Política

As mulheres de esquerda estão chegando ao governo. Depois de Thelma e Louise terem dirigido, respectivamente, uma das principais cidades e a capital de São Paulo, uma nova leva se elegeu em 1992. Teoria & Debate entrevistou algumas das mulheres no poder para saber como elas rimam política e amor

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Em entrevista recente para a televisão brasileira (programa Gente de Expressão, TV Manchete, apresentação de Bruna Lombardi, 16/05/93) a intelectual norte-americana Camille Paglia, espécie de pop-star erudita cuja fama já ultrapassou há muito os limites do mundo acadêmico, queixou-se de sua pouca sorte na vida amorosa. "Parece uma espécie de destino", disse Paglia, "que o sucesso profissional corresponda necessariamente a um fracasso no amor". "Sorte no jogo, azar no amor" diz o ditado referindo-se a uma inexplicável lógica que rege o prestígio masculino junto às mulheres. (Aliás, será verdade? A arte do blefe, essencial para garantir a vitória num jogo de sorte, não será igualmente necessária ao sedutor bem-sucedido?) "Sorte na carreira, azar no casamento"- seria a sina das mulheres ambiciosas de acordo com a observação de Camille Paglia.

Se a barra pesa para as mulheres que vão longe em carreiras não tão tipicamente masculinas - intelectuais, escritoras, artistas em geral - muito mais difícil é a situação daquelas que ousam atravessar o caminho dos homens ali onde há milênios é seu campo de batalha favorito - ou seu Clube do Bolinha, se quisermos ser menos épicas - a carreira política. Talvez por isso mesmo, a grande maioria das mulheres que ocupam ou ocuparam cargos de poder nos últimos anos no Brasil, entrevistadas por Teoria & Debate, preferem não admitir claramente suas ambições. Seria um truque típico do "jeitinho brasileiro", ou uma prova de que até mesmo as mulheres que chegaram ao poder na vida política não conseguem admitir para si mesmas que tal conquista corresponde a um desejo, um projeto de vida, uma "carreira" tão consistente e coerente como a de qualquer homem na mesma posição? "Nunca tive como perspectiva maior ou projeto de vida, ocupar um cargo político", diz Angela Guadagnin, 42, atual prefeita de São José dos Campos, em São Paulo, pelo PT. Casada há 25 anos, mãe de dois filhos (23 e 17 anos), Angela conta que sua candidatura à Prefeitura de São José não foi consequência de um plano de carreira política e sim de sua militância junto às pastorais da Igreja, nos movimentos dos profissionais da saúde da cidade (ela é médica pediatra). Da mesma forma, a prefeita petista de Betim (MG), Maria do Carmo Lara Perpétuo, 38 anos, casada há oito e mãe de dois filhos pequenos, também eleita em 1992, afirma que nunca teve a idéia de se candidatar a um cargo administrativo: "Eu participava de movimentos populares junto à Igreja, mas a tomada de consciência sobre a importância de participar da política começou quando entrei no PT". "No início, não tinha ambição de me candidatar, tinha a preocupação de participar", afirma ela. Foi o envolvimento com o partido que levou Maria do Carmo a disputar cargos políticos desde 1982, chegando à prefeitura de sua cidade no ano passado.

Mesmo a primeira mulher eleita como prefeita de uma cidade brasileira, a cearense Maria Luiza Fontenele, 50, não reconhece a ambição política como motivação central em sua vida: "Ao casar não tinha qualquer projeto de chegar ao poder, e o que me movia à participação política permanente era o desejo de justiça; a defesa dos direitos humanos e o espírito de solidariedade humana", garante a ex-prefeita da cidade de Fortaleza, eleita em 1985 também pelo PT, do qual saiu em 1988, ainda durante sua gestão. As declarações de Maria Luiza, no entanto, assim como as das outras mulheres entrevistadas, não correspondem exatamente à sua trajetória de vida. Do mesmo modo que Maria do Carmo não pensava no poder mas vinha se candidatando desde 1982, Maria Luiza foi deputada estadual em 1978 e 1982 e, antes, ainda estudante universitária, foi presidente do Centro Acadêmico da Faculdade de Serviço Social e vice-presidente da União Estadual dos Estudantes - "mais por influência dos que me eram mais próximos, na JUC (Juventude Universitária Católica) ou na AP (Ação Popular), mas também pela minha total disponibilidade na luta, e pela liderança exercida de forma espontânea".

"Quando me casei, sequer imaginava que um dia viria a ser política, embora tivesse militado na política estudantil e universitária, em suas bases", conta Esther Pillar Grossi, 57, ex-secretária municipal de Educação de Porto Alegre (RS), casada há 35 anos e mãe de três filhos adultos. "Certa vez o Pedro Simon, que tinha sido colega em disputas acadêmicas e já atuava do MDB, manifestou sua hipótese de que eu estava desperdiçando uma potencialidade: fazer expressamente vida política. Meu casamento influenciou o meu engajamento, já que estabelecemos, Sergio e eu, uma forma de vida a dois em que cada um desenvolve com autonomia seus projetos pessoais".

Ambições pessoais

Pensar numa carreira política parece ser mais complicado para essas mulheres do que exercê-la. O gosto pela política, pelo poder mesmo, aparece como que de surpresa, como consequência de um engajamento com o qual as mulheres vão se envolvendo sem se dar conta de que ambições pessoais possam estar em jogo. É raro encontrar uma mulher que admita desejar o poder, como a senadora Eva Blay: "Eu gosto de ter poder. Acho ótimo. É uma excelente oportunidade para denunciar o que acho injusto, lutar pelo que acredito. Não é prestígio que me agrada, é poder levar adiante o trabalho de minha vida toda". Eva Blay, casada há trinta anos, hoje na faixa dos 50 (não revela a idade pois acha que existem sérios preconceitos em relação às mulheres com mais de 40 anos), dois filhos de 27 e 25 anos, foi eleita suplente do então senador Fernando Henrique Cardoso, em 1986, em consequência de uma carreira de projeção como socióloga e militante feminista.

Considera o poder político como um instrumento eficiente para viabilizar idéias e projetos que foram gestados na vida acadêmica e militante - como o projeto de lei sobre planejamento familiar e outro sobre a legalização do aborto, ambos de sua autoria, em curso no Senado. Projetos coerentes com sua atuação feminista, mas não necessariamente com o fato de ser mulher: "Me dou muito bem com as duas outras senadoras, Junia Marise (MG) e Marluce Pinto (RR) mas não temos grandes afinidades políticas, e nem sei se posso contar com o apoio delas para aprovar estes dois projetos de interesse de todas as mulheres brasileiras".

Outra mulher que reconhece na luta política um fio condutor de sua vida, mas não na forma do exercício do poder, é a filósofa Marilena Chaui, 51, ex-secretária municipal da Cultura de São Paulo na gestão Luiza Erundina. "Nunca tive ambições de poder político, e não tenho", diz Marilena. "Várias vezes recusei-me a apresentar candidaturas (Senado, Câmara Federal, Assembléia Legislativa, Câmara de Vereadores) pelo PT; recusei-me a ser candidata a candidata a Prefeitura de São Paulo; recusei-me a ser candidata à Reitoria da USP e a candidatar-me a postos na direção no partido. Participei do governo Erundina por dois motivos: por considerar obrigação política colaborar no primeiro governo petista de São Paulo e por considerar obrigação intelectual colocar em prática teorias sobre administração da cultura que eu havia exposto e defendido por muitos anos no PT". Mas Marilena vê sua participação já concluída, e não tem dela uma boa lembrança. "Gosto da discussão política, do debate político e dele participo com satisfação e entusiasmo, mas não o vinculo a aspirações por cargos e postos políticos. A experiência que tive foi vivida por mim como violência, pesadelo, desgaste físico, emocional, intelectual, como angústia e cólera e não como prazer e alegria (...). Eu não nasci para esta modalidade de fazer política".

A incompatibilidade de Marilena Chaui com o exercício direto do poder político é mais típica de uma sensibilidade intelectualizada, afeita às disputas no campo das idéias, e não necessariamente consequência do fato de ser mulher. A ex-prefeita de Santos (SP), Telma de Souza, 48, que também não tinha um projeto político claramente formulado para si mesma quando terminou a Universidade e se separou do primeiro marido aos 25 anos, conta que foi "tomando gosto" pelo poder à medida que conquistava cargos de maior responsabilidade - militante, vereadora em 1982, deputada estadual em 1986 e prefeita em 1988. Telma despertou para a política convivendo não com homens, mas com mulheres que ela qualifica de "guerreiras", a começar pela própria mãe, que assumiu em 1969 a vaga do pai, vereador cassado da cidade de Santos, e a seguir nas lutas pela anistia do final da década de 70 lideradas por Beatriz Rotta Rossi, Edméa Ladevig e outras, "figuras bonitas, inteligentes, femininas - misto de Palas Atenas e Afrodite". Nos cargos proporcionais, no entanto, Telma ainda não tinha sentido claramente tanto prazer quanto peso de ser mulher no exercício da política. "Na Prefeitura de Santos foi que eu senti o que era ter poder mesmo. Ali, era eu sozinha. Tinha poder, no sentido de que ali, eu podia".

Os primeiros-damos

Ambições políticas declaradas, disfarçadas ou simplesmente reconhecidas como circunstanciais, as sete mulheres entrevistadas por Teoria & Debate têm em comum o fato de conseguirem, cada uma a seu modo, enfrentar os conflitos típicos - ou melhor, atípicos - de terem se tornado mulheres da vida pública - termo eufemístico que designava até pouco tempo a profissão das prostitutas - sem por isso abrir mão de seu destino ancestral: de esposas e mães. Conflitos que se abrem em várias frentes: com os companheiros de vida amorosa que, apesar de solidários, ressentem-se freqüentemente da falta de disponibilidade das esposas, manifestam ciúmes e insegurança diante da súbita projeção daquelas que durante os primeiros anos de casamento tinham sido mulheres mais ou menos "normais", e demoram para encontrar um lugar que lhes pareça digno de um homem, ao lado de esposa mais poderosa que eles. A outra frente de batalha são os filhos, que disputam cada segundo do tempo disponível das mães e sempre querem mais - com toda razão, aliás, do ponto de vista de seus interesses infanto-juvenis. Por fim, há as situações difíceis próprias dos embates políticos, das duras conquistas de espaço e de autoridade junto aos subordinados e aos companheiros de projeto político que nem sempre se conformam em ter que obedecer ordens e determinações de uma mulher.

Se todo casamento comporta - e é alimentado por - sua dose de competição, a situação pode se agravar quando a mulher se vê na posição de vencedora, ocupando um lugar de mais destaque que seu companheiro. Retaliações sutis, como ir beber com os amigos no dia em que a esposa tem que participar de alguma cerimônia oficial, ou pesadas, como flertar abertamente com mocinhas mais parecidas com um modelo feminino tradicional, tudo pode ameaçar a estabilidade emocional dessas mulheres que são unânimes em admitir: sem o apoio efetivo de seus companheiros é praticamente impossível uma mulher se manter no poder, a não ser que resolva pagar o preço da solidão e da auto-suficiência. Mas isto elas não estão dispostas a fazer.

As experiências mais tranquilas me parecem ser as de mulheres cujos companheiros fizeram carreiras em áreas diferentes, sentindo-se seguros em suas profissões sem precisar disputar qualquer espaço com elas. Nestes casos, a figura do marido solidário, "feminista" nas palavras de Eva Blay ("meu marido é feminista até antes de mim, meu feminismo vem da relação com ele") e orgulhoso das conquistas da esposa aparece com mais nitidez.

Dezembro de 1992, final da gestão Olívio Dutra em Porto Alegre. A secretária Esther Grossi tinha acabado de coordenar um seminário gigante para educadores de todo o Brasil, com a presença de conferencistas brasileiros e estrangeiros, mais de 2 mil inscritos em uma semana de debates intensos e trabalho em tempo integral. Sucesso absoluto. Na última noite, toda a equipe de Esther na Secretaria de Educação comemorava o encerramento do seminário em uma churrascaria: umas vinte mulheres para um ou dois colegas homens. De repente, no meio da animação geral, entrou um senhor muito sóbrio, cabelos brancos, camisa social e gravata, e aproximou-se da mesa. "Meu namorado!", gritou Esther - cabelos ruivos, blusa vermelha, saia de couro preta, meias estilo arrastão, saltos altíssimos, brincos e colares enormes - e pulou no pescoço do distinto cavalheiro. Era o marido, o pediatra Sergio Pillar Grossi, chefe do Serviço de Neonatologia da Santa Casa de Misericórdia de Porto Alegre, grande amigo e incentivador da carreira política da esposa a uma confortável distância de qualquer disputa com ela. "A nossa relação se enriquece sempre com a variedade, a intensidade e a produtividade de nossos engajamentos. Uma atuação tão apaixonante como a de ser secretária de Educação de Porto Alegre nos aproximou muito, pois tanto marido como filhos me avaliam como exitosa na empreitada e estiveram muito próximos no momento em que o atual prefeito me preteriu para o seu mandato".

Do mesmo modo, Marilena Chaui se mostra grata ao companheiro de seu segundo casamento há dezesseis anos: "Meu marido apoiou, sustentou, ajudou de todas as maneiras, meu trabalho na política administrativa (...) Ele é norte-americano da “geração 68', portanto combatente de primeira hora pelo feminismo, pela liberdade feminina, pela plena realização da mulher nas lutas sociais e políticas; é historiador de esquerda, comprometido com as lutas contra as ideologias, não abre mão da necessidade do PT ter um lugar de destaque na política brasileira. Consequência: meu sucesso político era o sucesso político dele e de tudo aquilo em que ele acredita. A barra com ele pesa ao contrário do que se imagina. Por ele, eu deveria ter levado com bom humor, serenidade, crítica e intransigência o trabalho que realizei. A zanga (dele) vinha de eu transformar em tragédia grega o que não tinha tal dimensão. A barra pesou quando eu não fui capaz da insustentável leveza do ser ao fazer política". O marido de Marilena, historiador do anarquismo italiano em São Paulo, apóia e não compete. Compartilha suas idéias e valores, mas atua em espaço próprio.

Mais confusa é a situação das mulheres que se casaram com companheiros de militância e, por casualidade e/ou maior espírito de liderança, se viram ocupando posições de maior destaque do que seus maridos. O marido de Angela é físico e vice-presidente do PT de São José dos Campos, mas trabalha consertando bicicletas numa oficina própria. Sempre gostou de política e, ao contrário dela, que não pensava em disputar cargos eletivos, foi candidato a vereador na cidade por duas vezes. O fato é que quem acabou se elegendo foi ela, e para um cargo mais alto, o de prefeita da cidade. Ciúme existe, sim. "Tem algumas situações desagradáveis, como quando eu tenho que compor uma mesa e ele, mesmo presente, fica à distância. Outras vezes é engraçado: fomos convidados a jantar, eu como prefeita e ele como meu marido, na casa do brigadeiro-comandante do CTA. Lá, a autoridade era eu, mas tive que ficar no grupo das esposas dos militares conversando sobre cozinha e empregadas enquanto ele foi levado para junto dos oficiais presentes..." O marido de Angela disputa seu tempo com os encargos da prefeitura e com os próprios filhos, que também exigem a presença da mãe "antiga" que, no momento, não existe mais. "Eu sempre servia os três antes de mim no almoço e jantar. Da primeira vez que, já prefeita, fiz meu prato primeiro porque tinha que almoçar correndo, foi um choque geral! (...) Quando chego em casa exausta ou abatida com os problemas da prefeitura e não quero nem conversar é motivo de descontentamento, já que eu não quero ficar junto dele ou então vem a dúvida sobre o meu amor, o ciúme..."

Maria Luiza Fontenele foi casada duas vezes e, atualmente, mantém uma nova relação com o presidente do Sindicato dos Metalúrgicos do Ceará. Fala mais da relação com o segundo marido, que começou quando ela já exercia seu primeiro mandato como deputada estadual: "a barra pesava, e como pesava, sempre que a atividade parlamentar exigia minha presença fora do lar nos horários ditos inconvenientes. Também era difícil o fato de termos nossa casa sempre aberta às presenças e solicitações de tantas pessoas que me procuravam, o que atingiu sobremaneira a privacidade do casal". Mas a barra mais pesada enfrentada por Maria Luiza foi externa ao casamento: sempre amiga do primeiro marido e mesmo da segunda esposa dele, chegou a indicar o primeiro e o segundo companheiros como seus auxiliares na administração municipal. "Aí eu senti a barra do machismo, que visa atingir as mulheres na sua sexualidade. Fui chamada de 'Dona Flor e seus dois maridos' e difamada nacionalmente. Um dos aspectos mais difíceis da pressão sofrida por uma mulher que alcança o poder é este, que procura nos descaracterizar como pessoas humanas, reduzindo-nos a fêmeas portadoras do pecado capital. Neste sentido somos reduzidas a duas imagens: de puta ou de sapatão. Fugir da primeira e não cair irremediavelmente na outra, é este o trapézio em que se equilibram as mulheres nas esferas do poder e no esforço de desenvolver e criar um modelo de poder feminino".

Telma de Souza conheceu seu segundo e atual marido, Alberto Leite Vieira, hoje coordenador administrativo do gabinete do prefeito de Santos, David Capistrano, durante sua campanha para deputada estadual em 1986. "Eu tive sorte de me enamorar de alguém que entendeu, naquele momento, que teria que ser o continente da minha situação; mas apesar dessa consciência por parte dele, não foi fácil." Telma consegue falar com clareza da difícil situação do homem diante de uma mulher que ocupa o poder. De um lado, não é bem um papel tipicamente masculino este, de se tornar continente das angústias e fragilidades da mulher em ascensão política. De outro, o poder também torna a mulher mais desejável, mais interessante: "o Alberto foi meu maior incentivador; é como se, sem essa minha luta, eu também não fosse a mulher que ele quer."

Quer, mas não quer. "Eu sinto que para o Zé Osvaldo é complicada a questão da identidade pessoal. É como se ele tivesse deixado de ser o Zé Osvaldo para se tornar o marido da prefeita", diz Maria do Carmo. Uma situação que as mulheres vivem sem nem se dar conta - educadas que fomos há tantas gerações para nos realizarmos sendo a Sra. Fulano de Tal - mas que fragiliza os homens quando se inverte. "Nessas horas, as ‘outras' mulheres, que correspondem a um estereótipo feminino mais tradicional, aparecem como ameaças avassaladoras", comenta Telma, que decidiu enfrentar essa "ameaça", real ou imaginária, lutando com as armas das adversárias: "resolvi resgatar, resgatar não, criar, já que nunca tinha sido assim antes - esta feminilidade que eu achei que ele queria. Por amor. E deu certo! Hoje, quanto mais eu me embrenho no mundo masculino, mais eu fortaleço minha feminilidade".

Resgatar a feminilidade e fortalecer o papel do companheiro, foram as providências tomadas por Telma de Souza. "Ele nunca aceitou o papel do ‘primeiro-damo', então tornou-se funcionário da direção estadual contratado pelo PT, e foi trabalhar na prefeitura fazendo minha agenda. Assim, o Alberto se apropriou do meu tempo e ao mesmo tempo conseguiu me proteger de outros homens que tentavam me vampirizar, me paternalizar, açambarcar minha vida como se eu não fosse capaz de exercer meu mandato. Descobri que para uma mulher dar certo, o homem dela tem que estar próximo politicamente, e ter algum poder real. Primeiro, para os outros homens saberem que aquela ‘fêmea' não está disponível; segundo, para que todos saibam que aquele homem não está desqualificado".

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Existe um comando doce?

"Às vezes eu me sinto muito frágil, incapaz de tomar decisões. Não sei se pela inexperiência ou por ser muito mais cobrada. A mulher não pode fraquejar nunca, para não perder a autoridade. Com frequência, tenho é vontade de chorar" (Angela). "Às vezes eu tenho a sensação de que o poder vai me abafar, que vou deixar de ser mulher para ser o Poder. Como se eu não tivesse mais permissão de sentir, ter dor, ter tristeza... No espaço de trabalho eu vejo a tentativa de negação das possibilidades da mulher. Nem sempre é consciente essa tentativa dos homens de indicar a direção, coordenar meu trabalho. Eu sinto que o mundo político é o mundo dos homens (...) Na esquerda prega-se a convivência em pé de igualdade, mas a gente sente que tem que haver uma mudança enorme por parte dos homens" (Maria do Carmo). "Estamos a todo o momento experimentando a necessidade de sermos supermulheres no sentido de enfrentar desafios, fazer tudo melhor que os homens e não falharmos nunca. Isto cria uma situação estressante e força o desenvolvimento da nossa sedução. Mas não a sedução típica do macho, que leva à dominação; aquela que cria laços de solidariedade e o desejo de partilhar com os outros as conquistas alcançadas ou o enfrentamento dos momentos difíceis" (Maria Luiza).

De um lado, a necessidade de dar provas a mais de sua competência leva essas mulheres a darem o melhor de si mas também pode levá-las, como confessa Angela, à beira das lágrimas. De outro, força o desenvolvimento de uma nova modalidade da astúcia feminina; o jeitinho, a sedução, o charme como maneiras de conquistar espaço numa "terra de Marlboro". "Quanto ao papel da mulher no equilíbrio da subjetividade pessoal e retorno a espaços de intimidade, creio que minha experiência no Secretariado Municipal foi a fatia mais difícil. A política é uma área esterilizada da subjetividade, ou que a empobrece e empobrece seus efeitos", reflete Esther Grossi, que desenvolveu algumas táticas de conquista tipicamente maternais durante sua gestão: "Durante quatro anos de meu mandato o secretariado se reunia semanalmente com o prefeito. Caracterizei-me, então, por trazer algo para comer e beber, como forma de socialização, e para comemorar episódios significativos da nossa atuação. Esta função materna só foi exercida por mim, embora fosse apreciadíssima por todos e até cobrada (...) É significativo o fato de que um dos pratos que eu fazia para a reunião do Secretariado era uma torta de merengues sustentada por um creme de gemas e salpicada de chocolate, isto é, alimento com muito açúcar e cuja matéria-prima é a semente de vida de uma espécie animal..."

Com açúcar, com afeto: será esta a maneira de conciliar feminilidade e exercício de poder? "Não dá para conciliar. Você se flagra fazendo coisas abomináveis, usando todo o convencionalismo da feminilidade para persuadir e convencerem lugar de fazer com que a força das idéias, o valor da prática e dos projetos falem por si mesmos", afirma Marilena Chaui que, assim como Maria do Carmo, percebe um machismo inconsciente entre os companheiros de vida política. "O desrespeito machista existe entre os companheiros políticos e de trabalho; mas o que é terrível é que é inconsciente e sem má intenção (...) Já na Câmara Municipal... Já com os empresários... Observei que o machismo agressivo instala-se sobretudo na baixa classe média, nos executivos, nos políticos de direita e de extrema-direita. É grossura pura. O machismo inconsciente se instala entre os trabalhadores (homens e mulheres), os intelectuais (idem), os companheiros políticos. Muitas vezes, para desarmar um machista, eu dizia: ‘vamos falar de igual para igual, isto é, de homem para homem, assim você não fica em desvantagem, não é mesmo?'. O interlocutor levava uns bons minutos para perceber a agressão e o puxão de orelha. Outras vezes eu dizia: ‘dando por estabelecido que você gosta da minha voz, do meu vestido, do meu corte de cabelo, das minhas mãos e imagina o resto, vamos ao assunto que interessa'. Ou então: ‘como Deus é mulher e negra, vamos dar de barato que Ela está do meu lado e entremos no assunto'. Em suma, desarmar pelo humor foi uma saída que inventei".

Sem dúvida as soluções estão sendo inventadas por estas e outras mulheres que vivem na corda bamba entre o amor e o poder. As dúvidas, no entanto, se multiplicam sempre mais do que as soluções. "Não dá para fazer bem meu trabalho político se eu mesma não estiver inteira como ser humano" (Telma). E para estar inteira como ser humano, ela sente que precisa estar feliz no amor. "Não é que ele não me queira no comando. Mas quanto mais doçura eu souber empregar no comando, melhor ele me quer. Eu diria que comandar com doçura, esta é a tradição do feminino".

Parece simples, mas não é, pois logo em seguida a própria Telma pergunta: "afinal que diabo é esse tal de feminino? Saber ocupar o poder sem ser fálica, deve ser isso". E termina sua entrevista com nova expressão de perplexidade: "Aliás, é possível a uma mulher membro ter poder sem se tornar fálica?"

Maria Rita Kehl é membro do Conselho de Redação de Teoria e Debate.

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