Nacional

A Caravana da Cidadania surpreendeu a todos. É como se você fosse para uma final de campeonato com estádio lotado, esperando uma guerra, e encontrasse um balé. O resultado foi uma cobertura canhestra

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Era quarta-feira, 26 de maio, quase oito da noite. Ricardo Kotscho estava aflito em sua casa, ao lado da Cidade Universitária, em São Paulo. Ainda assim, separou umas cervejas, salaminhos, queijos: "Olha, sirva-se à vontade". O gravador foi ligado e começou a conversa com o assessor de imprensa de Lula sobre a Caravana da Cidadania. Kotscho, um dos maiores repórteres que o Brasil já conheceu, um jornalista que soube não abdicar de sua própria cidadania no exercício de sua profissão, que soube ser objetivo sem ter que fingir indiferença diante das desigualdades sociais, contou sem restrições o que viu e viveu. Opinou. E apontou os disparates que surgiram na imprensa. Boa cerveja, frios excelentes e um papo delicioso.

A seguir, os principais trechos do depoimento de Ricardo Kotscho, que editamos num texto contínuo. Informação, crítica de imprensa e seriedade. Uma lição de viagem, de jornalismo e de cidadania. Ah, sim, dissemos que Kotscho estava muito ansioso naquela quarta-feira. Faltou dizer o motivo. Não era com jornais, com política, com a campanha de 94. É que, dentro de pouco menos de duas horas, o São Paulo estaria enfrentando o Universidad Católica do Chile, pela televisão. Ele queria estar livre na hora do jogo. São-paulino, talvez mais são-paulino que petisca, o repórter tinha que ver o seu time sagrar-se bicampeão da Libertadores. Naquela noite, o São Paulo perdeu de dois a zero, mas levou o campeonato. Ao menos esse sonho, nosso entrevistado viu realizado. Agora vamos ao que interessa. Com a palavra, Ricardo Kotscho:

A gente vai levar dez anos para entender o que aconteceu nessa caravana e mais dez para contar. Aconteceram mil coisas importantes, é um fato novo na história política brasileira. Ninguém estava preparado para isso, nem nós, nem as pessoas dos lugares que visitamos, e muito menos a imprensa. Com a imprensa, então, é engraçado: parece que a gente fez uma viagem e ela fez outra. A viagem que apareceu na imprensa não foi a mesma que nós fizemos.

Isso me lembrou um anúncio de televisão da Folha de S. Paulo. Era feito em cima de uma foto mostrada num detalhe reticulado e, só depois, com a câmera se afastando, você percebia que ali estava a cara do Hitler. O texto da propaganda dizia que é possível você mentir, dizendo apenas parte da verdade. Pois isso acontece diariamente com o jornalismo. Basicamente, você pinça a frase do contexto e constrói a sua tese. Os jornalistas, hoje, são quase que teleguiados para encontrar elementos que comprovem a tese que já está pronta dentro da redação. Antes você tinha as informações na rua, você ficava sabendo das coisas e levava para a redação. Hoje é o contrário. As pessoas se reúnem na redação, decidem uma coisa, bolam uma tese e o repórter vai para a rua justificar aquilo.

A maioria dos jornalistas foi cobrir uma campanha eleitoral. Chegando lá, foi surpreendida pelo que viu. É como se você fosse para uma final de campeonato com estádio lotado, esperando uma guerra, e encontrasse um balé. Você foi ver uma coisa e encontrou outra e, então, se frustrou. Os jornalistas começaram a ser cobrados pelas chefias, que as matérias eram "pouco críticas", estavam muito "petistas", muito favoráveis ao Lula e não sei o que mais.

Sangue de Cristo

A história de o Lula ter dito que o vermelho da bandeira do PT representava o sangue de Cristo apareceu daquele jeito na imprensa em virtude dessas pressões. Estávamos em Monte Santo, no interior da Bahia, uma cidade muito religiosa, muito mística, cidade de romeiros, onde foi filmado Deus e o diabo na terra do sol, de Glauber Rocha. A influência da Igreja lá, como na maioria dos lugares em que passamos, é muito forte. São lugarejos aos quais o governo não chega, não existe governo. A instituição mais próxima do povo é a Igreja. O Andrew Greenlees, um bom repórter da Folha de S.Paulo, autor da matéria que dizia que o Lula afirmara que "o vermelho da bandeira do PT significava o sangue de Cristo" (publicada em 02/05/93), que tinha acompanhado o Lula na viagem a Princeton, nos EUA, poucas semanas antes, viu o Lula falar uma linguagem muito diferente durante a caravana. Claro: dependendo de onde você está não pode falar da mesma maneira, não se veste da mesma maneira e tal.

E, em Monte Santo, fizeram uma pergunta ao Lula. Aliás, isso é o que eu considero a grande novidade dessa caravana: não era o Lula falando de cima do palanque e as pessoas lá embaixo ouvindo, não a política tradicional brasileira. O Lula fez exatamente o contrário. Ele fazia perguntas para o público e as pessoas faziam perguntas para o Lula. Era uma entrevista em duas mãos. E uma das perguntas que veio do público foi de um trabalhador rural, que disse: "Lula, por aqui dizem que esse vermelho do PT é coisa de comunista. É isso mesmo?". O Lula respondeu que não, porque o PT, quando surgiu, já surgiu contra as ditaduras do "socialismo real" que existiam no Leste europeu e na União Soviética, do mesmo modo que surgiu em oposição a esse capitalismo selvagem que existe no Brasil. Ele explicou que não há uma portaria estabelecendo o significado da estrela e das cores na bandeira do partido, que se pode ver da maneira que quiser. Por exemplo, o vermelho pode ser o sangue de Antônio Conselheiro, pode ser o sangue dos trabalhadores rurais assassinados, pode ser o sangue das crianças que morrem antes de completar um ano de vida, pode ser o sangue de Cristo. Foi por aí - que cada um veja como quiser. O branco do PT pode ser o branco da paz. A estrela pode ser a estrela que guia os navegantes, pode ser a estrela de Belém, como vocês quiserem.

Os religiosos que estavam ali ficaram emocionados com essa conversa do Lula, com essa maneira de explicar o que era o PT. Eu estava junto com Andrew; ele nem estava prestando muita atenção no que o Lula falava, afinal o Lula falava as mesmas coisas dez vezes por dia, em pontos diferentes da viagem. Na hora, o Andrew conversava com o prefeito, com outras pessoas, mas aquela frase, aquele pedaço de frase o interessou, iria servir para a matéria que ele queria fazer.

Coincidentemente, no mesmo dia, fomos a Canudos. Chegamos atrasados, era para chegar às onze da manhã e chegamos depois das duas da tarde. Tinha muita gente, parecia que a cidade inteira estava na praça. Lá, isso é importante destacar, os trabalhadores rurais, um movimento ligado à Igreja, têm um rito quando se encontram: eles fazem uma celebração, que é a distribuição dos pães, sempre que há um dia de festa. E a chegada de Lula foi uma festa para eles. Apareceram cinco balaios de pão trazidos por eles e o Lula não sabia de porra nenhuma, não sabia o que era aquilo, nem estava entendendo o que estava acontecendo. Só que, antes dos pães chegarem - nós não estávamos num palanque, era como se fosse um pequeno anfiteatro na praça -, o pessoal, que àquela altura estava com fome, catou os pães e começou a comer. Mas dois balaios conseguiram chegar até o lugar onde estavam o Lula, o Suplicy e o Bisol. E eles não sabiam o que fazer com aquilo. Um cara explicou: "Olha, isso aqui a gente faz sempre, tem que distribuir o pão." Foi aí que os três distribuíram os pães.

Engraçado, os jornalistas todos estavam num bar, almoçando, e quando viram aquela cena, concluíram: "Bom, agora o Lula é o messias." O Andrew Greenlees, então, pegou uma frase isolada do sangue de Cristo numa cidade, depois pegou a cena da distribuição dos pães em outra e juntou. Eu não sei se o texto final que saiu na Folha é dele. Por sinal, essa é outra coisa que eu não conhecia: os repórteres reclamavam muito que mesmo as matérias assinadas eram mudadas na redação. Isso não existia no meu tempo de jornal. Eu tenho que conversar com o Andrew para saber o que aconteceu.

Guinada

Nessa altura, mais ou menos no décimo dia, mudou completamente o caráter da cobertura. Até então, era uma cobertura normal, contando o que estava acontecendo. Com isso, o repórter do Estado de S.Paulo, concorrente direto da Folha, foi cobrado pela chefia: "Doutor, como é que a Folha faz isso e você não faz?" Aí o Paulo Buscato resolveu fazer uma matéria dando porrada. O clima foi ficando ruim, porque nós e os jornalistas passávamos o tempo todo juntos. Ele disse que num lugar o Lula falou só para duzentas pessoas, em outro lugar ninguém queria conversar com ele, que as pessoas nem sabiam quem ele era, enfim, deu uma forçada de barra e fez uma matéria para limpar a própria cara. Em cima dessas matérias é que o Estado e a Folha estavam concorrendo, o velho marketing dos dois jornais para ver quem é mais crítico e menos petista (o que é outro problema da imprensa: 90% dos jornalistas são acusados de petistas e, para não parecer, acabam exagerando para o lado contrário). Alguns dias depois apareceu um repórter, Mario Rosa, da Veja. Já veio com a tese pronta e fez aquela matéria lamentável ("O marketing da miséria", publicada na edição de 12 de maio).

Depois o Andrew foi embora e a Folha mandou outro repórter, Fernando Molica, do Rio. Houve o mesmo problema, ele começou a cobrir a viagem e a redação começou a reclamar: "Cobertura burocrática, não tem crítica". E ele foi ficando nervoso, tenso. Bem no dia que ele ia embora aconteceu a história do "filho da puta", logo de manhã cedo, em Teófilo Otoni (MG). A gente visitou uma favela, um lugar muito miserável e o Lula estava impressionado. Aí o Fernando perguntou ao Lula: "Escuta, você está sabendo do rolo do Eliseu (Resende, o ministro da Fazenda, que estava para cair)?". O Lula não sabia de nada, a gente não tinha informação, não chegava jornal, não dava tempo de ver televisão. Tinha só o relatório que a Clara Ant e o Edson Campos (assessores de São Paulo) preparavam para o Lula, diariamente - que às vezes não chegava de modo que a gente estava meio longe das informações. Bem, o Lula não sabia e o repórter da Folha explicou o que estava acontecendo, o caso da Odebrecht, a sujeira toda. O Lula virou e falou: "Você está vendo isso aqui, o filho da puta do Itamar tinha tudo na mão para fazer um bom governo e mudar essa situação, aí botou o Eliseu Resende no governo".

O que é notícia?

Ele e o repórter estavam andando na rua, saindo da favela e indo para o ônibus, ao lado de outros jornalistas, quando ele disse isso. E nunca negou que disse. Imediatamente o Molica pegou o primeiro telefone que encontrou e avisou a direção da Folha. Virou manchete do jornal ("Lula xinga presidente e Eliseu em MG", 08/05/93). Antes mesmo que o jornal saísse, estabeleceu-se uma discussão entre os jornalistas, se aquilo era notícia. Eu avisei o Lula, claro. Ele chegou para o Molica, antes que a matéria saísse, no mesmo dia e falou: "Escuta, você acha que se eu quisesse ofender o Itamar, xingar o Itamar, romper com o governo, eu iria falar para você, escolher a sua orelhinha para dizer isso? Diria num palanque, ou numa entrevista coletiva, falaria na TV Globo!"

O mais curioso, no entanto, é que eu vi o relatório que o Molica mandou ao jornal. Ele me mostrou, antes de ir embora. Ali, explicava as circunstâncias, como a coisa aconteceu, e que o Lula tinha negado que tivesse qualquer intenção de ofender o Itamar. Só que a Folha já tinha resolvido fazer manchete, com aquilo. Na matéria, se você conferir o texto de chamada de capa, vai ler que o Lula ofendeu o presidente e ponto. Mas na página interna, o Molica explica tudo.

Dias depois, o ombudsman da Folha, Mário Vítor, criticou aquela edição. Acho que foi uma lição para todo mundo, inclusive para o Lula. Ele viu que não dá para falar mais em público aquilo que ele sente como cidadão indignado. Eu espero que tenha servido de lição para a imprensa também.

Ficou claro, nessa viagem, que a imprensa não está mais preparada para fazer reportagem, para entrar em contato com a realidade. De tanto ficar em gabinetes, de tanto fazer matérias por telefone, essa "futricaiada" do poder, desaprendeu a reportar a realidade. Para você ter uma idéia, o jornalista mais ativo, que entendeu o que estava acontecendo, foi o Zuenir Ventura, do Jornal do Brasil, que tem idade para ser meu pai. Ele acordava cedo, era o primeiro a entrar no ônibus. Depois, era o primeiro a descer do ônibus, chegava em qualquer cidade, em qualquer lugar, em qualquer situação, ele esquecia o Lula e ia conversar com os moradores para saber a situação daquele lugar. Porque o importante não era o que o Lula dizia. O que ele falava lá, diz no Jô Soares, diz aqui todo dia em entrevista coletiva. O que era jornalisticamente e politicamente rico era o que as pessoas diziam ao Lula, as situações que ele encontrou. Eu lembro que o primeiro dia da caravana foi muito marcante. Saímos de Garanhuns e, em vários lugares, as pessoas fechavam a estrada e obrigavam o Lula a parar. Numa dessas cidades, em Águas Belas (PE), o pessoal, estava comendo palma [um tipo de cacto com menos espinhos]. Gente que estava passando fome, que tentou invadir a feira e a polícia reprimiu. Aí uma mulher desmaiou, foi uma cena patética, mas a gente tinha que seguir, porque tinha a programação daquele dia. O Zuenir, não. Ele largou o ônibus da imprensa e ficou na cidade para ver o que acontecia depois de o Lula ir embora. Claro: ali estava a grande história.

Medo em Canapi

Para mim, Canapi foi um marco dessa viagem, foi o fim do medo, tanto nosso como da população. Porque é uma cidade que vive com medo da família Malta. Não faz muito tempo, Joãozinho Malta deu vários tiros no prefeito. E aconteceu uma coisa engraçada. Nós chegamos na cidade sem ter a menor idéia do que ia acontecer. Tinha um corredor polonês, um monte de gente na entrada da cidade, parada para o Lula passar pelo meio. Não dava para saber se eram amigos ou inimigos. A gente não tinha escolha, tinha que descer do ônibus. Bem, quando o Lula desceu, aquilo fechou e mais gente começou a sair das casas. O Lula se sentiu seguro porque estava cercado de gente. E as pessoas se sentiram sem medo, pois o Lula estava com elas. Onde ele ia, toda a cidade ia atrás.

Eu mesmo estava com medo porque já conhecia Canapi. Estive lá no ano passado e tive que sair correndo da cidade.

Fui fazer uma matéria para a revista Caminhos da Terra, da Editora Azul. O Pompílio Malta, um dos irmãos da Rosane, mandou os capangas avisarem pra mim e para o meu irmão Ronaldo, fotógrafo, que estava comigo: "Se vocês não saírem da cidade em cinco minutos, vamos acabar com vocês."

E a gente teve que fugir de lá, mas conseguimos fazer a matéria. Ela até mereceu menção honrosa no Prêmio Abril do ano passado.

Seca

Algumas pessoas dizem que a caravana é campanha eleitoral e só. Na verdade, essa idéia é antiga. A gente fala nisso desde 1989. Tem a ver com o plano de combate à fome, que o PT elaborou, sob a coordenação do José Gomes da Silva, e que nós entregamos ao Antônio Cabrera, ministro no governo Collor, mas ele não pôs em prática.

No final do ano passado o Itamar assumiu, lembrei isso para o Lula e ele falou: "Vamos levar ao Itamar e ver se ele adota." E o Lula levou em fevereiro. O Itamar comprou a idéia, mais ou menos ao modo dele, e hoje a campanha contra a fome, liderada pelo Betinho, com seus prós e contras, é uma realidade.

Mas pouco depois de o Lula ter levado o nosso plano para o Itamar, aconteceu uma coisa curiosa. Dias depois, ligou o prefeito de Mirandiba (PE), Nelson Pereira de Carvalho, o primeiro prefeito petista no sertão do Pajeú. Ligou desesperado por causa da seca, da fome na cidade, ele queria a ajuda do Lula. Aí o Lula falou comigo: "Pó, o que eu vou fazer lá? Não sou governo, não posso fazer nada, não tenho dinheiro para doar." Resolveu então reunir os prefeitos da região e discutir essa questão com eles.

Em março juntaram-se prefeitos de diferentes partidos, gente da Igreja, sindicalistas em geral, num clube de Mirandiba, e o Lula foi lá. Foi fantástico. Em vez de chegar e falar "vocês têm que fazer isto e aquilo" ou "votem em mim que eu resolvo", ele botou todo mundo para falar. A mesma coisa que ele fez durante a caravana. Notou, na reunião com os prefeitos, que havia uma realidade que ele desconhecia, embora tenha saído de lá quarenta anos atrás. Lá pelas tantas, o prefeito de Serra Talhada (PE), do PDT, Augusto Cezar, disse o seguinte: "Não adianta nada a gente ficar aqui falando, precisamos tomar uma providência concreta, o Brasil precisa saber o que está acontecendo aqui, vamos para Recife ocupar a Sudene." E foram. Fizeram esse negócio e deu um rebu danado. Pegaram como refém o superintendente da Sudene, um tremendo barulho.

O Lula foi entrevistado pela televisão quando foi para Mirandiba e, depois, ao voltar de lá, de passagem pelo Recife. Inclusive pela TV Globo, mas só transmitido pelo jornal local. Quando os caras ocuparam a Sudene, aí virou uma notícia nacional. Isso é a política real, a política na prática: uma visita do Lula ao sertão do Pajeú permitiu que o Brasil ficasse sabendo que havia seca, que havia gente morrendo de fome, permitiu, mais ainda, que o Brasil visse a cara dessa gente.

Estado privatizado

Semanas antes da Caravana da Cidadania, promoveram um ato público contra a indústria da seca em Salgueiro (PE), uma cidade vizinha a Mirandiba. Isso antes de estourar o caso do Inocêncio de Oliveira, presidente da Câmara Federal, que mandou cavar poços artesianos em suas terras particulares com verbas públicas.

Quando se diz que o Estado está falido, não é que esteja falido, é que os recursos do Estado não chegam às comunidades. De cada cem cruzeiros que são mandados para o Nordeste, noventa desaparecem pelo meio do caminho. O que mais nos chamou a atenção na viagem foi o número de obras inacabadas. Vê-se duas coisas, obras públicas em propriedades privadas e obras públicas abandonadas na metade ou que jamais beneficiaram a comunidade. Um exemplo gritante é o de Pedra do Cavalo, em Cachoeira, na Bahia, que tem uma imensa hidrelétrica. Um detalhe: até hoje ela não entrou em funcionamento. O governo já enterrou um bilhão de dólares naquela obra - e ela não produz um único quilowatt.

Ficou uma barragem com um monte de água. Como não tinham o que fazer com a água, não fizeram nenhum projeto de irrigação, como seria natural. Construíram uma adutora para levar a água para Salvador, a 150 quilômetros de distância, enterrando uma fortuna nessa adutora. E as pessoas em volta da represa não têm água para plantar. O que tem de viaduto inacabado, de açude inacabado, é inacreditável.

Como é que funciona a coisa? O deputado ou o coronel local consegue a verba do governo, a empreiteira paga comissão ao representante do governo e começam a construir. A uma certa altura, já recebida boa parte do pagamento, a construtora larga tudo e fica por isso mesmo.

Aliás, o PT está fazendo, agora, um levantamento do volume de recursos destinados pelo governo ao Nordeste e onde foi parar esse dinheiro. Perto disso, os poços do Inocêncio, que viraram folclore, são uma bobagem, é ninharia perto dos verdadeiros escândalos. Tanto é que ele mesmo falou: "Todo mundo faz, é natural."

Os desorganizados

E quando você pensa na falta de comida é que fica mais claro o sentido dessa Caravana da Cidadania: o primeiro passo para o cara ser cidadão é comer. A política tradicional mantém o povo passando fome e quando chega a eleição distribui cesta básica. Daí vem a força eleitoral dos coronéis, da fome do povo.

Isso o Lula falou em todos os lugares pelos quais passou. Foi o centro de seu discurso, que a imprensa não deu, essa relação de domínio graças à pobreza. Sempre, em vez de prometer solucionar os problemas, o Lula dizia que só a organização do povo dá jeito nas coisas. Ele comentou, depois: "Eu passei a metade da minha vida organizando, fazendo política, no PT, na CUT, com os trabalhadores organizados do Brasil, com os sindicalizados. Agora, vou passar o resto da vida com a outra metade do Brasil, que não está organizada e que está na mão desses caras." São situações como essas que geram o Sarney, que geram o Collor. Eles não vêm do nada, vêm da fome dos outros.

Pedidos

Sempre me perguntam: "Kotscho, o que é que as pessoas esperam do Lula nessas viagens?" Para mim, uma boa resposta foi dada por um comentário de um jornalista alemão, que está há dez anos em nosso país. O nome dele é Carl Goerdeler, correspondente no Brasil do jornal Die Zeit, a principal publicação alemã, um jornal que forma opinião. Ele ficou observando o Lula na feira de Garanhuns, quando conversava com um, com outro, as pessoas chegavam direto nele, encostando e o tratando por Lula.

O que chamou a atenção do alemão foi que as pessoas não estavam pedindo dinheiro para ele, pediam emprego: "Oh, Lula, me arruma um negócio na frente de trabalho, manda uma indústria pra cá, para arrumar serviço pra nós."

E é uma relação de iguais. É uma relação muito delicada. Não é a relação do pobre coitado com o mito, é exatamente o contrário da matéria que a Folha fez criticando um suposto misticismo no Lula; não é uma relação com o novo messias, do cara que chega, promete e acontece.

Evidentemente que em um ou outro lugar tem uma tiete que se joga em cima, mas o normal não é isso, quase nunca tem tietagem nesses lugares. As pessoas querem conversar com ele, que ele saiba o que está acontecendo lá. E era isso que ele queria, por isso foi uma relação boa.

Na Bahia, o pessoal parou o ônibus do Lula na estrada - aliás, isso acontecia todo dia -, ele desceu, conversou com as pessoas. Arrumaram um desses carros de propaganda - era uma cidade que não tem rádio -, com alto-falante em cima, que faz propaganda de padaria, sei lá, e o Lula começou a conversar com as pessoas. Em seguida, passou o microfone para um velho que estava por ali. O homem se apresentou e começou a falar. Ele tremia. Tremia tanto que pediu desculpas: "Viu, estou um pouco nervoso porque tenho setenta anos e nunca falei num alto-falante na minha vida." Ele achava que o microfone era o alto-falante. Tinha passado a vida ouvindo os outros pelo alto-falante e nunca tinha ouvido a voz dele no alto-falante.

Dizem que isto é demagogia do Lula. Garanto que não é. Se fosse outro político qualquer que tivesse feito o que o Lula fez, nessa caravana, eu faria uma matéria dizendo que é demagogia. Mas a história de vida dele não permite que alguém possa imaginar que tenha alguma intenção demagógica. Ele inverteu a relação política no sindicato. Isso faz parte de sua história, ninguém pode tirar. Como era o sindicato no foral dos anos 70? Funcionava nas assembléias dentro do sindicato, para uma minoria. O que o Lula fez? Ele passou a ir para a porta das fábricas conversar com as pessoas. Foi aí que o Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo se fortaleceu e se tornou um grande pólo do novo sindicalismo brasileiro.

O que ele fez nessa viagem foi exatamente a mesma coisa. Até brincou: "Em vez de porta de fábrica é porteira de roça." Ia em lugar que tinha apenas dez famílias morando, num fim de mundo, e conversava com aquelas famílias. Nem sabe se aquelas pessoas votam. Provavelmente nem têm título de eleitor.

Não havia nada de demagógico. Até porque, para o Lula, que lidera todas as pesquisas de opinião pública desde o final do ano passado, sem exceção, seria muito melhor ficarem casa esperando o dia da eleição. Além disso, ele sabia, e todos que participaram da caravana também, que era um risco muito grande. Não só o risco de a imprensa falar mal. O meu temor era outro. Eu temia que pudessem hostilizá-lo, o que não aconteceu na viagem inteira. Eu acho um milagre. Atravessamos 4 mil quilômetros de Brasil, nos redutos da família Malta, da família Collor de Mello, do Antônio Carlos Magalhães, do Brizola na Baixada Fluminense e não houve um único gesto de repúdio à nossa caravana.

Dificuldades

Disseram que ele foi vaiado em São José dos Campos (SP), no final da viagem. Não foi. Ali, estava acontecendo um ato público de um pessoal contra a prefeitura, que é administrada pelo PT, por conta de um atrito municipal. Aí um vereador da oposição montou um palanque ao lado do lugar em que o Lula iria falar. E os caras vaiaram a prefeita, vaiaram o deputado federal Aloízio Mercadante, do PT, vaiaram todo o pessoal do partido que estava lá. Mas o Lula não foi. Ele foi avisado de que não havia clima para divulgar a caravana, conversar com as pessoas.

Se tivemos esses problemas em São José, eu quero dizer que também houve problemas em outras cidades. Em Santos, onde o PT está na prefeitura, a mobilização em torno da caravana foi muito fraca. Em São Bernardo, que é o grande reduto petista, a mesma coisa. Em compensação, em cidades onde os prefeitos são do PFL, PL, PMDB etc, decretavam ponto facultativo, feriado na cidade para receber o Lula, iam para o palanque com ele. Isso, por sinal, é mais uma prova de que não havia tanto clima de campanha eleitoral assim, pois, do contrário, esses caras não iriam para o palanque com Lula, eles chamariam a polícia. Eles estariam do outro lado. No ano que vem, quando começara campanha pra valer, os prefeitos farão festas para os candidatos de seus próprios partidos.

Quem é o barbudo?

Uma cena que me impressionou demais aconteceu aqui, no lixão de Guaratinguetá, nos últimos dias de viagem. O Lula conversou com um pessoal que mora no lixão, em barracos no meio do lixo. Aí, uma mulher contou a vida dela todinha para ele. Quando o Lula saiu, a mulher chegou para mim e perguntou: "Quem é esse de barba, aí?" Eu expliquei que era o Lula, que aparecia muito na televisão durante a campanha de 1989, aos poucos ela lembrou de alguma coisa. E em vários lugares ele ficava horas conversando com a população. Imagine, um presidente de partido como Lula, que é favorito nas pesquisas "perder" horas conversando com três ou quatro pessoas num lugar qualquer.

Muitas vezes ele ficou emocionado com as histórias que ouvia, as pessoas se abriam, falavam sobre problemas pessoais. Tinha mulher falando de marido e marido falando de mulher, e problemas dos filhos, tudo. Ele chegou a me dizer: "Olha, isso aqui é a melhor coisa que eu fiz na minha vida, tinha que ter feito isso antes."

Os frutos dessa viagem vão demorar. Não serão frutos eleitorais. Porque é um problema de se criar consciência. Em primeiro lugar, para falar de cidadania, ele levou alguns dias até conseguir explicar para as pessoas o que era. Ele tinha acabado de chegar dos EUA, precisava mudar o canal, o modo de se expressar. Falar de cidadania para algumas pessoas, ali, de um modo que elas entendessem, era realmente um problema.

Quando a Caravana terminou, quando voltei a São Paulo, levei um susto, foi um susto aos poucos. Dia-a-dia, fui me dando conta de que as pessoas não sabiam nada do que tinha acontecido. Fui um dia falar para os estudantes da PUC e era como se eu tivesse contado uma história de uma viagem para a Antártida ou para o Zaire. Mas não, isso aconteceu no Brasil, foi acompanhado por toda a imprensa brasileira e ninguém ali sabia o que tinha acontecido. Eu estava contando uma novidade.

Assessor-repórter

Nessas horas, quando relato o que aconteceu, eu me sinto um jornalista contando fatos que os outros omitiram. Na verdade, como assessor, eu me sinto repórter. Não consigo separar as coisas. Aliás, isso me criou vários problemas em 1989, durante a campanha presidencial.

Explico. Como jornalista, acho que, se tenho uma informação, tenho obrigação de passar para a sociedade. E até brincavam comigo no PT: "Você não é assessor de imprensa, você é assessor da imprensa!" O Zé Dirceu (deputado federal) e o próprio Lula diziam isso. E eu respondia que, se fosse alguma coisa sigilosa, reservada, não era nem para me contar, pois se os repórteres me perguntassem eu entregaria. Não é que eu seja bonzinho, legal, nada disso: é que se mentir uma vez para eles, não acreditarão mais em mim.

Assim, eu falo das besteiras da caravana, sem o menor problema. A primeira bobagem que fizemos, eu acho, e até porque foi a primeira vez que fizemos isso, foi a duração da viagem. Foi muito cansativa para todo mundo. Imagine que o projeto inicial era de quarenta dias. A muito custo reduzimos para 25. Logo na primeira semana vimos que não ia dar. Diminuímos para vinte.

O segundo erro foi meu. Acho que a imprensa tem que acompanhar tudo, é claro, tem que ver o que está acontecendo, a despeito das críticas que possa fazer. No fundo, essa viagem foi uma grande reportagem. E o próprio Lula se transformou em repórter, perguntando para as pessoas como é que vivem, o que sonham, o que pensam. Mas o convívio por muito tempo é um negócio insuportável. Imagine alguém dar entrevista o dia inteiro, todos os dias. Da próxima vez nós vamos consertar duas coisas. Fazer uma viagem com uma duração menor e sem convidar a imprensa para ir junto o tempo todo. Sem ter ônibus para ela. Evidente que se algum jornal quiser ir atrás, que vá, mas por conta própria.

Problemas do PT

Outro ponto negativo que eu vi, e aí critico para todo o PT ouvir, é um problema de organização partidária. Encontrei muitos PTs ao longo do caminho. Onde o partido está se organizando junto ao movimento popular, cresce e é forte, é uma coisa viva. Mas onde está encruado nas tendências políticas é um desastre. São duas realidades completamente diferentes. Onde há uma predominância de tendências, elas estão totalmente empenhadas na luta interna. Eu vou te dar um exemplo concreto, gosto sempre de dar exemplos.

No Vale do Jequitinhonha, uma das regiões mais miseráveis do país, tem uma mulher, a Cacá, assistente social, ligada ao movimento de Igreja, que quase se elegeu prefeita de Araçuaí, contra os coronéis que estão lá há duzentos anos. Perdeu por oitocentos votos num colégio eleitoral de 30 mil eleitores. O partido elegeu quatro vereadores. Foi um negócio que ninguém imaginava que pudesse acontecer. Agora, teve a eleição do novo diretório da cidade, ela e os quatro vereadores foram derrotados pelas tendências radicais.

Eu acho que existe um PT que cresce na organização popular, e um PT que encrua nas tendências. E dou mais dois exemplos disso. Em Feira de Santana (BA), os caras brigaram o tempo todo, as tendências da CUT, do PT, do PC do B, e conseguiram fazer um ato público de 1° de Maio que foi um fracasso total. É um caso típico de uma cidade forte, com sindicatos fortes, mas uma porcaria partidária. Governador Valadares (MG) é a mesma coisa. O PT lá não sai do lugar desde que foi fundado, porque tem três ou quatro grupos que brigam entre si.

Imagine que uma cidade do porte de Governador Valadares, numa noite de sábado, reuniu quatrocentas, quinhentas pessoas na praça. Em compensação fomos a cidades, ao meio-dia, como Medina (MG), administrada pelo PFL, e encontramos a população inteira na praça. Em Araçuaí (MG), onde o prefeito não é do PT, foi fantástico. Mais de 10 mil pessoas, segundo a imprensa.

Como jornalista, eu estou muito à vontade para dizer isso. É a minha opinião pessoal, porque não pertenço ao PT, nunca entrei no PT. Nunca pertenci a nenhum partido político. É a mesma coisa com o São Paulo. Sou são-paulino, mas não tenho nada a ver com a diretoria do São Paulo Futebol Clube.

Acho que é natural que as pessoas se aglutinem em torno de idéias, que tenham divergências quanto às propostas. Nocivo é quando se formam os grupos que estão aí, lutando por espaço, há dez anos, lutando para dentro.

Apartidarismo

Esse negócio de jornalista apartidário, imparcial, para mim é mentira, não existe. E digo mais: hoje em dia, quando os jornalistas dizem que são apartidários, que não tomam posição e não sei o quê, estão negando o ser humano que há dentro do jornalista. Não só em política, você sempre toma posição em tudo. Com essa moda de jornalista "imparcial" o que está acontecendo é que cada jornal está se transformando num partido político, quer dizer, ninguém presta no país, com exceção dos maravilhosos donos daquela publicação.

Ora, as pessoas não são iguais, os partidos não são iguais. E, à medida que você quer mostrar que nenhum político presta, que todos os partidos são a mesma porcaria, você presta um desserviço à democracia. A obrigação do jornalista é mostrar as diferenças, independentemente da posição de cada um. Eu não brigo com a notícia, nunca briguei. Agora, escolhia os assuntos que eu achava que deveria fazer, deveria apontar aquele negócio, sem deturpar um fato.

Vou dar um exemplo concreto que aconteceu comigo na campanha das diretas, em 1984. Eu era o repórter da Folha escalado pela direção do jornal para cobrir aquela campanha. Fui a todos os comícios, viajei o Brasil inteiro. Claro, você acaba ficando amigo das pessoas, você viaja junto, aquele convívio permanente cria laços pessoais. Como aconteceu agora.

Chegando em Manaus, quebrou o pau no comício, a campanha das diretas quase acabou naquele dia. A briga foi entre Gilberto Mestrinho, governador do Amazonas, e Doutel de Andrade, que representava o Brizola. No dia seguinte eu escrevi uma matéria contando tudo. Os caras viraram a cara para mim: "Pó, você está com a gente ou não está?" Respondi na hora: "Sou jornalista, eu tenho que contar o que está acontecendo." Escrevia matéria, e depois tentei consertar a briga que havia entre os caras, pois eu era amigo de todos eles.

Ou seja, dá para fazer as duas coisas. Sabe, eu escrevo minha matéria, depois vou jantar com os caras e converso com eles como cidadão. E não vou fazer matéria da minha conversa durante o jantar. Essa é a diferença.

Como cidadão, eu lutei para que a campanha das diretas desse certo. Dava idéias, sugeria discursos. O velho Ulysses Guimarães chegava para mim: "Eu não tenho mais o que dizer. Oh, jornalista, dá uma dica do que vou falar hoje à noite." Então eu combinava o lead da minha matéria com ele, o que ele iria falar naquela noite na praça. E mandava a matéria para o jornal, comentando o que o Ulysses disse, antes de o Ulysses ter dito. Com isso, eu alcançava o fechamento antes.

Você me pergunta se eu não tinha medo de que acontecesse uma zebra, de que o avião caísse, e o Ulysses não falasse mais aquilo que tínhamos combinado. Olha, eu morria de medo, e ele falava: "Fica calmo jornalista, avião comigo não cai." Acabou morrendo de uma queda de helicóptero.

O que eu quero dizer é que me sinto jornalista hoje, sim, tranquilamente. Faço trabalho jornalístico para quem me convida para escrever, sem problema nenhum. Eu me lembro que em 1989, quando fui trabalhar na campanha, muita gente falou: "Você vai se queimar, vai perder a credibilidade." Eu acho que isso não aconteceu. Briguei com um monte de gente, mas também teria brigado se estivesse trabalhando num jornal. Quando acabou a campanha, eu recebi convite para voltar a trabalhar na grande imprensa, e voltei ganhando mais do que ganhava antes, fazendo o mesmo trabalho, como repórter especial do Jornal do Brasil. E só saí de lá no ano passado, porque eu vi que estava enganando o leitor e enganando o jornal. Eu ganhava um altíssimo salário e não tinha mais espaço para fazer reportagem. Não podia viajar porque não tinha verba para isso. Quando viajava, por minha conta, com o meu carro, não tinha espaço para publicar a matéria. Então resolvi: vou fazer outra coisa na vida.

Pedi demissão. Eles perguntaram: "Você vai para onde? É problema de salário?" Não era. Esclareci que não estava me sentindo bem, que não sabia fazer matéria por telefone, que me sentia enganando o leitor. Aí fui fazer free lance e voltei a trabalhar com o Lula. Hoje, a relação é oposta: eu acho que não me queimei, se quiser posso voltar a trabalhar em qualquer lugar, mas a imprensa se queimou comigo, não acredito mais nessa imprensa.

Os teleguiados

Vendo por dentro como as coisas são feitas, aquilo que eu falei, dos repórteres teleguiados pelas redações, repórteres que não têm mais iniciativa na matéria, que vão em busca de umas aspas (jargão jornalístico que designa as frases de fontes, as pessoas citadas no texto) para comprovar as idéias que a chefia pré-concebeu. Eles só procuram alguém que diga aquilo que os veículos em que eles trabalham querem publicar.

O Mário Rosa me disse, com todas as letras: "Eu escrevo para 3 mil leitores da Veja". "Como 3 mil? São 700 mil", eu perguntei. "O resto não interessa", ele falou. "Escrevo para o top, o top da elite. Vim aqui fazer uma análise psicológica do Lula."

Depois que saiu a matéria sobre a caravana na Veja, o Lula ligou para o Roberto Civita, apontou as mentiras que a revista tinha publicado e pediu informalmente um espaço para resposta. O Civita negou, dizendo que isso não era um hábito da publicação.

Eu passei a vida inteira defendendo a liberdade de imprensa. Hoje eu quero defender a liberdade da sociedade de se defender da imprensa, não processando, censurando, nada disso. Mas eu acho que tem que haver um espaço para que as pessoas dêem a sua versão dos fatos. Porque o que se tem, hoje, no Brasil, é uma ditadura da imprensa.

Ao voltar da caravana, em maio, o Lula foi participar de uma cerimônia de posse do Conselho de Segurança Alimentar no Palácio do Planalto, a convite do próprio Palácio. No dia seguinte, a Folha fez uma matéria dizendo que o Lula foi lá, que não conseguiu falar com o Itamar, que o encontro dos dois foi adiado etc. Era tudo uma grande mentira. Porque eu tinha participado de tudo. Eles mandaram um fax do Palácio do Planalto convidando para a cerimônia. Como o Lula tinha dado a idéia do Conselho e da campanha contra a fome, eu achava que ele tinha obrigação de ir. E ele foi. Não tinha nada de encontro com Itamar, nada disso.

Não haverá democracia neste país se não houver democracia nos meios de comunicação. Vou dar um outro exemplo dramático dessa viagem. Cobertura da televisão. Em Garanhuns, na região do agreste pernambucano, a televisão do Inocêncio de Oliveira é retransmissora da Rede Globo. Quer dizer, o dono da Globo local é o Inocêncio. Entramos em Alagoas. A dona da Globo de Alagoas é a família Collor de Mello. Entramos na Bahia e a Globo de lá pertence ao ACM. Não adianta nem ligar para a Globo, que eles não vão cobrir mesmo.

Quando entramos em Minas, eu falei: "Quer saber? Vou ligar para o Alberico Souza Cruz, o chefe do jornalismo global, que eu conheço, tenho conversado bastante, e dizer para ele o que está acontecendo na viagem, e que vale a pena a Globo cobrir. Estamos em Minas", avisei. Ele perguntou em qual cidade e disse que mandaria uma equipe. E mandou uma equipe para lá, os caras fizeram a cobertura e deram uma bela matéria no Jornal Nacional, jornalística. Uma matéria nem contra nem a favor, mostraram o que estava acontecendo na caravana.

Aí fizeram uma tremenda intriga na Veja, dizendo que ao mesmo tempo que o Lula criticava o Roberto Marinho mandava o assessor ligar para a Globo. Como se eu tivesse o poder de mandar uma equipe da Globo para determinado lugar. Primeiro, é bom deixar claro que o Lula não me pediu coisa alguma, que ele nunca fez esse tipo de coisa. Segundo, a crítica que fez ao Roberto Marinho, que fez na entrevista coletiva quando perguntaram, é exatamente a mesma que ele fez pessoalmente, quando se encontraram. Não tem nada uma coisa a ver com a outra.

O Lula não precisa falar bem do Roberto Marinho para a TV Globo cobrir o que o Lula faz. Como uma prestadora de serviço, que funciona na base de concessão pública, ela tem a obrigação de cobrir. É verdade que às vezes não cobre, mas tem a obrigação. Não só a Globo, mas toda a imprensa.

Caçador de marajás

Porque quando a gente fala da Globo, que é o símbolo, nos esquecemos de um pequeno detalhe: quem revelou o seu Collor de Mello, na grande imprensa brasileira, quem o consagrou como "caçador de marajás" foi a revista Veja. Não por acaso, o Etevaldo Dias, que era chefe da sucursal de Brasília da Veja, amigo do Collor, foi quem inventou o "caçador de marajás", que foi capa da Veja. Foi depois dessa capa que a Globo fez um Globo Repórter do "caçador de marajás", foi assim que começou a história. E quando a imprensa, no ano passado, se autoendeusou na história do impeachment, eu acho que a Veja acreditou que estava limpando a barra dela, porque foi ela quem criou o cara.

Eu imaginava que, depois daquilo, eles não fossem cair de novo nessa história. E estão caindo outra vez, estão de novo procurando um Collor, o chamado "terceira via", para evitar a polarização das eleições. Até aí penso que cada jornal pode ter suas posições políticas, isso eu até defendo, cada jornalista tem o direito de ter a sua, mas ternos que encontrar um meio de dar espaço para a sociedade se defender. Por que o Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo do Campo reivindica há dez anos uma concessão de rádio e não pode ter? Que democracia é esta?

Volto à questão da cidadania. Tudo isso só vai mudar quando tivermos um país de cidadãos. Hoje você não tem. Porque mesmo nos grandes centros, o cara não é um cidadão completo, ele não sabe os direitos que tem, não sabe os deveres que tem. É algo que vai levar muitos anos. E quando as pessoas perguntam quais foram os resultados concretos da viagem do Lula, da caravana, a resposta só poderá ser dada daqui a alguns anos.

Eu ainda quero contar duas histórias, que eu acho que valem a pena. Quando houve a pressão das redações em cima dos repórteres - "Vocês têm que dar pau, é demagogia, é populismo do Lula, não sei o quê"-, o mais jovem repórter que estava lá foi cobrado também. Aí ele falou no telefone na frente de todo mundo, porque só tinha um telefone na portaria do hotel, era uma promiscuidade telefônica, todo mundo sabia de tudo. Ele disse para o chefe dele o seguinte: "Olha, eu vou continuar mandando as matérias com aquilo que eu vejo, eu não vou mentir, eu não vou entrar nessa, se vocês quiserem, vocês me demitam." E continuou mandando, todo dia, as matérias dele, que saíram até o último dia da viagem.

Agora a segunda história. Dias depois o Lula foi ao Boris Casoy, como convidado dele. Foi gravado numa sexta-feira e foi ao ar no TJ Brasil do sábado seguinte. Eles tiveram tempo de conversar antes da entrevista, que acabou tomando um bloco inteiro do telejornal. O Boris perguntou sobre a história do sangue de Cristo, do filho da puta, aquela encrenca toda, e o Lula contou o que aconteceu. De repente, o Boris falou: "Mas então eu fui injusto, porque eu fiz vários comentários esses dias todos em cima do que a imprensa publicou." Na entrevista que foi ao ar, a coisa mudou completamente. O Boris falou: "Se eu soubesse que tinha sido assim, eu não teria feito os comentários que fiz." A seguir, abriu um espaço enorme no TJ Brasil para que o Lula contasse sua versão.

Gostaria de falar, por fim, do Gilberto Dimenstein, da sucursal de Brasília da Folha, que fez vários artigos em sua coluna diária a partir das matérias publicadas pela Folha, sem procurar saber o que realmente aconteceu. Então se criou uma bola de neve. Você pega uma frase isolada, um negócio de um repórter, num lugar, vira manchete do jornal, e no dia seguinte vira verdade absoluta. Vira artigo, isso influi no resto da imprensa, é uma cadeia interminável.

Quanto a essa história de que foi uma cochilada do Lula chamar o Itamar daquilo numa conversa com repórteres, a gente sabe disso. Mas isso não elimina o pecado maior da imprensa, que transformou o acessório no principal. Ninguém nega que essas coisas tenham acontecido. Além do que, você pode contar a mesma história de mil maneiras diferentes. É a mesma história, voltando ao início da nossa conversa, das meias verdades do anúncio da Folha na televisão, com base na foto do Hitler, que foi um anúncio brilhante, premiado. O erro que eles criticavam no anúncio, o erro de mentir usando meias verdades, é exatamente o que eles e a maior parte da grande imprensa brasileira estão cometendo hoje.

Frutos da seca

A Caravana da Cidadania terá um registro na forma de livro. No mês de julho chega à livrarias o Diário de viagem ao Brasil esquecido (Scritta) coordenado por Ricardo Kotscho, com textos de Zuenir Ventura, do Jornal do Brasil, Jorge Antônio de Barros, também do JB, Cíntia Campos, assessora de imprensa do Diretório Nacional do PT e Diogo Olivier, do jornal gaúcho Zero Hora, além de um relato do próprio Kotscho. Um roteiro fotográfico, organizado por Protásio Nêne, da Agência Estado, com imagens de Rogério Assis, da Agência Angular, Ronaldo Bernardi, do Zero Hora, e do organizador, acompanha o material escrito.

Leia A Travessia da Caravana

Eugênio Bucci é membro do Conselho de Redação de T&D.