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Entre os dias 3 e 17 de setembro, a segunda Caravana da Cidadania percorreu municípios de quatro estados - Acre, Rondônia, Mato Grosso e Mato Grosso do Sul - testemunhando e debatendo problemas de contingentes de nossa população que vivem nas florestas e confins das fronteiras, lá onde o Brasil acaba. Paulo Roberto Ferreira acompanhou todo o roteiro e enviou para a Teoria e Debate o material desta reportagem, cujo texto foi escrito por Mouzar Benedito e Emílio Alonso

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"A Caravana da Cidadania tem por objetivo aumentar o grau de consciência da população sobre seus direitos. Nós queremos conclamar a população para esta marcha. Queremos transformar as questões locais em questões nacionais. Queremos fazer uma radiografia do Brasil."Lula

A segunda Caravana da Cidadania percorreu 4.900 quilômetros de terra e asfalto, passando em vários municípios entre o Acre e o Mato Grosso do Sul. Foram quinze dias de viagem (de 3 a 17 de setembro - veja roteiro) em que seus integrantes conheceram o isolamento dos povos da floresta, o desperdício dos grandes projetos oficiais e as formas de resistência das comunidades locais para sobreviver diante da omissão das autoridades. Testemunharam os índios vendendo suas madeiras, arrendando suas terras e até mendigando. Viram a destruição do meio ambiente, receberam denúncias de trabalho escravo e conheceram a luta dos trabalhadores rurais sem-terra.

Assis Brasil fica na divisa do Acre com a Bolívia e o Peru. Com 2,5 mil habitantes, distante 342 quilômetros da capital, Rio Branco, e 236 quilômetros de Porto Maldonado, no Peru, é o ponto extremo da segunda Caravana da Cidadania. Quem supõe que esta região é um abandono tem toda razão. O Acre, conquistado para o Brasil pelos seringueiros liderados pelo gaúcho Plácido de Castro (que acabou assassinado pela Polícia Militar do Amazonas - estado ao qual o Acre foi anexado no início), sofre todo o tipo de carência, além do descaso do governo federal.

A cidade é um exemplo da entrega das nossas matas à sanha dos devastadores. Tanto que um dos quatro bimotores que levaram os integrantes da Caravana de Rio Branco a Assis Brasil perdeu-se, segundo alguns, devido à fumaça das queimadas. São florestas virando cinzas, cedendo lugar à pecuária, tirando a base de trabalho e interferindo diretamente no modo de vida de seringueiros, castanheiros e outros trabalhadores que convivem harmonicamente com a mata, para transformar tudo em pasto cercado por arame farpado e pouca gente cuidando do gado dos grandes proprietários, muitas vezes residentes no Sul ou Sudeste. Não se perdem apenas empregos: espécies vegetais vão desaparecendo. Grande parte poderia solucionar a cura de diversas doenças, mas se transformam em cinzas antes que suas propriedades sejam conhecidas. Para completar, sem a floresta protetora, os rios secam.

"O governo federal tem sido incompetente para tratar da saúde. Nós precisamos de médico e de hospital, mas, acima de tudo, de saneamento básico e de alimentos para a população. Precisamos eliminar a fome e a falta de saneamento. No dia que o trabalhador tiver café, almoço e janta, sua saúde melhora." Lula

O prefeito de Assis Brasil, Humberto Mesquita, é do PFL, mas como a Caravana não era propriedade do PT, era da cidadania, ele foi receber Lula no aeroporto. Lula conversou com a população, procurou conhecer seus problemas e verificou que a saúde é talvez o mais grave. A região apresenta índices alarmantes de doenças como malária, hepatite e cólera e tem uma infra-estrutura no setor de saúde muito precária. Agentes comunitários de saúde, em setembro, tinham recebido apenas os salários de março.

Os seringueiros, por sua vez, vivem no abandono, apesar da glória da conquista do Acre no final do século passado e início deste. Chamados por Getúlio Vargas de "exército da borracha", chegaram a abastecer os países aliados durante a Segunda Guerra Mundial, quando os seringais da Indochina foram tomados pelos japoneses. Hoje, são obrigados a trocar látex por comida.

Trabalhadores do Peru também fizeram suas reivindicações: uma delegação do departamento peruano de Madre de Diós encontrou-se com Lula para pedir que interceda junto ao governo federal para a construção da rodovia (BR-317) ligando o Acre ao Oceano Pacífico.

Mas este é um tema polêmico, que passa por questões essenciais como a ecologia - já que as estradas no Brasil têm servido, entre outras coisas, de caminho para a devastação, a especulação imobiliária e a tomada da terra dos pequenos agricultores por grileiros.

Para Lula, no entanto, antes de ligar o Acre ao Japão (via Oceano Pacífico), é preciso respeitar a soberania da Bolívia e do Peru. Além disso, ele acredita que as autoridades têm a obrigação de lutar para que a rodovia mereça o nome de "BR", pois o trecho entre Brasiléia e Assis Brasil (já construído) não passa de um caminho de terra batida e intransitável, principalmente no período do "inverno" amazônico, época de maior quantidade de chuvas. Para ele, é preciso também assegurar o caráter social da ligação do Brasil ao Pacífico, via Acre: "não interessa construir estradas só para os caminhos da soja. É preciso fazer reforma agrária, incentivar as reservas extrativistas e assegurar dignidade e cidadania para os pequenos produtores".

Com 63 anos, Francisca Maria da Silva, moradora do castanhal São Vicente, nunca tinha visto um carro. Seu depoimento, assim como o de Osmarino Amâncio, um dos líderes dos seringueiros que sucederam Chico Mendes, emocionou os participantes da Caravana em Brasiléia. A cidade fica às margens da BR-317, a 230 quilômetros de Rio Branco, onde foi realizado um dos maiores atos públicos dessa viagem, com cerca de 3 mil pessoas. Até uma delegação de trabalhadores da cidade vizinha de Cobija, do lado boliviano, participou do ato público.

Francisca percorre a mata a pé, pelos "varadouros" ou "varações", nome que os seringueiros dão aos caminhos, para chegar ao povoado mais próximo de sua moradia. Em muitos desses lugares não há dinheiro e prevalece o escambo. Os "preços" para os trabalhadores são extremamente altos. Na troca, suas mercadorias sempre valem menos do que as de fora.

Lista de "preços" de mercadorias nos seringais do Rio Iaco:
produtos

preço em quilos
de borracha

1 Kg de açúcar

3

1 Kg de sal 1
1 lata de óleo 4
1 terçado 10
1 Kg de café em grão 8
1 lata de querosene 4
1 lata de leite em pó 10
1 pacote de sabão 2
1 calça 80
1 camisa 40
1 short 20
1 bota 40
1 sandália 8
1 isqueiro 4
1 balde 30
1 bacia 8
Obs.: em um dia de trabalho, o seringueiro colhe látex suficiente para produzir 6 a 8 quilos de borracha.

Osmarino, por sua vez, contou a Lula sobre o processo de expulsão dos seringueiros brasileiros para a Bolívia, que não se restringe à violência direta. A derrubada das matas já fez com que cerca de 14 mil brasileiros imigrassem para os seringais bolivianos.

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"A agricultura é uma das molas de desenvolvimento do país. Então, nós precisamos de uma inversão de valores no comportamento das autoridades. A terra tem que ter finalidade social. O que não pode existir é gente com dois milhões de hectares de terra e milhares de pessoas passando fome e acampadas na beira das estradas."Lula

A estrada de Brasiléia a Xapuri, terra de Chico Mendes, apresenta uma imagem desconcertante: um verdadeiro cemitério de castanheiras e seringueiras. O arame farpado delimita as fazendas. As árvores foram substituídas por capim, e gente por gado.

No seringal Cachoeira, Lula percorreu uma "varação" para conhecer o trabalho dos companheiros de Chico Mendes. Verificou como eles sulcam a seringueira, colocam a tigela e onde coletam o látex. Depois de caminhar seis a sete quilômetros em um dia, eles retornam colhendo o fruto do seu trabalho. Durante a caminhada, os membros da caravana foram ouvindo explicações sobre o uso de determinados vegetais na medicina caseira. Nilson Mendes, primo de Chico Mendes, disse que os seringueiros de Cachoeira já não trabalham só com o látex e a castanha. Estão replantando diversas espécies vegetais da floresta, com uma nova visão da atividade extrativa.

Atanagildo de Deus Matos, conhecido como Gatão, coordenador do Conselho Nacional dos Seringueiros, explicou que as reservas extrativistas na Amazônia são alternativas de desenvolvimento sustentado, ou seja, de uso econômico da área sem devastar a floresta. A partir dos conhecimentos técnicos acumulados pelas populações locais, com o aprofundamento do conhecimento científico voltado para este fim, o patrimônio é preservado e potencializado.

Atanagildo entregou a Lula uma carta denunciando os conflitos de terra, a violência contra as lideranças sindicais no campo, a destruição das florestas e a degradação ambiental, além da falta de política governamental voltada para o atendimento da população local.

O Conselho Nacional dos Seringueiros também produziu o documento "Diretrizes para um Programa de Reservas Extrativistas na Amazônia", que foi entregue ao presidente do PT. De acordo com o documento, a floresta amazônica tem um número enorme de produtos que podem ser comercializados além da madeira, como a castanha e o látex. Uma avaliação inicial indicou que existem 350 produtos da floresta com potencial de comercialização, sendo que 21 já são comercializados por setenta empresas. Só na área da farmácia, calcula-se que é possível aumentar em 30% a oferta de remédios no mercado mundial. Os laboratórios internacionais sabem disso e já levaram muitas plantas da Amazônia para serem processadas em suas indústrias. A intenção dos laboratórios é de patentear os remédios e, posteriormente, vender ao Brasil a patente de nossos vegetais, com tecnologia desenvolvida a partir do conhecimento do homem da Amazônia.

Em Cachoeira, a caravana visitou uma mini-usina de beneficiamento de castanha-do-pará. Criada em 1988, por inspiração de Chico Mendes, ela tem 350 cooperados e exporta 150 toneladas/ano para os Estados Unidos. A cooperativa já criou 60 empregos diretos e 80 indiretos. Seu faturamento anual é de 120 mil dólares. É a única "indústria" de Xapuri e gera 30 mil dólares anuais de ICMS para o município

"A agricultura é uma das formas de evitar o êxodo rural. É o desenvolvimento que tem o retorno mais rápido e que evita que milhares de pessoas tenham que migrar para a periferia das grandes cidades. Além da agricultura, temos que investir na indústria de bens de consumo duráveis e na construção civil para melhorar as condições de vida do nosso povo". Lula

Se para os seringueiros não há crédito nos bancos oficiais e nenhuma ajuda governamental, os grandes capitalistas não podem reclamar. Para eles os cofres públicos vivem abertos. É o que se pôde constatar em Senador Guiomard. Nesse município, 35 milhões de dólares foram desperdiçados pela Sudam (Superintendência do Desenvolvimento da Amazônia) e pelo Banco do Brasil, em apoio a um projeto da empresa Alcobrás, que tinha como objetivo produzir álcool suficiente para o abastecimento do Acre e de Rondônia. Só que a empresa funcionou quinze dias e fechou suas portas. O dono, José Alves Pereira Neto, desapareceu. Ficaram no local 44 caminhões, doze ônibus, uma destilaria, três casas de funcionários, 5 mil hectares (de um total de 11 mil) desmatados, quatro dos quais com plantação de cana tomada pelo mato.

O prefeito de Rio Branco, Jorge Viana (PT), afirmou que o que foi gasto representa duas vezes o orçamento anual da prefeitura. Para ele "é uma tristeza ver enferrujando ali máquinas que a prefeitura precisa e não tem". Há exemplos semelhantes por toda a Amazônia. Muitos empresários usam os incentivos fiscais para fugir do Imposto de Renda e para aplicá-los em outros negócios fora do controle do governo.

"Não conheço povo que tenha melhorado de vida sem melhorar a educação. Precisamos de pesquisa e tecnologia próprias. A elite, que é responsável pelo fracasso de nossa economia, não tem interesse em uma boa educação para o povo. O dia que o povo tiver comida e educação, vai dar uma banana para a elite". Lula

Em Rio Branco, à noite, na véspera das comemorações do 7 de setembro, Lula foi homenageado por crianças, num ato público frente à prefeitura.

"Não haverá cidadania enquanto não houver reforma agrária. Não haverá cidadania enquanto houver matança de índios. Não haverá cidadania enquanto não houver moradia, lazer e educação. Cidadania é vida", repetiam as crianças que entregaram ao presidente do PT uma bandeira do Acre e dois objetos simbólicos: uma flecha e uma poronga - lanterna que os seringueiros usam presa à cabeça em seus trajetos na mata.

Lula respondeu a diversas perguntas sobre questões nacionais e ouviu denúncias sobre questões locais. Em seguida, disse que um dos objetivos da caravana é tirar do anonimato as cidades e vilas esquecidas no Brasil. "Queremos mostrar que o Acre existe, que na Amazônia vivem 17 milhões de brasileiros, e que a reforma agrária não é coisa do demônio. Coisa do demônio é o senhor Pedro Couto ser dono de dois milhões de hectares de terra no Acre", concluiu entre aplausos.

Os que se queixam que os índios têm muita terra, nunca reclamam que os latifundiários têm, proporcionalmente, muito mais. Lembram-se sempre que os Ianomâmi, por exemplo, são apenas 10 mil pessoas que ocupam uma área equivalente à de Portugal. Pedro Couto, no entanto, possui sozinho uma área equivalente a do estado de Sergipe. Como ele, existem outros grandes latifundiários na região.

Dia da Independência, 7 de setembro. A Caravana da Cidadania chega a um lugar no mínimo contraditório: cobiçado e rejeitado ao mesmo tempo. Uma faixa de terra junto à BR-364, disputada pelo Acre e por Rondônia, e que portanto deveria ser muito bem tratada pelos dois governos. Mas, o que ocorre não é bem isso. Segundo as queixas comuns na localidade de Extrema, os dois governos não fazem nada pelo lugar, esperando uma decisão do Supremo Tribunal Federal. Depois disso, bem... haverá, pelo menos, um governo responsável por aquilo que não faz.

Em Nova Califórnia, ainda em 7 de setembro, a Caravana chegou ao Projeto Reca - Reflorestamento Econômico Consorciado e Adensado. Numa área de 560 hectares, 268 famílias estão plantando frutas da região (castanha, pupunha e cupuaçu) sem nenhuma ajuda oficial. A maioria desses agricultores veio do Sul do país, com a esperança de produzir café e cacau. Mas dois fatores atrapalharam: o clima e a falta de financiamento.

Algumas famílias tinham planos de abandonar as terras, mas acabaram recebendo apoio de dom Moacir Grecchi, bispo de Rio Branco, e da Cebemo, uma ONG (Organização Não-Governamental) holandesa. Assim, as culturas começaram a produzir e os trabalhadores passaram a comercializar as frutas da Amazônia no mercado nacional, com perspectivas de exportação.

Segundo Sérgio Roberto Lopes, um dos coordenadores do projeto, o mais importante é que eles aprenderam a conviver com a floresta, abandonando a idéia da monocultura. "É uma terra que a gente sabe que nunca mais vai ser queimada", afirmou.

"Na época do Império, os senhores tinham mais consideração com os negros do que esses senhores de escravos de hoje. Os negros eram vistos como a máquina que movia o engenho, então os senhores precisavam deles. Mas hoje, pouco importa. Se o trabalhador morrer, há um exército de desempregados querendo seu lugar".  Lula

O contato com os índios foi uma constante durante a Caravana. Em Xapuri, Álvaro Tucano pediu a demarcação e a garantia das reservas indígenas, citando o massacre dos Ianomâmi como exemplo da cobiça dos brancos.

Em Abunã, primeira cidade de Rondônia para quem vem do Acre, índios Karitiana, Tenharim e Amondawa entregaram um documento a Lula, pedindo empenho na defesa de diversas questões, incluindo a demarcação das terras indígenas e a garantia de posse das áreas já demarcadas (a simples demarcação não impede o avanço dos "civilizados" contra elas).

Das 27 áreas indígenas existentes em Rondônia, dez estão regularizadas, seis demarcadas, duas identificadas e nove sem qualquer providência.

Em Riozinho, índios Suruí e Cinta Larga reclamaram da Funai (Fundação Nacional do Índio), afirmando que estão sem assistência médica, sem escola e que por isso, são obrigados a vender as madeiras de suas terras. Em Comodoro, Mato Grosso, índios Nhambiquara participaram do ato público.No Mato Grosso do Sul, uma parada em Nova Alvorada do Sul, cidade que surgiu em torno de uma usina de álcool, foi denunciada a utilização de mão-de-obra indígena em regime de semi-escravidão. Em todo o Estado, denúncias de trabalho escravo, não só de índios.

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Os índios Terena, Guarani e Caiowáa, que vivem numa reserva no município de Dourados, afirmaram que a Funai foi responsável por grande parte da devastação dessa área. São 9 mil pessoas numa reserva de 3.600 hectares, que em 1950 ainda era floresta com o ecossistema preservado, contendo muita caça e peixes. Segundo os índios, a Funai fez contratos com madeireiras para a exploração de madeiras nobres como o cedro, a peroba, o angelim e a arueira. Assim, a terra foi ficando "careca". Parte da reserva foi arrendada a fazendeiros, e os índios submetidos ao trabalho semi-escravo na destilaria de álcool ou condenados a viver de esmolas nas ruas da cidade. Alguns passaram a sobreviver da venda de artesanato na beira da estrada.

Além dessa condição subumana, há muita doença entre os índios e há dois anos não são enviados remédios à região, segundo o enfermeiro da reserva, Ivo de Souza, irmão do líder indígena Marçal de Souza, assassinado a mando de fazendeiros em 1983. Outra grande preocupação é o elevado índice de suicídios. Há 118 casos registrados. De acordo com os antropólogos, o suicídio é para os índios dessa região a resposta à perda de identidade, à falta de perspectiva e de alternativa.

A chegada de Lula trouxe para os índios alegria e dúvidas. Eles também foram vítimas de baixarias tramadas pela turma do Collor nas eleições presidenciais. Rubens Mamede, que levou Collor à reserva em 1989, quis saber de Lula se era verdade que ele pretendia fazer reforma agrária nas terras dos índios. Em resposta, Lula disse que "terra de índio é para ser demarcada e respeitada". Mamede ainda quis saber se o presidente do PT iria governar "igual a Fidel Castro", e como Lula "arranja" dinheiro para percorrer o país se os trabalhadores estão em miséria.

Dos 9 mil índios, 2 mil são eleitores e, segundo Mamede, 99% votaram em Collor. Mas quando o próprio Mamede foi a Brasília, o então presidente Fernando Collor recusou-se a recebê-lo, porque ele estava sem terno e gravata.

Lula também visitou a escola da reserva e foi recebido pelo diretor com uma saudação em português e guarani.

As crianças cantaram e os Caiowáa dançaram e entregaram um cocar ao líder petista. Ivo de Souza aproveitou para manifestar o descontentamento dos índios em relação aos brancos: "primeiro levaram nossa madeira, destruíram nossas florestas, nossas caças. Agora estão destruindo nossas crianças. Os índios viram mendigos. Só falta acabar com os índios".

"Em 89 fui vítima de leviandade. Diziam que eu ia comer criancinhas, que eu não acreditava em Deus. O verdadeiro cristão não tem que usar o nome de Deus em vão. Não tem que dar satisfação de sua religiosidade para os inimigos políticos. Minha relação com Deus, só a ele eu devo prestar contas". Lula

O contato com as lideranças religiosas, não apenas as católicas, também marcaram o percurso da Caravana. Em Porto Velho, por exemplo, os evangélicos chegaram ao desabafo e à autocrítica. Mostraram o desapontamento com os parlamentares eleitos com o apoio de suas igrejas, dizendo que "a maioria não presta conta de suas atividades". Em 1989, a partir da campanha difamatória contra o PT, que os convenceu que se Lula fosse eleito, as igrejas evangélicas seriam fechadas, acabaram optando pela candidatura Collor.

Em Ariquemes, além da denúncia de ameaças do fazendeiro Sinval Lucena Guedes, com o apoio do deputado estadual Orindo Coelho (PFL) contra 600 famílias de lavradores da fazenda Dorban, município de Campos Novos, as lideranças dos trabalhadores rurais expuseram sua grande preocupação com a entrada de cocaína boliviana através de Rondônia, por Guajará-Mirim. Os traficantes usam os trabalhadores como "mulas" (transportadores da droga).

Há um verdadeiro poder paralelo ao Estado, e muitos trabalhadores se submetem a ele voluntariamente, por falta de opção de trabalho. Um padre disse que já ouviu trabalhador afirmar que ganha em um mês, transportando cocaína, o que não ganharia em dois anos trabalhando como lavrador.

Mas não é só voluntariamente que os trabalhadores acabam entrando na rota do tráfico de cocaína. Muitas vezes eles são ameaçados, como é o caso de um mecânico de Ariquemes que corria risco de vida e estava de mudança para São Paulo, porque se recusava a traficar.

Em Cacoal, terra do ex-deputado federal Jabes Rabelo, afirma-se que há pelo menos duas mil pessoas ligadas ao tráfico, entre elas vários políticos.

A violência contra os trabalhadores nesta cidade obrigou a Igreja a tomar algumas providências. Em 1985, latifundiários matogrossenses mandaram matar, em Cacoal (RO), um padre que os incomodava: Ezequiel Romins. Em homenagem a ele foi criado, pela diocese de Ji-Paraná (RO), o Projeto Padre Ezequiel. Com ajuda da Igreja Católica alemã, mais de cem comunidades estão sendo financiadas para produzir culturas alimentares em regime de mutirão. Uma bolsa foi montada pelos próprios trabalhadores rurais, conseguindo, assim, quebrar o domínio dos atravessadores e obtendo maiores lucros com a venda do arroz, do cacau e do café.

As irmãs que trabalham no Projeto desenvolveram também a produção de remédios a partir de ervas e 18 pequenas farmácias já foram montadas nas comunidades rurais próximas.

"Cidadania é o direito à educação, à saúde, ao lazer. O direito de versou filho dormir com a barriga cheia. Não podemos conviver com 32 milhões de pessoas passando fome. É uma população Igual à da Argentina. A campanha contra a fome é uma questão política neste país, porque a fome leva à submissão das pessoas." Lula

Em Mato Grosso, rumo a Comodoro, a visita à fazenda de Vítor Candelori, um médio produtor de arroz, mais um exemplo de desperdício e de políticas erradas em relação à produção e ao abastecimento.

O próprio fazendeiro foi pedir ajuda aos membros da Caravana, mostrando seu armazém, com 18 mil toneladas de arroz estragando. A safra foi financiada pelo Banco do Brasil, que não aparece para retirar o arroz. Como "fiel depositário" (encarregado da guarda do produto) ele vai ter que pagar pela quebra de peso. Lula lamentou o destino dessa quantidade de alimento, "em plena campanha contra a fome o governo permite tanto desperdício".

Mesmo com todo esse arroz estragando, um pacote de cinco quilos estava sendo vendido na cidade por CR$ 400,00, enquanto em Uberlândia (MG), o arroz que chega de Comodoro é vendido por CR$ 199,00.

"A classe política não consegue pensar o Brasil a longo prazo. Temos que pensar num projeto de 15 ou 20 anos para o Brasil. Não podemos pensar o pais só até o final de um mandato. Somente comum plano de desenvolvimento e com metas bem definidas é que vamos colocar o pais nos trilhos". Lula

Em Cáceres, Mato Grosso, Lula participou de um debate com empresários e representantes de entidades civis no Clube Humaitá. Cáceres vive da agricultura, da pecuária e da ZPE (Zona de Processamento de Exportação). No encontro, os empresários reivindicaram a utilização dos rios Paraguai e Paraná nas relações comerciais com os países do Mercosul. Querem também a ligação do Brasil com o Pacífico (via Bolívia e Chile) a partir de Cáceres.

Em Rondonópolis, também no Mato Grosso, Lula participou de outro debate com produtores de soja. Eles afirmaram que a produtividade do município (2.500 quilos por hectare) está muito acima da média nacional. José Graziano, falando em nome do grupo de Política Agrária e Agrícola do PT, disse que um programa de combate à fome passa também pelo incentivo à soja, acrescentando que a agricultura brasileira está voltada para o mercado externo por falta de um mercado interno. Lula, por sua vez, disse que "aqueles que tanto defendem que o mercado deve regular a economia, e que defendem um Estado fraco, fracassaram, pois no Brasil, para que o mercado regule a economia é preciso que se crie o mercado". Acrescentou, ainda, que "com mais de 32 milhões de brasileiros passando fome e com dois terços da população com baixo poder aquisitivo não dá para pensar na mão invisível do mercado".

Mouzar Benedito e Emílio Alonso são jornalistas.

Paulo Roberto Ferreira é repórter do programa Olhar Brasileiro<

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A caravana dia-a-dia (de 3 a 17 de setembro)

3 Chegada da Caravana a Rio Branco às 13 horas (horário oficial de Brasília: 15 horas). Lula concede entrevista coletiva à imprensa. No final da tarde, visita à Prefeitura. Jorge Viana (PT), prefeito, faz balanço dos sete meses de administração. À noite jantar com empresários e intelectuais.

4 Viagem em quatro pequenos aviões para Assis Brasil, na divisa com a Bolívia e Peru. O prefeito Humberto Mesquita (PFL) recebe a Caravana no aeroporto. A população denuncia as péssimas condições de saúde e os seringueiros reclamam da falta de preço mínimo para a venda da borracha. A Caravana segue de carro para Brasiléia.

5 Viagem à Xapuri. Na estrada a imagem de imensas fazendas cercadas por arame farpado, onde as castanheiras foram substituídas por capim. A Caravana faz o trajeto de uma "varação" (caminho de seringueiros na mata) e recebe denúncias de violência. Visita a uma miniusina de beneficiamento de castanha-do-pará. À noite, ato público com a presença de seringueiros, índios e outros setores da população.

6 Em Senador Guiomard, visita a uma usina de álcool abandonada. Reunião com militantes do PT. Em Rio Branco, à noite, ato público em frente à Prefeitura. Lula é homenageado por um grupo de crianças.

7 Saída rumo a Rondônia. Passagem por área de conflito de limites entre o governo do Acre e Rondônia. Em Nova Califórnia, visita a um projeto em que 268 famílias plantam frutas da região e, 568 hectares. Em Abunã, Lula é saudado por militantes e simpatizantes do PT. Chegada a Jaci-Paraná, no final da tarde, Índios Karitiana, Tenharin e Amondawa entregam documento pedindo apoio a reivindicações. À noite, Lula dá entrevista coletiva no hotel e depois vai à sede do PT.

8 Encontro com entidades civis pela manhã no hotel. Representante da Comissão Pastoral da Terra denuncia o aumento do latifúndio do estado. Incra é apontado como uma grande empresa de venda de terras e exploração de madeira. Em Porto Velho, o prefeito José Guedes (PSDB - eleito por uma coligação com o PT), recebe a Caravana. Servidores municipais em greve pedem a intermediação de Lula para a reabertura das negociações. Visita à estrada de ferro Madeira-Mamoré (desativada), a um terminal perqueiro e à Usina Hidrelétrica Samuel, que causou grande estrago ecológico e funcionou precariamente. A Caravana visita o Centro de Medicina Tropical e o bairro Tancredo neves, onde 90% dos presentes já haviam contraído malária.

9 Pastores evangélicos se reúnem com Lula e fazem autocrítica do voto em Collor. A Caravana segue para Ariquemes, passando pelo garimpo "Bom Futuro", maior mina de cassiterita a céu aberto e motivo de disputa entre garimpeiros e empresas mineradoras. Ato público com a presença de pequenos agricultores, professores e funcionários públicos. O prefeito Jonatan Roberto (PDT) e a vereadora Geni de Souza (PMDB) saúdam Lula e a Caravana. Lavradores notificam conflitos de posse de terra no município vizinho de Campo Novo.

Denúncas de aliciamento de trabalhadores pelo tráfico de cocaína. De Ariquemes, saída para Jaru, governada pelo PT. Lideranças municipais pedem apoio à luta por pequenas hidrelétricas. A viagem segue para Ouro Preto do Oeste, também governada pelo PT, onde é realizado um grande ato público. Depois segue para Ji-Paraná.

10 Café da manhã com representantes das Igrejas Católica e Evangélica. Visita ao Projeto Padre Ezequiel, de alfabetização e saúde para crianças e adolescentes. Depois de ato público em Ji-Paraná, longa viagem rumo à Cacoal e Vilhena. Em Presidente Médici, Lula é convidado por prefeitos de cinco municípios para conhecer obras abandonadas da ponte sobre o rio Machado. Manifestação aguarda a Caravana na beira da estrada para Cacoal. Índios Suruí e Cinta Larga participam, reivindicando estradas, educação, saúde e energia. Em Pimenta Bueno, o vice-prefeito Aparecido Neves (PFL) declara apoio à candidatura de Lula para a Presidência. Em Vilhena, o prefeito espera a Caravana em palanque.

11 A Caravana chega a Mato Grosso. Em Comodoro, 18 mil toneladas de arroz estragaram em um armazém. Ato público com trabalhadores rurais, professores e índios Nhambiquaras. Ato público também em Pontes e Lacerda. Parada obrigatória em Caramujo, onde agricultores de Cuverlândia aguardam na estrada. Chegada a Cáceres. Debate com empresários de entidades civis.

12 Rumo a Paconé, que vive do garimpo de ouro há 212 anos. O prefeito Euclides Santos (PDT) acompanhou a Caravana até o garimpo, onde trabalham cerca de seis mil homens. Ato público no ginásio de esportes.

Em Várzea Grande, vizinha de Cuiabá, representante da Pastoral da Juventude entrega documento sobre alto índice de Aids e hanseníase na cidade. Denúncias contra o governador: peculato. Em Cuiabá, a Caravana participa de atividades culturais.

13 Visita a uma granja produtora de frangos em Campo Verde. Em Chapada dos Guimarães, ambientalistas denunciam agricultura mecanizada de soja como ameaça ao Pantanal. Visita a horta semi-comunitária. Ainda em Cuiabá, o prefeito Dante de Oliveira (PDT) convida Lula para participar da criação do Conselho e Desenvolvimento do Meio Ambiente da Prefeitura.

14 Visita à Escola Técnica Federal de Cuiabá. Em Jacira, o presidente do Sindicato dos Trabalhadores Rurais denuncia escravidão branca nas carvoarias e terceirização da mão-de-obra canavieira. Em Rondonópolis, debate com produtores de soja e, em seguida, é concedido a Lula o título de cidadão honorário da cidade. Rumo a Coxim, o ônibus é parado por trabalhadores do município de Pedro Gomes, que juntamente com o vice-prefeito (PTB) pedem apoio à lula conta problemas de educação e saúde e a favor da reforma agrária. Chegada a Coxim - MS.

15 Café da manhã com o prefeito de Coxim, Moacir Kohl (PMDB). Em seguida, a Caravana percorre trecho do rio Taquari, veia mestra do Pantanal, ameaçado pelo desmatamento. Pescadores pedem providências. Encontro com funcionários do Judiciário e da Polícia em greve. Passagem por Rio Verde, também com problemas ecológicos. Visita à fazenda Modelo, município de São Gabriel do Oeste, onde 70 funcionários plantam soja em quatro mil hectares. Debate com produtores de soja no Centro de Tradições Gaúchas (grande parte da população veio do sul). Grande carreata na chegada a Campo Grande. Debate com empresários rurais da Federação da Agricultura do Mato Grosso do Sul.

16 Saída para Nova Alvorada do Sul, cidade surgida em torno de uma usina de álcool. Denúncias de que há mão-de-obra indígena em regime de semi-escravidão na usina em outros municípios do Estado, como em Brasilândia, onde 1.100 índios são explorados por destilarias e em Rio Brilhante com trabalhadores vivendo como mendigos. Visita a acampamento dos Sem-Terra: 227 famílias acampadas há um ano e três meses. Em seguida, a Caravana vai para Dourados e participa de ato público.

17 Visita aos índios Terena, Guarani e Caiowáa.

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