeu. Demiti meu irmão e retomei os compromissos que só o Partido dos Trabalhadores tem".

Do contra

A oposição é poderosa e exercida diariamente, principalmente, na Câmara de Vereadores formada majoritariamente pelo PST - com sete vereadores. PRN, PMDB, PDS e PTB têm um parlamentar cada, completando os onze que a cidade elege. Qualquer iniciativa do Executivo pára no Legislativo, que dispõe de 25 minutos diários na Rádio Jornal AM, única na cidade, de propriedade do deputado estadual Zenóbio dos Santos, homem do esquema do governador.

Essa oposição se dispersa em três coligações para a disputa das eleições municipais de 92. E ela tem nome: Alteres Olimpios Zanella Fistarol. Sem papas na língua, Fistarol define a atual administração com petardos: "a máquina é inchada, a prefeitura emprega quarenta pessoas nas reservas indígenas para ganhar votos e esse prefeito desviou verbas e não fez nada nessa cidade".

Dono de uma grande loja de implementos agrícolas, vereador eleito com 680 votos em 88, Fistarol se altera quando fala sobre o partido, índios e brasiguaios. Ele explica, exaltado, que o PT levou à cidade os brasiguaios "para invadir as terras da dona Júlia Cardinal e fazer a CUT, o Movimento Sem-Terra e o PT ficarem por cima da carne seca. Agora o partido quer até que índio seja candidato a vereador. O PT só sabe administrar a miséria. Coloca isso aí...". Quando pergunto se seu partido, o PST, deve ceder legenda a índios, o comerciante é taxativo. "Não. Eles vêm aqui, gastam um dinheirinho no comércio, mas têm que viver lá na aldeia deles, junto com a gente deles." E, esquecendo-se da Constituição que jurou no dia em que tomou posse no Poder Legislativo, declara, às gargalhadas, que "senão, daqui a pouco, essa indiarada toma conta da cidade". A cara gorda e branca faz lembrar o filme Mississipi em Chamas, do cineasta britânico Allan Parker, nas passagens em que vários brancos de cara gorda criticam a imprensa e os almofadinhas "da cidade", que metiam o bedelho na vida deles, na forma como tratam os negros deles. A diferença é que em Amambai não existem negros. É a vida deles, os índios deles, os brasiguaios deles. Lei e Constituição são coisas da gente das cidades.

Muamba e gado

Para chegar à única cidade onde o PT está à frente da prefeitura no estado é preciso paciência, um carro com bons amortecedores e, a partir de Dourados, algumas horas de viagem por uma estrada de terra.

Distante 360 quilômetros da capital, Amambai é a quarta em importância política e econômica no estado. Seus 26 mil habitantes vivem do cultivo da soja, arroz, trigo, mandioca, milho e sorgo, do gado, da extração de madeira e erva-mate, além do comércio. Dessas atividades, o motor é a agricultura, que responde por quase 60% do dinheiro da cidade. Segundo a Funai local, cerca de 4 mil índios vivem nas aldeias de Limão Verde e Amambai, onde plantam milho, mandioca e feijão para o sustento.

O ônibus, que demora sete horas pela MS-156 para completar o percurso partindo de Campo Grande, sai de uma rodoviária barulhenta e movimentada pelo "pequeno" contrabando.

Os "muambeiros" vão e voltam de cidades como Ponta Porã, que faz divisa com Pedro Juan Cavallero, no Paraguai. Com alguma imaginação e um rápido passeio pode-se supor qual a atividade econômica que impulsiona seu crescimento. A cidade é equipada com alguns aeroportos para pequenas aeronaves e o portunhol é o idioma oficial.

Sob a descarada conivência do fisco e as vistas grossas das autoridades de fronteira, passam pela divisa todos os artigos vendidos pelos mascates do centro de São Paulo. E mais alguma coisa.

Ao largo das estradas planas, gado e mais gado. É uma imagem poderosa, herança dos gaúchos que colonizaram a região desde o início do século 19. Mas a paisagem do lado de cá das cercas não é tão plácida. E revela que a desigualdade econômica foi construída de mãos dadas com a segregação. Colocados à margem da economia formal, índios e mestiços perambulam pelas cidades.

Em Rio Brilhante e Dourados, crianças e adolescentes pedem dinheiro ou vendem um melancólico "artesanato indígena". Arcos, flechas e cocares feitos de fios de plástico e penas de galinha pintadas de azul, amarelo e vermelho.

Programa de índio

O ritual dos índios da Aldeia de Amambai, a oito quilômetros da cidade, é monótono e não pode ser chamado de exótico. Também não rende o Ibope que o roqueiro Sting desfila pela Europa. Em pequenos grupos, andam com a roupa de domingo revirando o lixo da cidade, pedindo em bares e mercearias. Pedindo é modo de dizer, já que o verbo dar é pronunciado no imperativo.

Entrar na área indígena esbarra na burocracia da Funai. Esses entraves não são experimentados pelos inúmeros ambulantes que vendem de chaveiros a comida na aldeia. Enquanto percorríamos a área, um fusca com algumas peças de carne no capô mostrava que esses comerciantes não primam pela honestidade. Vendem apenas sebo e os pulmões do boi. A Funai não deve achar tão repugnante quanto a presença da imprensa. Nosso passeio teve que ser clandestino.

Para implantar as escolas que ensinam o guarani, a prefeitura comprou uma briga feia. Só deu certo pela pressão dos índios e do Conselho Indigenista Missionário, da Igreja Católica.

A Funai privilegia a Missão Caiowá, ligada às igrejas protestantes, que mantêm uma escola onde é ensinado o português e o cristianismo. As crianças freqüentam as aulas de uniforme e recebem merenda. Depois, voltam às choças.

Além das escolas e do posto da Funai, a reserva se resume às malocas, pequenos cemitérios, algumas plantações e muita miséria. Pouca coisa ficou do tempo em que os guaranis chamavam de amambai uma pequena planta de folhas largas, usada como "calha" para construir abrigos momentâneos.

A história da cidade tem algo de peculiar. O Mato Grosso do Sul foi colonizado por gaúchos que buscavam tranqüilidade e o lucro certo da pecuária. Se pintasse algum ouro pela frente, seria bem aceito. Mas os metais preciosos foram encontrados apenas no norte da província. O sul só se desenvolveu depois que os trilhos da ferrovia Noroeste se estenderam de São Paulo até Campo Grande.

A cidade tinha um atrativo econômico - a erva-mate, logo explorada pela Companhia Mate Laranjeira Mendes, que abriu as estradas por onde chegaram os gaúchos, em 1889.

A partir de 1900, Amambai se integrou à forma de colonização do resto do estado e o gado passou a desempenhar papel fundamental na economia. Inicialmente chamado Vila União, o povoado ganhou status de município em 48. O poder municipal foi ocupado por membros dos clãs dos fundadores e depois por representantes do poder econômico local.