Cultura

Muitos viram em Anos Rebeldes uma denúncia da ditadura militar. Os seus elementos dramatúrgicos desmerecem, porém, a memória e a atualidade da esquerda brasileira. A série reduziu a luta armada a um equívoco de jovens moralistas e pouco ajuizados e transformou suas causas em demandas do passado.

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Algo de espantoso passou na Rede Globo. De 14 de julho a 14 de agosto de 92, toda semana, de terça a sexta, oficialmente às 22h30, mas de fato lá pelas 23h00, uma série falou do movimento estudantil brasileiro dos anos 60, depois os personagens centrais viraram guerrilheiros, e a série falou também da guerrilha, denunciou o arbítrio do golpe militar, condenou o AI-5, depois a tortura e a censura à imprensa. Entrou no ar Anos Rebeldes, de Gilberto Braga. Militares reclamaram, ofendidos, dizendo que a série distorcia os fatos. No dia 24 de julho, um certo Grupo Independente, reunido no Centro Monárquico do Rio, no bairro da Urca, debateu o assunto e concluiu, segundo um porta-voz, que os heróis do roteiro de Gilberto Braga "não passam de lacaios do movimento comunista internacional" (Folha de S. Paulo, 25/07/92, p 4-3). O Ministério do Exército comentou o assunto quase que no mesmo tom, no dia 27. Numa publicação chamada Noticiário do Exército, os militares acusaram os autores da série global de "revisionistas de plantão... que tentam conspurcar o nome do Exército, arguindo-lhe suspeição sobre crimes hediondos". Um reboliço.

Em contrapartida, quase todo o pessoal de esquerda que eu conheço - não é muita gente, eu sei, mas afinal é um universo representativo, ao menos para mim - começou a ficar entusiasmado. De um jeito ou de outro, lá estavam eles na televisão, os guerrilheiros. Não tomaram os meios de comunicação por mal, mas acabaram tomando por bem, não é irônico? A história da série era relativamente simples, como normalmente acontece com esse tipo de coisa na televisão. Maria Lúcia (Malu Mader), filha de um jornalista comunista, o Damasceno (Geraldo del Rey), namora João Alfredo (Cássio Gabus Mendes), o estudante rebelde, e é cortejada pelo melhor amigo de João, Edgar (Marcelo Serrado). Esse triângulo aí é da mesma turma no colégio, em tempos imediatamente anteriores ao golpe de 64. Quando vem o golpe e a luta contra a ditadura, a ação se desenrola contra o pano de fundo da conturbada década de 60. A tendência geral é simpática à esquerda, o autor compra a causa das liberdades democráticas, dos direitos humanos e condena em regra os gorilas do poder. Uma exceção na teledramaturgia da Globo. Mais que uma exceção, uma quente surpresa.

A exemplo da maioria, gostei da história logo nos primeiros capítulos. Mas mudei de idéia rapidamente. A maneira como os guerrilheiros foram retratados, todos tão bobos, foi me dando nos nervos. Acabei escrevendo que "Anos Rebeldes desmerece a memória e a atualidade da esquerda brasileira" (Folha de S.Paulo, "TV Folha", 09/08/ 92). Depois de cometer- e publicar - esta afirmação assaz categórica, fui bombardeado pelos meus conhecidos. Fui jogado em relativizações, considerandos tardios, por pouco não me arrependi. Os amigos protestaram veementemente. "A série pelo menos denuncia o que foi a ditadura"; "Você viu aquela cena em que a Heloísa (Cláudia Abreu) tira a camisa na frente do pai, Fábio (José Wilker), e mostra pra ele as marcas da tortura? Aquilo é fortíssimo."; "Os guerrilheiros eram todos chatos mesmo, até a Judith Patarra falou isso na sua entrevista para a Veja (11/08/ 90)". Eu me defendi como pude, procurando expor um humilde raciocínio aos interlocutores inconformados. As conversas foram tantas que concluí ser necessário organizá-las por escrito. Escrevo o que vem a seguir por dois motivos. O primeiro deles, egoísta, é convencer os meus amigos de que eu estou certo (quem é que não escreve movido por uma pretensão assim?). O segundo, mais militante, é trazer para as páginas de Teoria & Debate uma discussão que muitos podem achar menor, novela de televisão, prosa de comadre, mas que acredito ser indispensável. Ao fim deste artigo, os leitores poderão discordar de minhas opiniões, mas espero sinceramente que concordem comigo quanto à necessidade desse tipo de pauta numa revista como a nossa.

Gilberto Braga é, na atualidade, o maior dramaturgo de TV em atividade no Brasil. São dele alguns momentos memoráveis da nossa ficção global recente. A primeira metade de O dono do mundo (1990) foi de arrebentar, com Márcia (Malu Mader, Braga tem fixação por Malu), o retrato do servilismo da massa brasileira diante das suas elites, ardorosamente apaixonada pelo canalha Felipe (Antônio Fagundes), o retrato da elite parasitária, cruel, oportunista. caprichosa. E que argumento! Recém-casada suburbana, em lua-de-mel, em vez de se entregar ao noivo, trabalhador como ela, vai ainda virgem para a cama do patrão do cônjuge. Insisto na força da situação apresentada pela novela porque acabávamos de eleger um rapaz oriundo das oligarquias agrárias nordestinas para a Presidência da República. Com a desenvoltura de um galã, ele enganara a multidão de eleitores com promessas vulgares. Havia algo de feudal na essência de sua figura enfeitada, assim como havia algo de feudal na prerrogativa que assistia ao fictício Felipe (Fagundes) de desfrutar da primeira noite da mulher de um servo seu.

Alguém viu Calígula (Malcolm McDowell, no filme de 1980) currando uma noiva súdita com o próprio punho? "Eu, imperador...", e crau. Em O dono do mundo esse exercício de poder passava pelo consentimento feliz da dita cuja, tudo muito mais picante. E mais picante ainda porque ambos, presidente da República e Felipe, eram telecanalhas análogos, sem falar em Márcia (Malu) que, como a pátria brasileira, teimava em se envolver em seduções que se traduziriam mais tarde em humilhações. Naquele tempo, Malu Mader era muito atraente, tornava a novela tão irresistível como ela própria. Sejamos francos: todo mundo queria comer aquela noivinha. Novelas são feitas de coisas baixas assim, fazer o quê?

Todos sabemos que o argumento de Gilberto Braga nem era lá tão original, podia até ser visto como uma citação de Les Liaisons Dangereuses 60 (a adaptação do romance do século 18, escrito por Choderlos de Laclos, dirigida por Roger Vadim em 1959), com direito a estação de esqui para cenário da conquista amorosa e tudo mais. E daí? A potência de sua ficção arrebatava o imaginário continental deste país por tudo aquilo que estava dentro e fora do espaço cênico. Não dava para fugir do assunto. Mais do que a originalidade da idéia, o que nos fisgava era a oportunidade dela. Nisso reside o gênio do novelista de televisão.

Outro golaço de Gilberto Braga foi Anos Dourados (1986). Sublime nostalgia. Mas aquilo se passava nos anos 50, sabe como é. Anos 50, água com açúcar e PSDB não fazem mal a ninguém. Os anos 50 não fizeram mal sequer à carreira de Malu Mader, que passou incólume pelo papel de moçoila casadoira. O mesmo não se pode dizer de outros anos, os 60, os Anos Rebeldes. Lamento muito estar com esta opinião minoritária até agora, mas dessa vez nosso ficcionista patinou.

Talvez eu devesse dissertar sobre a natureza da década de 60, mas nossos leitores não merecem tamanho aborrecimento. Além do que, minha diferença com Anos Rebeldes fica muito mais no plano dramatúrgico, é mais um bode de telespectador, e só desdobra na política como o verbo ali, seis palavras atrás, já disse: por desdobramento. Se poupo os assinantes e compradores da revista de um seminário sobre anos 60, acho que não posso evitar de castigá-los com algumas breves considerações acerca do que entendo por melodrama de TV. Mesmo porque, como pretendo demonstrar logo mais, é impossível tratar Anos Rebeldes como drama político. Só podemos considerar a ficção de Braga como melodrama mesmo, este gênero que trata sentimentalmente dos sentimentos humanos.

O melodrama de TV serve para elevar o moral do espectador. Prende-o porque conforta-o, alivia o dilaceramento que a vida material produz no seu íntimo, devolve-lhe alguma forma de bem-estar. Ensina que a solução para as adversidades brota do centro do homem, na força de vontade, na fé, no amor - virtudes que por sua vez conduzem à (entra o fundo musical de violinos) paz, fraternidade, solidariedade, harmonia (e paro por aqui senão alguns leitores podem começar a chorar como se estivessem vendo um filme de Frank Capra). O melodrama reforça a ilusão de permanência do bem que trazemos em nós, por isso ele precisa ter a fórmula da superação de todas as misérias dentro de si, dentro do personagem, e não fora. Ele organiza e reorganiza as situações a partir de um centro de gravidade que está no núcleo do homem de bem; sua utopia de felicidade - sua esperança de final feliz (o final feliz pode não acontecer mas a esperança dele é indispensável) - está justamente em fechar este centro, torná-lo forte, resolvido e de longo alcance, livre de todo mal, amém.

Os relatos sobre uso de drogas atestam que a heroína dá uma sensação de auto-suficiência, ou mais que isso, de plenitude íntima; quem toma heroína experimentaria pois a sensação de não precisar de nada além dessa plenitude, nem de amor de outrem, nem de comida, nem de sono. O melodrama talvez produza um efeito análogo naqueles que o consomem, com sua mensagem de que Deus, a verdade, o bem, a beleza estão todos potencialmente acomodados dentro de cada um movido por boas intenções. O melodrama vem de fora mas desperta no seu consumidor o mesmo conforto sobre o qual ele tematiza, o conforto de que tudo já se tem, tudo está bem, tudo vai ficar bem.

Mas o melodrama, mais do que uma sensação, é uma narrativa, conta uma história. Tem começo, meio e fim. Normalmente, ele refaz o mito da consolidação do herói, que começa pelo trauma (a injustiça), passa pela promessa (a sagração, o juramento), continua na guerra, com a figura explícita ou velada do anjo da guarda ajudando o combatente do bem, prossegue na derrocada do dragão da maldade e seus comandados e culmina com a vitória do que antes teria sido o mais débil, a vítima, buscando promover assim a vingança boa, a guerra santa, lavar a alma dos fracos. Tanto que, embora o gosto da vitória seja compartilhado entre personagem e espectador, as agruras da batalha arriscam a existência apenas do personagem. O personagem arrisca sua existência em prol do conforto íntimo do espectador, do conforto de dentro.

Eu sei que você já está se perguntando por que estou nessa conversa mole aqui. Respondo: só para contrapor esses que me parecem os aspectos definidores de um gênero ao que se passou com Anos Rebeldes. É gozado como as pessoas reclamam que "a Globo transforma tudo em melodrama".

Ora, o problema não é este. Esta é justamente a parte deliciosa da televisão. Para mim, o problema começa quando ela transforma as coisas num melodrama que não se segura enquanto tal - e é daí que vêm os desdobramentos políticos dos quais reclamo.

Qual é o centro da série? Sim, o casal de namorados, Maria Lúcia (oh, Malu Mader, sinto muito) e João Alfredo (Cássio Gabus Mendes). O que se deve esperar desse que é o centro da trama? Que o casal se desfaça pelas nefandas influências malignas e depois, na luta do príncipe para libertar sua princesinha das labaredas do dragão - seja ele um galã, um antigalã, ou simplesmente um modo de vida -, que ele se recomponha num outro plano, num patamar superior como gostam de dizer os marxistas. Ou, se isso não dá pra acontecer, que ao menos aqueles valores, os princípios, aqueles objetos de fé que foram dados no início (o afeto do primeiro amor, ou mesmo as frases do discurso de formatura de João) se reafirmem, sobrevivam às turbulências da (viva o marxismo!) luta de classes, do curso material dos acontecimentos perversos. É preciso, enfim, que se consiga, ou pelo menos que se consiga acreditar possível "firmar o nobre pacto entre o cosmos sangrento e a alma pura".

Não, não é que eu queira escrever com antecedência o final de toda série ou novela de TV que vier a ser exibida a partir de hoje. O desfecho, a propósito, não-importa tanto. Importa mais o sentido dos movimentos que se desenrolam durante a trama, a vocação deles. Claro que um príncipe pode perder a batalha contra o dragão. Isso acontece nas melhores famílias. Mas o príncipe tem que ter aquela vocação, aquela aura sagrada, o poder de atrair para si os enfrentamentos e sua superação. O bem, mesmo que em gestação, tem que estar lá, vivo, dentro do herói, assim como as delícias da vida precisam morar na alma da princesa. Foi por isso que Steven Spielberg deu ao E.T. um coração que era pura luz dentro do peito. A luz, fonte de todo cinema, estava dentro do peito do E.T., o que tem todo o significado num cinema melodramático. Ele curava o Elliot com a ponta do dedo luminosa. Todo mundo chorava no cinema.

Assim, voltando à questão do desfecho, se ele importa ou não, eu diria que é importante que ele seja potencialmente bom desde o começo; é vital que o happy end seja crível, mesmo que não venha a se confirmar na hora H. Se ele não se confirma, mas era crível, teremos sempre dentro de nós a doce impressão de que ele ainda será realizável, porque o príncipe tinha a sua aura, a sua vocação, porque a princesa tinha sua sublime sensualidade. A tristeza é acidental, mas a felicidade é nosso verdadeiro destino (mais violinos).

Agora parem um pouco e pensem no casal de Anos Rebeldes, o centro da trama. Não é difícil notar que a Maria Lúcia de Malu Mader é a garota mais tenebrosamente chata de toda a história da TV Globo - e se admitirmos as heroínas das novelas mexicanas que passam no SBT para esse páreo, a Maria Lúcia continua sendo a mais repulsiva de todas elas. Maria Lúcia conseguiu ser mais fútil do que o Edgar (Marcelo Serrado), o cocôboy carreirista, que só não é mais carreirista porque é cocôboy demais. Lá no começo da série, o Edgar dá uma vitrola (naquele tempo era vitrola mesmo) de presente para a moça. Ela aceita, já que anda meio de paquera (naquele tempo era paquera mesmo) com ele. No bloco seguinte, ou no capítulo seguinte, ela começa a namorar o João Alfredo, meio traindo o Edgar, e depois, quando vai contar para o Edgar que ele perdeu sua doce namorada, anuncia solenemente que vai devolver a vitrola. O traído começa a espumar e se descabelar. "Você, capaz de pensar em vitrola numa hora dessas...", esbraveja.

Maria Lúcia concentra em si a futilidade típica que o centro de valores supostamente encarnado no herói condena. Ela é a negação de tudo aquilo que qualquer garota gostaria de ser nos anos 60. Sendo assim, Maria Lúcia não funciona como foco, pólo magnético, ponto de referência; vai apenas se deteriorando sem entrar em ação.

Quando um malogro desse tipo acontece com uma "princesa" de novela mais longa, uma das tramas paralelas ganha importância sobre ela e algum encanto antes marginal passa a substituir o encanto original que feneceu. Tudo se arranja. Malu Mader, tristemente, tem dado aí um certo azar. Sua personagem em O dono do mundo, a Márcia, desmilinguiu-se pelos capítulos afora. Precisaram arranjar um marido pra ela de última hora. E uma outra noiva para Felipe. Ela nem ficou com ele nem o derrotou. Ela não conseguiu ser o centro. Em Anos Rebeldes, contudo, não foi possível costurar algo assim a contento, principalmente em função da curta duração da série. Malu Mader e sua Maria Lúcia, que já não eram sólidas, apenas se desmancharam no ar.

Que não se pense que eu quero com isso invalidar a série. De modo algum. Ela tem lá seus méritos, mas continuemos um pouco mais nessa trilha. Maria Lúcia não era uma princesa de verdade, mas um traque; ela não resistia ao dragão da maldade mas se aliava bestamente a ele, e isso não apenas quando se casou com Edgar, o que teria até um sentido mítico. Poderia ocorrer nesse movimento a vingança irrefletida da princesa contra o bem, vingança que logo será motivo de arrependimento, algo típico dos contos de fada etc. Mas não. Maria Lúcia pactua com o dragão do modo de vida "alienado", "individualista", "acomodado" e "pequeno burguês" porque pertence a ele. Isso no plano material. No plano ideológico, se me dão licença de fazer essa distinção pouco ortodoxa, ela vive irritantemente dividida. Ela boicota toda a atividade política de João, um apaixonado pela política. Em contrapartida, não transa direito com Edgar, um apaixonado por Maria Lúcia; não se define de forma clara diante de nenhuma situação e finalmente sucumbe à mesquinhez de sua hesitação fundamental. Ela não entra para a guerrilha, mas também não fica de fora, fica ali atrapalhando, um horror. Maria Lúcia não dá e também não desce. Menos que um malogro de princesa, ela talvez fosse uma bruxa camuflada em sobrancelhas.

Premiado pela cruel conjuntura com uma namorada dessa laia, João é movido para a guerrilha por instinto de sobrevivência. Por mais paradoxal que pareça, casar com Maria Lúcia para ele seria a morte. A morte moral, a morte política, a morte da paixão - a morte dramática e dramatúrgica. Ora, isso tem um significado na tecitura do melodrama. Casado, João poria fim à ação da história. Faço aqui uma comparação: seria o mesmo que Tarzã ser comido pelo jacaré logo nos primeiros dez minutos de um filme.

Se João fica com ela, vai ter de cuidar de orçamento doméstico, vai ter de trabalhar, levá-la ao teatro etc; se ele vira chefe de família ou, no mínimo, maridão, ele não mergulha de vez na luta política; se ele não mergulha de vez na luta política, boa parte da emoção da trama (a guerrilha envolvendo personagens importantes) deixa de existir. Ele precisa romper com a sociedade conservadora para radicalizar sua atuação armada, à esquerda. Para João, romper com a ordem estabelecida, é romper com as expectativas pequeno-burguesas de Maria Lúcia. Para o telespectador, portanto, o casamento com ela, que deveria ser o nirvana, o paraíso final, torna-se algo indesejado. Entre desposar Maria Lúcia e converter-se a bundão irrecuperável há um indisfarçável sinal de igualdade.

A idéia básica de Gilberto Braga parece que era um pouco diferente disso. A madeira como ele organiza a narrativa nos leva a crer que João e Maria Lúcia protagonizariam a história de um amor impossível, mas de um amor enfim. Para ele, a garota, em vez da morte, representaria um sonho de felicidade. Entre ambos, o amor só não teria se realizado porque a ditadura e, depois, as desigualdades sociais, que tanto tocavam o príncipe, nunca permitiram. Em poucas palavras, o autor explica o afastamento entre os dois por razões outras - externas, posto que o mal, no melodrama, sempre vem de fora. "Uma guerra nos separou", diz João à Maria Lúcia no último capítulo. "Essa guerra agora acabou". Mesmo assim, eles terminam separados porque João, que acaba de voltar do exílio, com a lei da anistia, vai cumprir uma "tarefa" com camponeses sem-terra no Sul do país e adia por uma semana seu compromisso (com ela) de arranjar emprego. A luta armada talvez tenha passado, mas o bombardeio infernal de obrigações que Maria Lúcia despeja sobre o namorado continua inabalável. A separação final de João e Maria Lúcia deixa incontestável que safar-se dela, não por causa da guerra "externa", mas por causa da chatice "interna" da moça, foi o que permitiu a João levar a vida que ele quis. A sujeitar-se ao risco da morte que ele quis. Não fosse isso, não haveria Anos Rebeldes.
Mas até aí tudo bem. Os(as) chatos(as) também são dignos de amor. E há chatos que rendem ótimas histórias, além de ótimos artigos. Acontece que vários outros problemas que complicam ainda mais a eficiência da trama resultam da chatice "contra-revolucionária" de Maria Lúcia e comprometem o restante. A insistência de Gilberto Braga em enfatizar o amor de João à namorada, mantendo-o preso a um sentimento contraditório com seus valores e com suas fantasias de prazer e liberdade, corrói gravemente a própria integridade de João. Ele parece meio bobo. "Ora", alguém pode argumentar, "mas Romeu amou Julieta, uma inimiga mortal de sua família, e Julieta amou Romeu com a mesma intensidade". Sim, mas aquilo era uma tragédia e, quando transformada em melodrama por Zeffirelli, nas telas de cinema, tinha o grande trunfo de abrigar o casal central num único sistema de valores segundo o qual o amor a tudo poderia pacificar e submeter. Romeu e Julieta, escravos de um amor impossível, lutam até a morte para vivê-lo. João e Maria Lúcia, pretensamente acometidos do mesmo mal (a "família" de João é o ideal que o acolhe com calor, o humanismo de esquerda, e é inimiga da "família" de Maria Lúcia, que é a ambição de desfrutar da sociedade de consumo amparada pela ditadura militar), não lutam pelo amor impossível. Ao contrário. Ele luta por suas causas políticas e ela luta para ter uma vitrola e um quarto só dela. O melodrama francamente não convive muito bem com tamanha discrepância de sentimentos no casal central. Logo, se João insiste tanto neste romance capenga, deve ser ruim da cabeça.

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Atenção: não digo que qualquer pessoa não possa amar qualquer outra livremente. Digo outra coisa. Digo que, num melodrama, este tipo de desencontro amoroso tão desencantado, pueril e enganoso, esvazia o poder da trama. Não digo que tal amor não seja crível, verossímil, e até comum. Digo apenas que, dentro da estrutura do melodrama de TV, fica pífio. À medida que insiste nesta paixão de João pela menina, o roteiro vai dando também a ele uma certa aura de superficialidade. Ele não ama a pessoa certa e isso é imperdoável a um herói. Ora, direis, mas ele não precisa ser um herói, e eu serei obrigado a concordar. Não precisa ser um herói tout court. Mas deve suportar dignamente com os seus ombros a condução da história. Ele pode até fraquejar, pode ser um herói caído, mas não pode trair internamente suas boas intenções. E as boas intenções, a fé na humanidade, na solidariedade, na justiça, tudo isso acompanha João. O seu problema é que, além delas, resta-lhe pouca coisa. O exercício de insensatez para sustentar a paixão por Maria Lúcia é tamanho que ele mesmo se confunde com a insensatez, não parece assim tão comprometido com os ideais (sentimentos) que professa.

Senão vejamos. A oposição entre força e fraqueza (entre a ditadura e suas vítimas, como o próprio pai de Maria Lúcia, ou como o bom editor de livros, Queirós, vivido por Carlos Zara) é nesta série tão importante quanto a oposição truculência (prisões, torturas etc) e sensibilidade (a música de Caetano, de Chico, o teatro de Zé Celso), a oposição entre direita (os que são contrários ao diálogo) e esquerda (os humanistas, sempre de acordo com o dicionário do dramaturgo) e a oposição entre inteligência (entendida pelo autor como esperteza) e insensatez. De um lado está o mal, do outro o bem. Na economia interna de Anos Rebeldes, a sensibilidade, a fraqueza e a insensatez ficaram do lado do bem, assim como a força, a inteligência e a truculência ficaram com o mal. No caso de João isto é nítido. Que amar Maria Lúcia resulta de uma estreiteza de horizontes afetivos ninguém discute. O amor pode ser cego, o coração pode estar divorciado da cabeça, mas quando o coração, cujas razões a razão desconhece, núcleo do bom herói do melodrama, tomado por um amor errado, errado, que não se corrige, perde-se de sua própria "coerência sentimental", faz concessões àquilo que considera "menor", a um modo de vida que condena, é a imagem mesma do personagem quem resulta ferida. Ele vai aos poucos se renegando, se complicando, parecendo cada vez mais irrefletido e, pior, portador de uma intuição defeituosa.

Naturalmente, o herói sujeita-se à fraqueza (Jesus Cristo também viveu suas tentações), e todos temos que aceitá-la. O que acontece com a fraqueza de João é que ela não faz parte das provações, mas é original de sua própria concepção. O amor por Maria Lúcia não será algo que ele vencerá, mas uma espécie de debilidade com a qual ele aprenderá a conviver, como quem convive com a rinite alérgica. É um amor que o atrapalha ao longo da vida. Quando ele termina separado dela, como quem se livra da própria bruxa, mas sem perceber, não o faz porque seu amor pela humanidade teria sido mais forte. A separação se deve tão somente, e uma vez mais, à chatice dela que ficou implicando com o atraso dele em arranjar um emprego.

Maria Lúcia, por sua vez, termina fazendo uma transição da esquerda para a direita (e esquerda e direita é uma das oposições fundamentais do roteiro) e daí para o individualismo neurótico. Filha de comunista, Maria Lúcia viveu as agruras de não ver satisfeitos os seus caprichos adolescentes e vê no namorado esquerdista a chance de redimir o pai. Nunca se coloca contra as razões da esquerda, mas se coloca sempre contra as práticas que resultam dessas razões, sejam assembléias, reuniões, panfletagens ou luta armada. Até que ela é "politicamente correta", mas irreversível e obstinadamente imobilista.

Eis pois que fugir de Maria Lúcia é um reflexo vital, um ponto a favor, um mérito. Mas fugir dela em direção à guerrilha, no caso de João Alfredo, é produto também de um impulso irrefletido, e aqui se fecha o círculo dramatúrgico que, ao fim de tudo, termina por desmerecer, por desdobramento, a opção política da esquerda. Se o amor de João Alfredo não encontra justificativa dramatúrgica, não encontra cumplicidade no telespectador, a opção política de João Alfredo não encontra motivações racionais. Doente do coração, ele também é meio lelé da cuca. Se está mesmo dividido entre uma paixão amorosa e uma atuação política que julga necessária, João resolve mal tanto uma quanto outra. Isso, por um lado, realça sua opção pela luta armada como uma escapada de uma vida medíocre ao lado de Maria Lúcia, uma escapada inconsciente. Por outro lado, entretanto, esvazia o conteúdo propriamente político de sua opção.

A caracterização do personagem pelo ator Cássio Gabus Mendes concorre para essa impressão de destempero. É, a propósito, uma caracterização bem próxima daquela que o mesmo ator imprimiu a Parsifal, personagem título de uma peça montada este ano no Tuca, em São Paulo. Parsifal, não por acaso, é um tipo que cresce longe da civilização, é ingênuo, puro demais, meio João bobão. O traço fundamental (e comum) das duas caracterizações reside justamente nesta pureza selvagem, que brota pela garganta dos personagens através de gritos profundos, estomacais, gritos primais contra o ser civilizado. São os gritos de João contra o pai que dão ao telespectador a grande explicação de sua adesão à luta armada.

Rigorosamente, João entra numa luta que não entende muito bem, vai meio a reboque. Aconteceu isso com muita gente, de verdade, já sabemos. Mas, vejam bem o que temos aqui: um cara envolvido num amor que não seduz o telespectador, metendo-se numa "guerra" que não convence o telespectador. Pessoalmente, tenho a impressão de que a guerrilha foi um erro, mas para mim, que tinha 9 anos em 1968, e morava em Orlândia, a 17 km de São Joaquim da Barra, terra de Ivo Vannucchi, é muito fácil dizer isso agora. Naqueles anos não teria sido tão fácil assim. A Revolução Cubana (armada) promovia a elevação do padrão de vida das massas. Dez anos antes da Revolução Cubana, que aconteceu em 1959, a Chinesa, em 1949, levou o PC e Mao Tse Tung, armados, a derrotarem o Kuomintang de Chiang Kai-Shek. Naquela mesma década de 60 e início dos anos 70, a guerrilha no Vietnã imprimia uma derrota política (e militar, dizem muitos) às tropas americanas. Não quero citar outros fatos (Paris, Praga, África), mas a luta política e a luta armada eram perspectivas racionais para aquela geração e algumas de suas lideranças, que vinham da luta socialista desde gerações anteriores.

Agora retomo o que escrevi no jornal, que "Anos Rebeldes desmerece a memória e a atualidade da esquerda brasileira". Insisto, uma vez mais, que isso não se dá por razões políticas, mas se dá em função dos elementos constitutivos do roteiro de Anos Rebeldes e da maneira como eles se relacionam. Ao mostrar o guerrilheiro movido "apenas" a idealismo, ela reduz a luta armada a um equívoco de jovens bem intencionados, mas pouco ajuizados. Ao mesmo tempo, transforma as causas da esquerda em coisas passadas, em demandas antigas, superadas, que hoje apenas nos viriam como nostalgia. Mas voltemos ao passado, ainda que por nostalgia, e observemos que todos os amigos de João, todos os seus "companheiros", são igualmente estreitos. Eu não discuto a performance magnífica, a brilhante atuação de Cláudia Abreu como Heloísa. Há tempos eu não via uma estrela desse porte nascer na Globo. Uma maravilha. O que eu discuto é o substrato da personagem de Heloísa, como dos outros. Assim como Maria Lúcia quer redimir o pai, Heloísa quer atazanar a vida do seu, o empresário Fábio (José Wilker, bom também). É por raiva dele que ela, nas palavras dele, comete "suicídio".

O pai, outra vez. É também uma relação mal-resolvida com o pai que motiva Sandra (Deborah Evelyn). Filha de Salviano (Gianfrancesco Guarnieri), médico e guerrilheiro, ex-militante do PCB, Sandra venera o pai, adora-o, ama-o compulsivamente. Fuma sem parar, como se quisesse atrair a atenção do pai-médico: entra na guerrilha para que o pai-militante a respeite. O próprio Salviano de Guarnieri, que poderia dar à guerrilha melodramática alguma defesa lógica, fica pouco explicado. Há aqui uma curiosidade na carreira do ator, numa comparação inevitável. O seu radical Salviano serve de contraponto ao operário "ajuizado" e contra a greve que ele interpretou em Eles não usam black-tie (filme de León Hirszman, lançado em 1981, no calor das greves que deram origem ao PT, adaptado da peça que o próprio Guarnieri escreveu em 1958). Outro detalhe: em Anos Rebeldes, Guarnieri rompe com o PC, cuja política ele sustenta em Eles não usam Black-tie.

Curioso: se o ator Guarnieri volta no tempo para romper com o PC, a dramaturgia brasileira não rompe. Em Anos Rebeldes todos os guerrilheiros são insensatos, exatamente o que teria dito um militante do PC. Melhor: era exatamente isso o que dizia o mister partidão Damasceno (Geraldo del Rey), o pai de Maria Lúcia, antes de morrer, sintomaticamente, do coração. É possível que exista entre o filme de Hirszman e a série de Braga uma relação de pai e filha, mas isso seria ir longe demais, fica para uma outra sessão de especulação.

Já me perguntaram se eu esperava que Gilberto Braga fizesse discurso político em sua ficção, ou que ele colocasse no ar a íntegra das resoluções da ALN. Há um duplo equívoco nessa argumentação. Em primeiro lugar, eu detestaria que isso acontecesse. Anos Rebeldes seria ainda mais aborrecido do que foi. Em segundo lugar. Gilberto Braga efetivamente fez discurso político. Mas um discurso político meio udenista, em boca de guerrilheiro. Se "discurso udenista" lhes parece uma expressão abusada, eu diria então um discurso político de campanha da fraternidade, a um tempo choroso e filantrópico, sentimental e pouco racional.

Um discurso político politicamente esvaziado, portanto, feito de encomenda para comover tardiamente todo o pessoal conservador que apoiou de um modo ou de outro o golpe militar. Não foi o conservadorismo que se dobrou à eloquência da guerrilha, mas a guerrilha que se adaptou à escala das boas intenções professadas também pelo conservadorismo, embora com hipocrisia.

Há mais do que isso. Há uma conclusão à qual a narrativa de Gilberto Braga conduz os telespectadores: a de que se os pais não fossem tão caretas naquele tempo os filhos não teriam morrido "inutilmente". O que pode até ser parte da verdade, mas está longe de ser o centro da verdade. Para Gilberto Braga, e é isso o que se depreende depois de encerrada a série, a ditadura brasileira pecou pela violência, quando muito. Ele jamais questionou o monstruoso erro político que havia naquela concepção de poder, que arruinou o país do ponto de vista institucional, social e econômico (do ponto de vista do trabalhador). A ditadura não era apenas brutal - ela era errada. Mas isso Anos Rebeldes não diz. A oposição entre dois projetos políticos para o Brasil (o da direita e o da esquerda), some da cena. Esse vazio inviabiliza o tratamento da série como drama político; sua matéria-prima continua sendo a que sempre abasteceu o melodrama clássico e o melodrama de TV, os sentimentos do coração. Resta ao telespectador um conflito entre um governo muito antigo, que foi arbitrário demais, e uma juventude de antigamente, que era inflamada além da conta.

Notem, agora, como faz sentido que a "inteligência" figure no rol das posses daqueles que tinham a força, que ela seja um atributo dos vilões, já que os guerrilheiros, como vimos, eram tão insensatos. "Eu não conheço nenhum sacana que não tenha se dado bem", diz Maria Lúcia no último capítulo. E todos os idealistas. de um jeito ou de outro, acabaram se dando mal. Vai ver que, no dicionário de Anos Rebeldes, a inteligência está em saber jogar o projeto individual dentro das circunstâncias dadas. Inteligência e solidariedade não se casam, portanto. Inteligência e sacanagem se confundem. Por decorrência, o gesto de se rebelar não foi, naqueles anos 60, um gesto "inteligente". Teria sido "inteligente" apenas se tivesse se sagrado vencedor. Muitos personagens, ao longo da série, argumentavam que "há outras formas de luta", mas quais? A única "forma de luta" que Anos Rebeldes deixou de alternativa à guerrilha foi a simples espera. "Inteligente", no campo da esquerda, seria a moita.

Não obstante, a série alcançou grande repercussão na esquerda atual (e aqui ficará mais claro o desdobramento do melodrama no campo da política real, do qual falei lá atrás). Penso que o motivo principal da ruidosa repercussão foi o inusitado dessa temática na Globo. A surpresa e a contundência dramática de algumas denúncias arrebataram muitos dos nossos corações o meu inclusive, em certas passagens. A trama amorosa por si mesma não era interessante. Se João, em vez de dar tiros, gostasse de viver entre os índios e por isso se separasse de Maria Lúcia, dificilmente sua história alcançaria a mesma repercussão. A guerrilha na tela da Globo é que foi o grande acontecimento. Que essa guerrilha fosse burra virou uma mera questão adjetiva.

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A quase euforia que contagiou a nossa esquerda me incomodou. É como se todos se sentissem "anistiados" uma segunda vez. É como se estivessem finalmente “reabilitados" e tivessem adquirido o supremo privilégio de se tornar personagens da dramaturgia global. Tudo bem, é claro que Anos Rebeldes mostrou muita coisa importante, denunciou, tudo bem. Mas é de estarrecer que tenha entorpecido o senso crítico da esquerda diante da TV.

Principalmente quando se detectam alguns sutis movimentos da Globo nos últimos tempos, essa postura crítica é ainda mais necessária. Na minha opinião, o conteúdo de Anos Rebeldes não desafina desses novos movimentos da Globo e de tudo aquilo que ela representa. Não desafina mesmo se admitirmos a censura interna que, comenta-se, ocorreu numa ou noutra parte do roteiro. É bom lembrar que o Roberto Marinho está patrocinando o projeto de memória do PCB, e isso não é um golpe de cinismo. É bom lembrar que no prefácio do livro Roberto Marinho, uma Trajetória Liberal, lançado em 1992 pela Topbooks, Franklin de Oliveira afirma que o empresário "é um liberal aberto aos grandes horizontes da civilização contemporânea". E prossegue: "O seu liberalismo não ostenta o friso conservador típico do nosso liberalismo tradicional. É um liberalismo que não renega a vertente do socialismo democrático (sic). Roberto Marinho sabe que as novas auroras são inevitáveis."

Desnecessário, nesta revista, polemizar com tais considerações, absurdas em si mesmas. Mas é necessário que se tenha em mente o que acontece neste deslocamento da Globo, de seu proprietário e seus interesses. Não há um cérebro maquiavélico controlando cada respiração de cada galã de novela, é evidente, mas existe uma inflexão geral, pós-ditadura, pós-fracasso de Collor na Rede Globo, cujo sentido é acomodar a Globo e preservar seu poder dentro de uma nova correlação de forças na sociedade. Anos Rebeldes é uma passagem lógica, mesmo que não premeditada, desta nova inflexão, que pode incluir a presença mais freqüente da oposição no noticiário, ou até mesmo o "Lula falando no Fantástico" (como reclamou Leonel Brizola, no Roda Viva de 17 de agosto, maliciosamente, pois Lula ali estivera por direito de resposta a uma acusação de "ganhar sem trabalhar", feita pelo humorista casado com Zélia). Essa nova inflexão passa por assimilar boa parte das demandas da esquerda, sem contudo permitir que elas sejam atendidas ou que permaneçam atuantes. Será que a Globo responderá, agora, quem matou Herzog, Fiel Filho? Será que ela dirá onde estão os desaparecidos? Será que ela apontará, de fato ou de ficção, quem foram os torturadores? Por isso, as demandas da esquerda, que de fato são as demandas da Justiça e da Democracia, vêem-se transformadas em antiguidades. Antes que as forças de esquerda disciplinem o regime da Globo e o regime de exploração dos canais de radiodifusão, antes que as forças de esquerda limitem o monopólio e o truste nesta área, a Globo como que se antecipa em cooptar essas mesmas forças.

Isso não me impede de aplaudir, de vibrar e de me emocionar com muitos dos espetáculos da tela da Globo, o que já fiz muitas vezes e por escrito, mas me ajuda com freqüência a desconfiar de alguns movimentos. É o que ocorre agora, quando muitos estão aí, atribuindo a Anos Rebeldes o fato de a juventude ter ido às ruas pedir o impeachment de Collor (vejam, por exemplo, o artigo "O presidente Collor `recriou' a UNE", de Arnaldo Jabor, na Folha de S. Paulo de 26/08/92. pág. 111, onde o articulista afirma: "os moços saíram da inércia triste muito pela interpretação de Cláudia Abreu na minissérie de Gilberto Braga. Não é loucura."). Outros, meio que na contramão, ponderam que a série teria "fugido ao controle" da emissora. De minha parte, eu não diria nem uma coisa nem outra. No que dependesse do noticiário da Globo, a CPI sequer seria de conhecimento do grande público - embora o jornal O Globo tenha se mantido alerta, noticiando tudo. Foi O Globo, como se sabe, o primeiro a denunciar os telefonemas de PC ao gabinete do presidente da República (aliás, a agressividade do jornal impresso deve ser creditada à nova inflexão empreendida por Marinho). Na televisão, contudo, a CPI avançou muito até que o Jornal Nacional e o Jornal da Globo acordassem para o assunto. Um caso análogo ao que se deu por ocasião da campanha das diretas, que obtinha apenas o silêncio da emissora. Eu não diria, neste contexto, que Anos Rebeldes "fugiu ao controle" de ninguém. Não diria também que levou a juventude às ruas.

A série talvez tenha contribuído para algumas frases de efeito, para uma formatação de um protesto palatável e mesmo para um marketing das manifestações estudantis (a expressão Anos Rebeldes foi até o mote de um panfleto da UNE), mas a substância dessas já estava dada. É verdade que, com a reabilitação do esquerdista dentro do repertório global, que detém, de alguma forma, o imaginário nacional, e com a sua promoção à condição de protagonista da ficção global, há um estímulo importante para que a juventude de consumidores/telespectadores sinta-se convidada ao heroísmo.

É verdade também que a série influiu bastante na maneira como a imprensa cobriu as manifestações estudantis pelo impeachment. O jornalismo ligou televisão e fato, a tentação era irrecusável. Mas eu não iria além disso. As manifestações da juventude aconteceriam com ou sem Anos Rebeldes, com variações em seu marketing e nos emblemas. Estamos vivendo num tempo e num país em que os aposentados fazem passeatas e não há nenhuma minissérie sobre eles na televisão. As pessoas saem espontaneamente de suas casas com faixas e bandeiras pretas nas mãos e a cor preta não é o fundo cromático da nova novela das oito. Ademais, as manifestações estudantis resultam também de uma mobilização específica, as secundaristas de modo mais destacado, que estão aí há anos lutando contra o aumento de anuidades e mensalidades. Embora enfraquecidos, a UNE, o XI de Agosto e outras entidades estudantis estavam enraizados na rotina das escolas, mesmo que precariamente. Não é que estivessem mortos e ressuscitaram da tela da TV para o mundo real, algo mais ou menos parecido com o que se dá com Jeff Daniels e A rosa púrpura do Cairo, de Woody Allen.

Quando este artigo for publicado, o impacto sensacional de Anos Rebeldes, (e compartilho desse impacto, repito, eu não consegui perder um capítulo da série), já se terá dissipado e espero que pensemos no assunto com mais serenidade. Digo mesmo que o assunto merece outros artigos, artigos que tratem, por exemplo, da reconstituição de época, que não discuti aqui - embora sempre me aborrecessem as fraldas descartáveis da filhinha de Heloísa e as camisas da Ducal, camisas sempre iguais de João Alfredo -, artigos que passem a limpo que personagem da ficção se referia a que personagem da realidade, onde há verdade onde há falsificação etc. Mas por enquanto é só o que tenho a dizer. E é muito.

A luta da esquerda brasileira ainda é muito jovem para comparecer ao museu de nostalgia da Rede Globo, e já está bastante madura para enternecer as consciências pesadas que até anteontem bajulavam os resmungos dos torturadores. Como melodrama, Anos Rebeldes não figura entre os melhores trabalhos de Gilberto Braga. Como denúncia, foi melhor do que nada, mas ainda falta muito. De minha parte, seja como for, não espero da Globo que ela conte a nossa história. Eu quero o contrário. Quero que os meus semelhantes, meus companheiros, um dia, contem para o país inteiro a história da Rede Globo. Que contem a história deste nosso período, quando alguma coisa ainda parece estar de cabeça para baixo na televisão brasileira.

Eugênio Bucci é membro do Conselho de Redação de T&D.

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