Nacional

A melhor coisa para o país teria sido adiar o plebiscito sobre a forma e sistema de governo, para dar ao povo a oportunidade de se informar

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Por que motivo está sendo proposta a mudança do sistema de governo do Brasil, substituindo o presidencialismo pelo parlamentarismo? Os que defendem essa mudança estão mesmo convencidos de que ela é fundamental para a solução dos grandes problemas brasileiros ou haverá outros motivos inspirando a proposta parlamentarista? Com o rótulo de parlamentarismo existem hoje no mundo sistemas que apresentam muitas diferenças entre si, em pontos de grande importância. Com base nessa diversidade é absolutamente necessário fazer duas perguntas prévias, antes de qualquer decisão: para melhorar um sistema de governo é uma fatalidade escolher entre presidencialismo ou parlamentarismo ou haverá outra saída? Afinal, que parlamentarismo está sendo proposto para o Brasil?

Entre os defensores do parlamentarismo existem, sem dúvida, alguns que há muito tempo estão convencidos de que esse é o melhor sistema de governo para qualquer país do mundo. Outros talvez não cheguem a tanto, mas acreditam que, para o Brasil, seria preferível o sistema parlamentar de governo, mesmo reconhecendo que a experiência parlamentarista de 1961 a 1963 foi malsucedida, o que facilitou a volta ao presidencialismo. Existem, também, os que só aderiram à proposta parlamentarista por causa da roubalheira do governo presidencial de Fernando Collor. Muitos ficaram convencidos de que a gigantesca máquina de corrupção, revelada pela Comissão Parlamentar de Inquérito que investigou a quadrilha Collor, só foi possível graças ao presidencialismo, acreditando que os governantes e empresários corruptos não terão espaço no parlamentarismo.

Mas há muitos que pregam a adoção do sistema parlamentar de governo por simples oportunismo. Evidentemente eles não admitem isso, mas a observação atenta de seus antecedentes e de sua atual posição política, bem como o conhecimento de seus argumentos revelam que é preciso analisar atentamente a proposta e não se deixar envolver ingenuamente, como se a recusa do parlamentarismo, agora, fosse característica de pessoas atrasadas ou amigas da corrupção. Entre os mais exaltados defensores do "parlamentarismo salvação do Brasil" não é difícil identificar alguns que na Constituinte, há menos de cinco anos, puseram de lado a discussão do sistema de governo para não atrapalhar a garantia de cinco anos de mandato presidencial-presidencialista a José Sarney. É pelo menos muito estranha sua rápida e apaixonada conversão.

Uma espécie, facilmente identificável, dos defensores do parlamentarismo é a daqueles que sonham com o governo federal e sabem que provavelmente nunca chegarão a ele através do voto popular. São as tribos com muitos caciques e poucos índios. Para ser primeiro-ministro não é preciso ter o apoio do povo, sendo suficiente um acordo parlamentar, e eles acreditam, com boa dose de ingenuidade, que com relativa facilidade serão reconhecidos pela maioria dos parlamentares como os mais preparados para a missão de governar o Brasil. Tudo se passaria como se os interesses pessoais, regionais, empresariais e corporativos, que até agora falaram bem mais alto do que as próprias vinculações partidárias, caíssem para segundo plano com a simples mudança do sistema de governo.

Pondo de lado a falta de autenticidade de muitos dos atuais apóstolos do parlamentarismo, é importante conhecer melhor esse sistema, saber como e por que ele foi criado e quais as suas principais características, verificando também como ele tem funcionado nos países que o adotaram. Depois, é absolutamente necessário perguntar se ainda hoje o mundo está preso à opção entre parlamentarismo e presidencialismo.

Berços históricos

Os teóricos da política podem dar alguma contribuição para que a história defina os seus caminhos mas são os fatos que determinam os rumos fundamentais. Foi assim com o presidencialismo e o parlamentarismo, que não nasceram da cabeça de qualquer teórico e só foram batizados com esses nomes quando suas características já estavam claramente estabelecidas pela prática.

O presidencialismo nasceu em 1787, quando as colônias inglesas da América, que haviam conquistado a independência e responsabilizavam a monarquia por todos os seus males, precisaram inventar um sistema de governo. Adaptando à realidade norte-americana da época a teoria da separação de poderes e tendo claro que necessitavam de um governo que fosse, ao mesmo tempo, enérgico e democrático, inventaram o presidente de República. Este seria chefe do Estado e do governo, mas com poderes limitados pela Constituição e sujeito ao controle do Legislativo: assim nasceu o presidencialismo.

A história do parlamentarismo também revela que o sistema não tinha sido imaginado por qualquer teórico antes de existir na prática. Sua criação foi produto de fatos e situações que se tinham acumulado durante alguns séculos. Num brevíssimo resumo pode-se dizer que o parlamentarismo começou a nascer em 1215, quando os nobres e bispos católicos ingleses obrigaram o rei, João Sem Terra (que era um sem terra bem diferente dos atuais), a jurar obediência à Magna Carta, documento que impunha graves limitações ao poder real. Depois disso ficou estabelecido o costume de reuniões do rei com os nobres, que compunham o que mais tarde ficou sendo o Parlamento, para definição dos rumos políticos do Estado e para que o monarca prestasse contas de seus atos.

No século seguinte os burgueses, que já tinham poder econômico mas estavam à margem do poder político, obtiveram a criação de uma segunda Casa no Parlamento, que foi chamada de Câmara dos Comuns porque seus membros não eram nobres. Desse modo o Parlamento britânico passou a ser bicameral, como é ainda hoje, tendo uma Câmara dos Lordes e outra dos Comuns, cujos membros são eleitos pelo povo. No final do século XVII, a Inglaterra foi sacudida por movimentos revolucionários, que produziram mudanças fundamentais. O rei, que era católico e muito influenciado pelo Papa, foi deposto e desde 1689 ficou em seu lugar seu genro protestante, alterando-se a linha de sucessão para escolha dos futuros reis. A par disso, a burguesia conquistou o poder e, em consequência, a Câmara dos Comuns suplantou definitivamente a Câmara dos Lordes como centro do poder político, a quem o rei deveria prestar contas.

Para que o Parlamento exercesse efetivo controle o rei comparecia às sessões da Câmara dos Comuns juntamente com seus ministros e dava as explicações que fossem requeridas, acompanhando os debates entre os parlamentares favoráveis ao governo e os da oposição. Foi assim até 1714, quando morreu a rainha Ana, que não deixou descendentes. Para suceder a rainha e receber a coroa da Inglaterra foi reconhecido como herdeiro mais próximo o príncipe Jorge, chefe do principado de Hanover, que mais tarde foi incorporado à Alemanha. Informam os historiadores que Jorge de Hanover, que passou para a história como rei Jorge I da Inglaterra, só falava latim e alemão.

O rei da Inglaterra não falava inglês. Mas o costume determinava que ele participasse das sessões do Parlamento e o rei, nos primeiros tempos de seu reinado, teve que obedecer à tradição. Como não entendia o que estava sendo discutido e não podia responder diretamente às indagações dos parlamentares o rei deixava que seus ministros falassem por ele. Para não ter que suportar o tédio das longas sessões de que participava sem nada entender e sem falar, o rei deixou de ir ao Parlamento, mandando em seu lugar os ministros, que participavam das discussões políticas e davam explicações. Um desses ministros ganhou maior destaque e passou a liderar de fato o Ministério. Por esse motivo passou a ser mencionado, por ironia, como primeiro-ministro.

Logo o Parlamento percebeu que o verdadeiro chefe do governo era o primeiro-ministro e não mais o rei. Por isso estabeleceu que só poderia ocupar aquele cargo quem tivesse o apoio da maioria dos parlamentares. Dois pontos muito importantes foram então definidos: em primeiro lugar, o rei continuava sendo o chefe do Estado, mas deixava de ser chefe do governo; em segundo lugar, só poderia assumir o cargo de primeiro-ministro e nele permanecer quem tivesse maioria no Parlamento. Como fica evidente, o chefe do governo atua como uma espécie de delegado do Parlamento e só é responsável perante este. Enquanto desenvolver uma política do agrado da maioria do Parlamento o primeiro-ministro permanece no cargo, mesmo que contrarie a vontade do povo e do chefe do Estado.

Disciplina partidária

Um dado importante que deve ser ressaltado é que na Inglaterra, tradicionalmente, há dois partidos que predominam amplamente sobre os demais. Além disso, os parlamentares obedecem rigorosamente à disciplina partidária, não havendo a mínima hipótese de um parlamentar eleger-se por um partido e passar para outro. Desse modo, quando são realizadas eleições para o Parlamento, o que ocorre num sistema distrital, já se sabe que o partido que conquistar maior número de cadeiras indicará o primeiro-ministro. Assim, por exemplo, Margareth Thatcher ficou primeira-ministra porque o Partido Conservador conseguiu mais cadeiras na Câmara dos Comuns do que o Trabalhista. Mais tarde os conservadores mantiveram essa maioria, mas nas disputas internas do partido a corrente liderada por Thatcher foi derrotada por outra, cujo líder era John Major. Em consequência, este se tornou o novo primeiro-ministro da Inglaterra.

Desse modo foi criado o parlamentarismo, que passou a ser imitado por outros países, desejosos de evitar o excesso de poder pessoal. Existem alguns pontos básicos, que podem ser considerados os mais característicos, e quase sempre também os pontos mais críticos, no sistema parlamentar de governo. Por exigências decorrentes de particularidades políticas, sociais e culturais os transplantes do parlamentarismo foram sempre exigindo adaptações e sugerindo variantes, afetando esse núcleo básico. Em razão disso, quando se pretende propor a adoção do parlamentarismo é indispensável conhecer esses pontos e as variações já experimentadas, tendo-se também consciência de que em muitos casos foram tantas e tão importantes as variações introduzidas que o sistema criado já não comporta o rótulo de parlamentarismo.

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Pontos críticos do parlamentarismo

Na definição de um sistema parlamentar de governo é preciso ter em conta não apenas a configuração do próprio sistema, mas também as condições essenciais para que ele possa ser implantado e funcione com eficiência. Entre outras coisas, é indispensável assegurar o caráter democrático do governo e garantir sua estabilidade. A própria denominação "parlamentarismo" indica tratar-se de um sistema de governo centrado no Parlamento, não no Executivo. Assim sendo, deve-se tomar como ponto de partida as dificuldades relacionadas com o Legislativo, para em seguida considerar os pontos diretamente relacionados com as características do sistema.

Considerando que no parlamentarismo o chefe do governo é escolhido pelo Legislativo, mais propriamente pela Câmara de Deputados, perante a qual ele é responsável, é ainda mais importante garantir que o povo esteja realmente representado naquela Câmara. Não basta a representação formal, é preciso que ela seja autêntica e adequada, de tal modo que o povo reconheça os parlamentares como seus representantes e que nenhum segmento da população deixe de ser levado em conta nas decisões políticas.

O sistema eleitoral brasileiro permite e favorece um distanciamento enorme entre o povo e os parlamentares, a tal ponto que poucos meses depois das eleições poucos eleitores se lembram do nome do candidato que recebeu seu voto. Em grande parte, isso é devido ao fato de que os candidatos podem receber votos num espaço muito amplo, o que faz com que os eleitores raramente conheçam pessoalmente os candidatos, sua vida pregressa e até mesmo suas convicções. Isto ainda é agravado pelo fato de que o sistema eleitoral permite um número absurdamente elevado de candidatos. Desse modo ficam facilitadas as aventuras eleitorais dos demagogos e dos que se valem do poder econômico para angariar votos.

A par disso, o estabelecimento constitucional de número mínimo e máximo de deputados por Estado introduz uma distorção violenta, que compromete o caráter democrático do sistema. O número de eleitores representados por deputado é muito diferente de uma região para outra do país, com grande prejuízo para os eleitores das regiões mais populosas. Isso ficará ainda mais grave no parlamentarismo, pois o deputado que representa um número quinze vezes superior de eleitores terá o mesmo peso que aquele que representa o número menor nas votações para escolha ou derrubada do chefe do governo.

Assim como o sistema eleitoral, também o de partidos políticos precisa ser profundamente modificado. Na prática, não existe compromisso dos parlamentares com os programas de seus respectivos partidos, o que prejudica a representatividade e também a estabilidade do governo. Com efeito, a experiência eleitoral brasileira mostra que será indispensável a realização de alianças parlamentares para que se consiga a maioria necessária para formar e sustentar o governo. Como tem acontecido muitas vezes, há parlamentares ou grupos de parlamentares que celebram seus próprios acordos, ignorando os partidos. Além disso, a mesma legislação que obriga o eleitor a votar num candidato previamente selecionado por um partido permite que o candidato eleito mude de partido e conserve o mandato, como se a sigla partidária não tivesse qualquer importância.

Por todos esses motivos, é bem fundado o temor de que o parlamentarismo, em tais circunstâncias, acarrete a existência de governos pouco representativos e sem estabilidade. As maiorias serão sempre muito frágeis, podendo ser desfeitas pelo fato de algum grupo não ter uma reivindicação atendida ou discordar de alguma decisão do governo. Para exemplificar, se o governo decidir que só concederá financiamentos privilegiados aos proprietários nordestinos que se comprometerem a substituir a cana pela produção de alimentos é bem provável que a maioria da bancada do Nordeste retire seu apoio e com isso derrube o governo.

O chefe do governo

No parlamentarismo, o chefe do Estado e o chefe do governo são pessoas diferentes e, geralmente, a chefia do governo é entregue a um primeiro-ministro, que será permanentemente responsável perante o Parlamento.

A escolha do primeiro-ministro é problema dos mais importantes, pois ele deverá manter o caráter democrático do governo e, no entanto, não será escolhido pelo povo. Paralelamente, o chefe do governo deverá ter força suficiente para implantar sua política, mesmo quando isso contrariar interesses poderosos, mas para tanto precisará manter o apoio da maioria dos parlamentares.

De acordo com o mecanismo clássico do parlamentarismo, o chefe de Estado indica ao Parlamento o nome de sua escolha para a chefia do governo. Aqui surge um primeiro problema grave: o indicado para primeiro-ministro deverá ser parlamentar ou poderá ser alguém de fora do Parlamento? Ambas as hipóteses são encontradas na prática e para as duas existem argumentos favoráveis e contrários. Um membro do Parlamento poderá ter maior facilidade para articulação do apoio da maioria, mas ficará mais exposto quando surgirem divergências de pontos de vista ou conflitos de interesses entre os partidos.

Outro ponto fundamental, também sujeito a variações, é a exigência de aprovação prévia só do nome proposto ou também de um programa de governo e de todos os nomes que irão compor o Ministério. Normalmente, o chefe de Estado propõe o nome do primeiro-ministro e este deve receber aprovação da maioria do Parlamento. Os outros pontos é que variam, havendo sistemas que exigem também a prévia aprovação do programa governamental, enquanto outros concedem prazo para que o primeiro-ministro submeta o programa à aprovação parlamentar. Quanto aos demais ministros não há uniformidade de tratamento, podendo-se exigir aprovação prévia ou posterior do Ministério ou então dispensar essa aprovação, entendendo-se que a responsabilidade por todos os atos do governo é sempre do primeiro-ministro. Não há, também, uniformidade quanto à possibilidade de derrubada de um ministro isoladamente, por decisão do Parlamento, podendo ser prevista ou não essa hipótese.

De modo geral pode-se dizer que no parlamentarismo o governo se mantém enquanto for apoiado pela maioria do Parlamento. Até aí tudo parece muito simples. Mas as coisas ficam terrivelmente complicadas quando se pergunta se a perda da maioria acarreta automaticamente a queda do governo. A única certeza é que o primeiro-ministro não tem mandato por prazo determinado, podendo permanecer no cargo por um dia ou por muitos anos. É preciso prever, então, em que hipótese ocorrerá a queda do governo, ou, em outras palavras, quando é que o primeiro-ministro será obrigado a deixar o cargo.

Moção de desconfiança

Existem sistemas parlamentares estabelecendo que a perda da maioria obriga o chefe do governo a deixar o cargo, abrindo a possibilidade para que o chefe do Estado proponha outro nome ao Parlamento. Mas, considerando que a queda do governo sempre pode acarretar problemas graves, alguns sistemas dispõem que a simples derrota do governo em qualquer votação não obriga o primeiro-ministro a demitir-se. Nesses casos a demissão só é obrigatória se a oposição propuser "moção de desconfiança" e esta for aprovada pela maioria. Outro ponto delicado, muito importante no caso do Brasil, é saber se apenas uma das Casas do Parlamento pode derrubar o governo mediante moção de desconfiança ou se isso pode ocorrer, indiferentemente. em qualquer das Casas. Pode acontecer de o primeiro-ministro ter ampla maioria na Câmara de Deputados e minoria no Senado, ou vice-versa. Qual a melhor solução para o Brasil? Na Alemanha foi introduzida uma inovação importante. para garantir a estabilidade do governo: a Câmara de Deputados é a que tem competência para derrubar o governo, mas só pode fazer isso se na mesma sessão em que aprovar a moção de desconfiança for também aprovado outro nome para chanceler, que é o equivalente a primeiro-ministro.

Um ponto muito delicado é a possibilidade de deixar o país sem chefe de governo por alguns ou por muitos dias, quando ocorrer a queda do governo. É preciso estabelecer com muita clareza o mecanismo de substituição do primeiro-ministro e, especialmente, quem será responsável pelo governo durante o período de vacância. É absolutamente necessário que tal situação não seja confundida com golpe de Estado e que não se produza a sensação de "vácuo de poder", para que não surja a tentação de aventuras militares e para que o povo continue vivendo e trabalhando normalmente.

Dissolução do parlamento

Na linguagem técnica, "dissolver o Parlamento" significa interromper o seu funcionamento, antecipando o término do mandato dos parlamentares. Isso faz parte da mecânica tradicional do parlamentarismo e nada tem a ver com o fechamento do Congresso por ato de força, como aconteceu tantas vezes na América Latina, inclusive no Brasil. Mas ainda que seja medida prevista na Constituição e que ocorra pelas vias normais, a dissolução do Parlamento é sempre uma decisão grave, que deve ser considerada com extremo cuidado ao ser elaborada uma proposta de parlamentarismo.

Numa colocação mais simples pode-se dizer que ao ser aprovada a moção de desconfiança o primeiro-ministro tem duas opções: ou aceita que a decisão do Parlamento corresponde à vontade do povo e se demite para permitir a formação de novo governo, ou, ao contrário, entende que o povo está a seu favor e que a maioria que votou a desconfiança não representa a vontade popular. Neste caso, em lugar de se demitir, o primeiro-ministro pede ao chefe de Estado que dissolva o Parlamento e convoque novas eleições, dentro do prazo previsto na Constituição. Se ocorrer a dissolução fica automaticamente extinto o mandato dos parlamentares, os quais, se quiserem, podem candidatar-se novamente. Realizadas as eleições o primeiro-ministro precisará ser confirmado no cargo pelo novo Parlamento e, se isso não ocorrer, o chefe de Estado convidará outra pessoa para formar o governo.

Existem sistemas parlamentares que não admitem a dissolução do Parlamento. E onde o Legislativo é bicameral, como no Brasil, é necessário prever se a dissolução será de todo o Congresso ou se apenas de uma de suas Casas. Em princípio a dissolução deve ser admitida, mas se for permitido que uma das Casas do Parlamento, isoladamente, vote a desconfiança, nessa hipótese seria lógico que apenas essa Casa fosse dissolvida. De qualquer modo, como são várias as soluções possíveis, todas elas apoiadas em argumentos razoáveis, é indispensável ampla discussão prévia, para que o povo saiba o que e por que está sendo proposto.

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O chefe do Estado

A separação entre a chefia do Estado e a do governo é uma das características fundamentais do parlamentarismo. Para muitos dos defensores do sistema parlamentar esse é um dos pontos mais favoráveis, pois não participando do governo o chefe de Estado fica acima das disputas políticas e não é afetado pelas crises que elas podem provocar. Desse modo, constitui-se em fator de estabilidade institucional, pois mesmo nos momentos de disputa mais acirrada ele fica preservado, não sofrendo qualquer restrição nem sentindo constrangimento algum quando for preciso iniciar a formação de um novo governo.

Mas em relação ao chefe de Estado, que aparentemente é personagem de importância secundária, existem, igualmente, vários pontos muito controvertidos, cuja discussão mostra que ele é mais importante do que pode parecer à primeira vista. A simples idéia de que o chefe de Estado deve ser um fator de equilíbrio no Estado e o garantidor da permanência das instituições dá a ele um significado político de grande relevância. A par disso, nos momentos de crise política ou, simplesmente, em qualquer ocasião em que seja necessário formar um novo governo, o chefe de Estado assume a condição de principal figura política, pois a ele cabe examinar a situação dos partidos no Parlamento e, a partir daí, formalizar o convite para que alguém componha o governo. Além disso, o chefe de Estado representa o povo nas relações internacionais, praticando também outros atos, como designar e receber embaixadores, fazer nomeações e realizar outras tarefas que a Constituição enumerar.

Por sua significação política, o chefe de Estado deve ser escolhido por um processo democrático. Existe séria divergência entre os parlamentaristas, nesse ponto, pois enquanto alguns argumentam com as vantagens de uma escolha indireta, pelo Parlamento, outros sustentam que o povo é quem deve escolhê-lo em eleições diretas. Os que preferem a via indireta entendem que dessa forma os candidatos ficam longe das disputas políticas, geralmente muito agressivas, que caracterizam as eleições populares para cargos no âmbito do Executivo. Esse distanciamento das disputas seria mais conveniente para que o chefe de Estado preserve sua condição de árbitro, indispensável nas situações de crise.

Os que são favoráveis à eleição direta usam como primeiro argumento o caráter mais democrático dessa forma de escolha. Consideram ingênua a afirmação de que não há disputa política na escolha pelo Parlamento. E acrescentam ainda que, neste caso, por haver interferência direta dos parlamentares na eleição, é que se pode estabelecer um distanciamento maior entre o chefe de Estado e os que tiverem votado em outro candidato, dificultando a coordenação das forças parlamentares para a formação de uma sólida maioria, necessária para a obtenção de um governo estável. Como se percebe, também neste ponto existem argumentos ponderáveis em ambos os sentidos, havendo necessidade de uma discussão aprofundada para uma decisão segura.

Não há unanimidade, também, quanto ao tempo de duração do mandato do chefe de Estado. Os que consideram de pouca importância seu papel constitucional no parlamentarismo propõem mandatos longos, achando mesmo que dessa forma fica mais acentuado o papel de símbolo do Estado e garantidor da estabilidade. Há quem fale em mandato de seis a oito anos. Em sentido contrário, os que reconhecem a importância do papel político do chefe de Estado julgam que é uma exigência dos princípios democráticos a outorga de um mandato relativamente curto, que não vá além dos quatro anos. Discute-se, ainda, se nessa eleição deve ser exigida maioria absoluta, com previsão de dois turnos, ou se basta a maioria simples, em turno único. Todos esses pontos merecem análise cuidadosa, pelas consequências que podem decorrer de qualquer opção.

O caso francês

Entre os pouquíssimos brasileiros que, com maior ou menor conhecimento do assunto, estão participando de alguma forma das discussões sobre o parlamentarismo existe a consciência de que este, na prática, apresenta variações importantes. E tem sido mais ou menos frequente a afirmação de que o parlamentarismo francês é o que mais convém ao Brasil. O curioso da história é que muitos teóricos, inclusive franceses, afirmam que, desde 1958, quando foi adotada a atual Constituição, a França não pode ser incluída entre os países que adotam o parlamentarismo. Um dos mais importantes cientistas políticos franceses da atualidade, Maurice Duverger, qualifica o sistema francês de governo como "semipresidencial", observando que, especialmente a partir de 1976, a França tem um regime "com um presidente onipotente e um primeiro-ministro fraco".

Segundo observa Duverger, "sete países do Ocidente têm a experiência de uma Constituição que estabeleceu a existência de um presidente eleito por sufrágio universal e dotado de poderes próprios, como no regime presidencial, e um primeiro-ministro dirigindo um governo que os deputados podem derrubar, como em regime parlamentar". E faz a enumeração desses países, incluindo, além da França, Alemanha, Finlândia, Áustria, Irlanda, Islândia e Portugal.

É interessante lembrar o que se passou na França depois de 1946 para que se perceba que o sistema atual foi uma consequência da realidade política. Esta forçou os franceses a colocarem de lado qualquer preocupação com a pureza teórica, para superar uma situação em que os governos duravam em média oito meses. Criando um sistema que tomou elementos do parlamentarismo e do presidencialismo, fazendo uma série de adaptações e introduzindo algumas inovações, chegou-se ao que talvez seja mais adequado chamar de "sistema francês de governo".

Sistema brasileiro de governo

Se a França e outros países puderam criar seu próprio sistema de governo, que não é presidencialismo nem parlamentarismo, por que não acreditar que o Brasil possa fazer a mesma coisa, a partir de sua experiência histórica e de sua realidade política?

Como foi lembrado anteriormente, foi esse o procedimento dos Estados Unidos e da Inglaterra quando criaram o presidencialismo e o parlamentarismo. Hoje, com toda a evidência, é absolutamente fora da realidade um país dinâmico e criativo como o Brasil, com peculiaridades culturais e políticas muito acentuadas, prender-se a fórmulas do século XVIII, como se a história tivesse parado aí.

A melhor coisa para o Brasil, neste momento, seria adiar o plebiscito sobre a forma e o sistema de governo e desencadear, desde já, uma séria discussão sobre o assunto, dando ao povo a oportunidade de se informar e participar conscientemente. Não sendo possível o adiamento será preferível continuar com o presidencialismo provisoriamente, estimulando o Congresso Nacional a exercer efetivamente todas as suas competências, completando a Constituição de 1988, como já deveria ter feito, e exercendo o controle do Executivo, como é seu dever constitucional. Basta lembrar que, se o Congresso quisesse, poderia ter anulado imediatamente as desastradas e desastrosas medidas provisórias que determinaram o começo do fim do governo Collor. O Congresso foi omisso, nessa e noutras situações. A discussão sobre o governo deverá abranger também o aperfeiçoamento do Legislativo, como do Judiciário. É preciso ir muito além das formalidades, sem cair na tentação da aventura.

Dalmo de Abreu Dallari é professor da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo e membro do Comitê Executivo da Comissão Internacional de Juristas.

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