A experiência de ser governo municipal é, hoje, a principal credencial do PT para disputar a sucessão em 92 e se qualificar de forma definitiva para as disputas de 94.
Mas, que credencial é essa? Provando que somos mais honestos e mais competentes do que outros governos?
Honestidade e competência não são suficientes para nos diferenciar de governos burgueses honestos e competentes. É preciso ter compromissos e propostas que busquem estabelecer novas relações entre trabalhadores e poder, entre prestadores de serviços e usuários, onde a transparência e a democracia sejam levadas às últimas consequências.
A gestão da coisa pública, em especial das áreas prestadoras de serviços essenciais, possibilita a construção dessas novas formas de relação - especialmente entre usuários, trabalhadores dessas áreas e seus órgãos de representação de classe e o governo - fundamentais para qualquer projeto socialista. A honestidade e a competência não se esgotarão mais em si mesmas porque, mesmo continuando como condições necessárias para se administrar qualquer órgão público, não são necessariamente suficientes.
O Partido dos Trabalhadores e a Central única dos Trabalhadores não tinham, até 88, propostas e projetos de como seria o relacionamento dos movimentos sociais e dos trabalhadores municipais com os governos petistas. As propostas pré-eleitorais revelavam um distanciamento cósmico da realidade do cotidiano. Não bastava só propor. O que estava escrito tinha que se materializar, ser feito, construído, executado. As propostas, portanto, sofreram profundas reformulações. A política praticada, salvo raras exceções, acabou sendo definida pelos companheiros que assumiram a tarefa de implementar um programa partidário insuficiente. As definições e propostas passaram a ser elaboradas independentemente das instâncias partidárias, que não tinham condições de contribuir nem de acompanhar o ritmo do dia-a-dia, que exige decisões rápidas, sem muita discussão.
É possível imaginar o que significa assumir uma prefeitura como a de São Paulo - com mais de 100 mil funcionários na administração direta, e com uma empresa como a CMTC, com mais de 25 mil empregados - sem propostas consistentes para conviver com os conflitos inevitáveis entre o governo e essa massa de trabalhadores que toca a máquina administrativa. Essa máquina é a cara visível do governo. São os funcionários que executam as decisões de governo, que se relacionam com a população no dia-a-dia. As propostas, em geral, não conseguiram transcender os limites sindicais e trabalhistas dessa relação, enquanto nosso discurso apontava e aponta para a ruptura dos limites da ordem vigente.
O projeto socialista do PT teria que privilegiar as experiências concretas, como governo, construindo um alicerce formado pelas relações entre o governo e o corpo de funcionários e destes com a população. Uma das primeiras tarefas dos nossos administradores municipais, logo no início do mandato, deveria ser o convencimento de pelo menos parte significativa do corpo de funcionários sobre os objetivos das propostas partidárias para os respectivos setores. Teríamos que ganhar parcelas cada vez maiores de servidores para as nossas propostas. Esta prática só ocorreu em setores onde nossa militância tinha trabalho concreto, alguma experiência administrativa e propostas exeqüíveis.
Todo esse processo, rico em experiências bem ou mal-sucedidas, não foi acompanhado nem pelo PT nem pela CUT, solicitados a intervir apenas nos momentos mais críticos dos conflitos de natureza sindical-trabalhista.
O projeto do PT tem que contemplar a realidade concreta para que nossas propostas estejam adequadas à realidade.
Estados e serviços essenciais
Se a administração direta abre infinitas oportunidades para a elaboração de propostas que contribuam para a formulação de um projeto socialista, a empresa pública também tem muito para dar.
Antes, porém, é importante esclarecer que não se trata de qualquer empresa pública, mas daquelas voltadas para a prestação de serviços essenciais. Excluo, portanto, aquelas dedicadas à produção de simples mercadorias cujo final deve ser regulado pelas leis de mercado. O serviço essencial, como o próprio nome diz, é aquele indispensável para a vida de um cidadão ou que tem finalidades estratégicas para o Estado. Sem entrar no mérito de outros, o transporte público é um serviço essencial porque garante um dos princípios básicos da cidadania que é o direito de ir e vir da população, independente da situação econômica ou social do usuário. Esse direito, portanto, deve ser assegurado pelo Estado que, por sua vez, deve garantir o serviço por um preço compatível com a realidade econômica da população. O Estado, que no caso dos transportes públicos urbanos é a prefeitura, deve ter o controle político do sistema e não necessariamente o seu monopólio. Porém, é fundamental que a municipalidade disponha de uma empresa de transporte porque só assim o poder terá pleno conhecimento das dificuldades enfrentadas pelo setor. Esse conhecimento permite, ao mesmo tempo, um maior controle sobre o setor privado que trabalha nesse campo.
Eu defendo a existência de uma empresa municipal de transporte público. Aliás, no caso da coleta de lixo, que também é um serviço essencial, não dá para entender por que a Prefeitura de São Paulo não criou, até hoje, uma empresa pública, para conhecer em detalhe a planilha de custo e a operação do serviço.
O transporte público urbano tem outra característica. O público alvo desse serviço é o trabalhador assalariado nos seus deslocamentos diários para o trabalho, escola, compras ou lazer. Em São Paulo, quase 7 milhões de pessoas são transportadas diariamente por ônibus, das quais cerca de 1,5 milhões pela CMTC.
Não há outro tipo de serviço municipal tão exposto quanto o transporte, que opera 24 horas por dia. O abastecimento de água e o fornecimento de energia elétrica, os mais vitais e mais expostos, estão sob controle do governo estadual. O fornecimento, a qualidade e a eficiência desses serviços interessam muito mais aos trabalhadores do que às classes dominantes, que têm meios e recursos para substituí-los. A gestão democrática e participativa dessas empresas deveria ser tratada, portanto, como um objetivo estratégico a ser alcançado pelo PT e pela CUT. Curiosamente, nenhum dos dois tinha propostas para esses setores em 88. As mudanças ocorridas, tanto no que se refere às propostas políticas quanto as que dizem respeito às relações entre governo, funcionários e usuários, embora ainda insuficientes, continuam desconhecidas pela nossa militância porque estão colocadas num plano secundário.
O caso da CMTC
A CMTC é a maior empresa pública dirigida por petistas. Sua folha de pagamento é quase o dobro do orçamento de Campinas, que é a maior cidade do estado de São Paulo, excluída a capital.
Dois sindicatos atuam na sua base. Um que é filiado à CUT e que engloba todos os operadores - motoristas e cobradores - e o pessoal da manutenção e outro que atende os empregados em escritório, sem qualquer expressão, dirigido por um velho pelego.
No início do governo petista, buscava-se, simplesmente, dentro dos estreitos limites reivindicativos, recuperar as perdas salariais e/ou avançar em conquistas sociais de natureza trabalhista. O governo petista teria cumprido bem essa meta não fosse o caráter paternalista que marcou essas "conquistas".
Na CMTC, "conquistou-se" em pouco mais de um ano e meio direitos sem paralelo na vida dos trabalhadores de transporte. Recuperação de perdas salariais, redução da jornada de trabalho para 40 horas semanais, plano de saúde, vale refeição, reconhecimento das comissões de garagem, eleição da Cipa só com representantes dos trabalhadores, liberação de pessoal junto aos órgãos de representação são alguns exemplos.
O Sindicato dos Condutores, apesar de todas essas "conquistas", assumiu aberta e declaradamente uma postura oposicionista em relação ao governo municipal. A relação entre o sindicato e o governo, via empresa, assumiu contornos de um verdadeiro campo de batalha. A prefeita foi comparada ao presidente Collor e acusada, através de cartazes espalhados pela cidade, de ter sucateado e destruído a CMTC.
A diretoria da CMTC demitiu, muitas vezes arbitrariamente, dirigentes sindicais, representantes de organismos de base com estabilidade, em represália a greves que ocorreram ao longo desses três anos e meio. Mesmo que a empresa - leia-se governo municipal petista - tenha revisto as demissões, houve um grande desgaste político.
Diante dos conflitos, e não foram poucos, sempre havia uma boa desculpa para a radicalização das posições. Do ponto de vista sindical, é bom esclarecer, as razões variavam desde as disputas internas da CUT até a defesa da posição de princípios de que o sindicato é autônomo e independente do governo e, por causa disso, não havia motivo para abrir mão da defesa das reivindicações sindicais, mesmo tendo que recorrer a greve ou atacar violentamente o governo petista.
A luta interna entre a corrente sindical CUT pela Base, que controla o Sindicato dos Condutores, e a corrente Articulação justificou, também, inúmeras vezes, a radicalização da diretoria do sindicato, que via na direção da CMTC uma extensão da Articulação.
As demissões eram justificadas pela necessidade de se provar que o governo municipal tinha autoridade suficiente para controlar os conflitos. No caso da greve de nove dias em maio deste ano, por exemplo, alegou-se que se a greve não terminasse - e para tanto era preciso demitirem massa -, o governo do estado interviria com violência, o que desmoralizaria o governo municipal.
A discussão sobre as causas e as conseqüências dessa greve deverá perdurar por longo tempo. Uma conclusão, pelo menos, é consensual: todos - governo municipal, partido, sindicato, CUT e diretoria da CMTC - saíram perdendo. Porém, outro perdedor anônimo, não tem tempo nem espaço para enfrentar essa discussão. Trata-se do trabalhador usuário do sistema de transporte, que sofreu descontos salariais ou que pode ter sido demitido por causa da greve.
A dimensão desse problema exige mais reflexão do que a simples busca de algum bode expiatório. E a reflexão leva, necessariamente, à forma como estão sendo geridas as empresas públicas responsáveis pela execução do programa e da política do PT.
No caso dos transportes, a simples constatação de que nos primeiros vinte meses de governo houve três secretários municipais e quatro presidentes na CMTC mostra bem a amplitude do problema.
Se tivesse havido uma proposta política e o seu devido acompanhamento pelas instâncias partidárias responsáveis pelo setor de transporte, considerado prioritário antes, durante e depois das eleições de 88, provavelmente não teriam ocorrido os conflitos que marcaram profundamente e chegaram a abalar a relação do governo com o partido.
A gestão democrática e participativa, ou a co-gestão como preferem alguns, envolvendo governo, empresa, trabalhadores e usuários é um desafio que ainda não foi enfrentado pelas partes envolvidas. Nem o PT, nem a CUT, opinaram ou produziram alguma proposta sobre o assunto. Limitaram-se a agir como bombeiros em todos os momentos de conflito e foram igualmente incapazes de formular saídas, que propiciassem o entendimento permanente, ou de buscar propostas que apontassem para as novas relações que queremos construir.
Após três anos e meio de governo pouco se conseguiu avançar em termos teóricos e práticos. No entanto, houve tentativas que não podem ser menosprezadas.