Política

Partindo do detalhe - recurso da metodologia psicanalítica -, é possível compreender aspectos da clandestinidade, traduzida primeiro na defesa da vida de militante e organizações e, posteriormente, em espaço de luta e resistência

Nada mais estranho à psicanálise do que proceder do todo para a parte e do exterior para o interior: basta abrir o Moisés de Michelângelo... para verificar que toda a construção freudiana repousa sobre inferências extraídas de um único detalhe."1

O artigo que Freud publicou em 1914 na Revista de Psicanálise, intitulado "O Moisés de Michelângelo", apareceu pela primeira vez anonimamente, e o disfarce só foi descoberto dez anos depois em 1924. Uma nota de rodapé rascunhada pelo próprio Freud dizia: "Embora este artigo, estritamente falando, não se conforme às condições sobre as quais as contribuições são aceitas para publicação nesta revista, os redatores decidiram imprimi-lo, visto o autor, que é pessoa do seu conhecimento, atuar nos círculos psicanalíticos e sua maneira de pensar ter, na realidade, uma certa semelhança com a metodologia da psicanálise."2

O propósito de Freud era o de descobrir as intenções do artista Michelângelo quando esculpiu no mármore a estátua de Moisés. Para descobrir as intenções "tenho primeiro que descobrir o significado e o conteúdo do que se acha representado em sua obra, devo, em outras palavras, ser capaz de interpretá-la... e só depois poderei vir a saber por que fui fortemente afetado"3.

Ao longo de seu meticuloso trabalho, Freud apresenta desenhos da estátua e da posição das Tábuas, encomendadas a um amigo, para que o leitor possa acompanhar seu raciocínio.

Concluiu que o artista criou uma obra revelando que Moisés estava em repouso quando foi subitamente despertado pelo clamor do povo e pelo espetáculo de adoração do Bezerro de Ouro. Reprimiu seu desejo inicial brusco, de jogar as Tábuas, revelado no desatino contido, que Freud percebe pelo movimento da mão, dos dedos, da barba, do pé, para dizer que Michelângelo supôs em Moisés um movimento violento interno, de vingança dominada. Moisés teria se lembrado de sua missão e por causa dela renunciou à satisfação pulsional de seus sentimentos. Sua mão retornou e salvou as Tábuas desapoiadas antes que caíssem ao solo. Nessa atitude permaneceu imobilizado e foi nela que o artista o imortalizou como guardião do túmulo do Papa Júlio II.

Um texto de um conhecedor de arte russa, Ivan Lermolieff, que mais tarde Freud descobre ser o pseudônimo de um médico italiano chamado Morelli, lhe chama a atenção pela insistência do autor em dizer que a autenticidade de uma obra é garantida pela significação de detalhes de menor importância, que cada artista executa a sua maneira, às vezes desapercebida por um copista menor.

Freud encontra aí estreita relação com a psicanálise "que também esta acostumada a desvendar coisas secretas a partir de aspectos menosprezados ou inobserváveis"4.

Ainda, a favor da investigação psíquica. a partir de detalhes, Freud expõe, em conferência pronunciada em 1915/16, na Universidade de Viena, o valor que atribui a esta privilegiada modalidade de iniciar um processo de interpretação.

Dirigindo-se a um público interessado em se aproximar dos conceitos psicanalíticos, organiza uma série de quinze conferências chamadas Conferências Introdutórias sobre Psicanálise.

Na conferência nº 2 diz o seguinte: "Se o senhor fosse um detetive empenhado em localizar um assassino, esperaria que encontrasse no local do crime sua fotografia com o endereço atrás? O senhor não teria ficado satisfeito com vestígios fracos e obscuros da pessoa que estivesse procurando?"5

A tentativa, pois, de compreender os "caminhos da alma", ou os investimentos psíquicos feitos sobre uma vivência, podem ser desvendados de detalhes, é o que propõe a psicanálise.

Clandestinidade supõe escolha

Ao tentar compreender questões da vida clandestina, faço, de pronto, um esclarecimento: não estou aplicando um modelo de interpretação psicanalítica a uma questão política. Estou sim, utilizando-me de recursos da psicanálise, que são de meu ofício, para tentar uma interpretação de questões da vida clandestina política.

A aproximação dos dois universos, o da metapsicologia psicanalítica e o da militância política não os desfigura em sua singularidade e nem os despe de suas especificidades. A utilização dos conceitos de um corpo teórico, para tentar apreender o conteúdo de um outro, possibilita uma peculiar construção. Concordando com Gustavo Ezequiel Etkin6, considero que a utilização de determinados constructos teóricos de uma ciência, para compreender outra, não impede que sua forma de operar seja distinta da forma de operar própria à ciência que os formulou. Melhor dizendo: ao me utilizar de construções da psicanálise para falar de militância política, estou propondo uma interpretação possível de uma experiência de vida, exercida por um grupo de militantes políticos.

A clandestinidade política foi a alternativa vivida por um grupo significativo de brasileiros, imediatamente após o golpe militar de 1º de abril de 1964. A tomada do poder político, através das armas e da violência, cindiu o país em campos adversários e antagônicos: de um lado os que assaltaram o poder, de outro, brasileiros, cidadãos e militantes políticos, considerados inimigos, pelos arrivistas.

A diminuição das possibilidades de exercício da cidadania foi se desenhando a partir da sistemática e cotidiana perseguição às lideranças políticas, às lideranças sindicais do campo e da cidade, aos estudantes e intelectuais, aos religiosos e aos profissionais dos mais diferentes ofícios...

O fechamento progressivo dos espaços de exercício democrático, a censura à imprensa e aos meios de comunicação, aos artistas e às produções artísticas em toda a sua extensão, determinaram o colapso democrático e geraram uma força contrária: a férrea resistência aos ditadores. Para combater os militares, restavam poucas alternativas para os opositores: uma delas foi a alternativa da clandestinidade política. A clandestinidade não é, stricto sensu, uma alternativa de luta. Ela foi, no primeiro momento, uma alternativa de defesa da própria vida e das organizações às quais pertenciam os militantes. Imediatamente após, tornou-se uma possibilidade de luta e de resistência política; era uma determinação das organizações e partidos revolucionários.

Quem quisesse continuar a pertencer a estes segmentos de luta e às suas orientações deveria, majoritariamente, se tornar clandestino. Houve casos em que se decidiu que militante e, principalmente, dirigentes deveriam partir para o exílio. Houve casos em que militantes, não localizados pela repressão, permaneciam na legalidade possível.

Porém, "um contingente significativo permaneceu dentro do Brasil. Muitos tornaram-se clandestinos. Seu objetivo: combater os militares, resistir em luta contra os avanços de um governo discricionário e fascista. Denunciar as violências cometidas, chegar mais perto do coração da ditadura e feri-la de morte.

Tornaram-se clandestinos. Nos nomes, nos rostos, nos documentos pessoais. Afastaram-se de seu grupo familiar, de amigos e de suas profissões. Deixaram suas casas, seus bens, suas roupas. Formaram a coluna vertebral de resistência aos militares. Reuniram-se febrilmente, fizeram planos estratégicos e de ação. Brigaram entre si e se abraçaram como nunca. Cada despedida, talvez fosse a última.

O amanhã era absolutamente hipotético. A certeza do futuro terminava a cada pôr-do-sol. Tinham sido alijados das fileiras dos cidadãos brasileiros, cassados como profissionais, jubilados como estudantes, demitidos, por decreto, de seu trabalho.

Foram incorporados, ao seu jeito, ao anonimato. Jovens mulheres precocemente taciturnas, sonhos de vida familiar preteridos. Sonhos de maternidade interrompidos. Nenhuma certeza de construir com tranqüilidade de um futuro"7.

Cair na clandestinidade, de início, significava sair da cena legal.

"Tornar-se clandestino e permanecer clandestino, durante cinco anos, dez anos ou mais, foi mais do que uma alternativa de sobrevivência, envolveu uma escolha, uma escolha que não era livre, porque era uma escolha dentro de uma situação de catástrofe política. Não é necessário ser clandestino político, na vigência de um regime democrático. Esta alternativa, a da clandestinidade, ocorre dentro de um colapso democrático. Logo, não é uma escolha feita em condições favoráveis de luta política. É feita exatamente em condições desfavoráveis, e por isso não é uma livre escolha e nem uma escolha livre. É uma escolha, no sentido político, determinada pela situação de excepcionalidade do país, e de perseguição declarada pelo poder militar.

"Aqui é que se 'instaura' a escolha. Em alguns casos esses militantes poderiam sair de país, se exilar. Esta alternativa existiu para alguns. Houve casos em que o militante saiu do país, se exilou, e depois voltou para ficar clandestino.

"A escolha se dá nessa circunstância. Passada a necessidade imperiosa de defesa da vida e de sobrevivência, houve quem permanecesse clandestino. É dessas experiências que falo.

"O que constitui do ponto de vista psíquico, a escolha, é o investimento que será feito sobre ela. O que caracteriza a escolha é a condição de sujeito de sua escolha, mesmo que haja a lucidez para reconhecê-la relativa e limitada, é a capacidade de interpretar a situação que é dada e a capacidade de recorrer a reservas psíquicas para dar conta da situação de clandestinidade.

"A decisão da clandestinidade envolveu a escolha de um destino. Muito mais complexa do que supôs qualquer um que se viu frente a ela em 1964. Aos vinte anos de idade, um pouco mais ou um pouco menos, comprometer-se com a luta de resistência, abandoná-la, ou sair do país, não era simples ou fácil. A distância, entre a decisão tomada e suas implicações, foi muitas vezes maior do que supuseram os militantes e suas teorias revolucionárias.

"Algumas vezes era uma decisão discutida em reuniões políticas clandestinas, algumas vezes resolvida entre companheiros e casais. A própria adesão à alternativa colocava cara a cara o militante com seu destino, não sabia ele, coberto por uma longa e nebulosa noite. Ele teria que firmar,e reafirmar, assinar e subscrever a escolha que fez. O sujeito substantivo da decisão estava 'no fim e nos confins de cada um'.

"A escolha de uma decisão que envolve um destino não é um ato solitário, lúcido e consciente. Mercelo Viñar diz que '... o sujeito substantivo da decisão, encontra-se nos confins do próprio ser - onde algo próprio e alheio, familiar e estranho nos impele em uma direção e nos puxa para outra. Este processo deixa uma inscrição, um traço, uma marca universal e necessária...'"8

Escolha: custo e benefício

Do ponto de vista psíquico, escolher supõe, de saída, uma perda: a alternativa eleita tem como outra face, a que foi preterida. Supondo que a clandestinidade foi uma contingência política e uma resposta emergencial, poder-se-ia dizer que foi uma escolha de vida. Havia uma perseguição, logo, esconder-se seria uma solução de autopreservação. Qual a perda? A da cidadania, ainda que em risco, ou a ida para o exílio, nem sempre acessível a todos.

Mas a clandestinidade, na grande maioria dos casos, não foi apenas jeito de esconder-se. Digo grande maioria, porque não há registros das circunstâncias que envolveram as histórias clandestinas, exatamente porque muitas ainda permanecem veladas.

Para esta mesma maioria, a clandestinidade foi uma opção de luta e de resistência. E, porque era uma opção de resistência, alongou-se no tempo, agigantou-se para muitos ao longo de dez anos e durou para alguns o tempo em que vigorou o regime militar: de 1964 até 1979, com a conquista da Anistia, ainda que tardia, parcial e restrita.

A permanência na clandestinidade supôs continuado e permanente conflito consigo mesmo.

- Vale a pena continuar clandestino, correndo tantos riscos de prisão e de vida?

- Não seria melhor sair logo do país, ir para o exterior?

- Talvez fosse possível abandonar a militância organizada e tentar viver na legalidade possível.

- Estou disposto a continuar nesta luta? Será vitoriosa? Quanto tempo vai durar?

Em geral, parte destas respostas era dada pela adesão ao ideário político proposto pela organização de pertinência. A militância clandestina, nesta circunstância, não era uma questão de caráter pessoal, exclusivamente. Era corolário da adesão a um partido, a uma organização, a um agrupamento político.

Contudo, qualquer adesão a um coletivo supõe um investimento individual.

A vitória é do coletivo. O fracasso é do coletivo. O sofrimento e a dor são individuais, como a alegria ou o prazer.

Nesta leitura é que o singular e o plural se entrelaçam. Há uma condição específica que acompanhou permanentemente o clandestino: a necessidade de manter o anonimato. Para o militante revolucionário, o anonimato, ainda que uma defesa, tornou-se uma couraça na volta à legalidade. Por outro lado, foi um facilitador para a repressão, que se utilizou deste disfarce para prender, violentar e matar, omitindo o verdadeiro nome de suas vítimas, apesar de sabê-lo com certeza e com precisão.

O que teria acontecido com os afetos, com os sentimentos do militante que, estoicamente, suportou a clandestinidade e fez desta experiência uma oferenda ao resgate da democracia e da liberdade no país? Teria sido uma experiência metabolizada e processada psiquicamente?

A hipótese que me ocorre, como mais plausível, é a de que o militante clandestino, que tornou-se e permaneceu clandestino, experimentou os limites de suas possibilidades de devaneio, de fantasia e de transacionamento psíquico permanente. Sempre que o prato da balança oscilava para o excesso de "custo", o militante o re-equilibrava com novos investimentos psíquicos. O benefício principal era o da certeza de estar ao lado do interesse da Nação e do povo brasileiro, e por isso, valia a pena continuar. Esta garantia lhe era dada pelo projeto político que abraçou. Mas, quem lhe apoiava, individualmente? O companheiro de militância mais próximo, de ombro e de armas, ou ele próprio, no mergulho repetido dentro de si mesmo. O militante aprendeu a "conversar consigo", como provavelmente nunca o fizera antes.

O mergulho no fundo de si mesmo

A escolha da clandestinidade não é uma escolha tipo cara ou coroa. Supõe uma perda inicial, e, na verdade, pode se constituir no que Piera Aulagnier9 chamou de causalidade interpretada.

Aulagnier diz mais ou menos o seguinte: quando ocorre um fenômeno físico ou social, que seja universalmente conhecido, ele pode ser explicado pelas ciências que os estudam. Assim, quando há uma tempestade, qualquer um sabe quais são as causas da chuva: há uma causalidade demonstrada. O que se faz diante da chuva varia conforme o benefício ou prejuízo que a chuva trouxer. Há uma interpretação das conseqüências da chuva, distintas para um agricultor, em época de seca, e para um outro que possa perder sua safra, por excesso de água. O mesmo pode ser pensado para uma situação política. Diante de um golpe militar, a causalidade demonstrada, para um militante, corresponderia à explicação dos determinantes político-econômicos e sociais que propiciaram o golpe. Há uma demonstração possível, ancorada na vasta literatura especializada. Mas, o que fazer diante do golpe. Aí, se instaura a causalidade interpretada. E é nestas circunstâncias que variam as decisões que são tomadas frente ao cenário político.

A escolha da clandestinidade, nesta acepção, pode ser entendida como causalidade interpretada, isto é, como a decisão tomada frente à causalidade demonstrada.

Para sustentação desta interpretação, haverá a necessidade de um permanente investimento psíquico, já que as circunstâncias que envolvem a clandestinidade são profundamente desgastantes. Há a necessidade vital de um disfarce da própria imagem, do nome, do jeito de ser, da relação com a família de origem, da relação com a profissão e a necessidade de mudança radical de ambiente. O clandestino teve que se desfazer externamente do que o constituía socialmente. Afastando-se de seu grupo de amigos, familiar e de conhecidos, foi-se isolando, por necessidade, por determinação política, por decisão partidária. Se isolando, tornou-se isolado e, aos poucos, vai se metamorfoseando em um tipo de eremita em plena cidade, ou de um ermitão nos longínquos rincões de luta, no campo.

O militante passa então a experienciar a vivência do que se concebeu como "narcisismo". O narcisismo é um conceito criado por Freud, que tomou o termo emprestado do mito de Narciso. Embora popularmente se pense em narcisismo como uma expressão de vaidade ou egoísmo, com uma conotação pejorativa, irônica, ou como um desvio ideológico "pequeno-burguês", o narcisismo, para a metapsicologia psicanalítica, é uma construção teórica, imprescindível à compreensão da constituição psíquica do ego. Guy Rosolato10 diz: há certos conceitos em psicanálise que inicialmente são entendidos como uma patologia e somente muito depois é que se sabe que a patologia seria exatamente a falta destas experiências. Um destes conceitos é o de Complexo de Édipo, que e uma experiência ímpar e singular, vivida por todos e desempenha um papel fundamental na estruturação da personalidade e na orientação do desejo humano. Também o narcisismo, hoje, é entendido como uma experiência essencial à constituição psíquica. Desde as mais iniciais e primeiras relações do bebê com o mundo, através de sua mãe, o primeiro "outro", a criança percebe que ela e a mãe não são um só, e que ela é investida pelo olhar e pelos cuidados da mãe.

"Numa perspectiva genética, podemos conceber a constituição do ego como unidade psíquica correlativamente à constituição do esquema corporal. Podemos ainda pensar que tal unidade é precipitada por uma determinada imagem que o indivíduo adquire de si mesmo, segundo o modelo do outro, e que é precisamente o ego. O narcisismo seria a captação amorosa do indivíduo por essa imagem."11

Para Freud, esta constituição, forjada nos primeiros meses de vida, permanece como uma estrutura permanente no indivíduo. O conceito de estrutura não é de algo fixo e rígido, pois não é assim que se pode pensar o psíquico. A idéia é que esta constituição psíquica, fundante do ego, substituirá ao longo da vida e, para Joyce McDougall, o narcisismo é essencial para a manutenção da "sístole e diástole da vida psíquica, destinada a garantir a continuidade do sentimento de identidade em todas as suas dimensões... sem dúvida, a luta para manter a representação de si e o equilíbrio da economia narcísica impõe-se a todos nos..."12

Pode-se pensar, então, que em uma situação penosa e extremamente desgastante, o recurso psíquico ao narcisismo será responsável pela preservação do sentimento de identidade, mesmo que, externamente, esta "identidade" tenha sido alterada, transfigurada e camuflada. O clandestino que não se desorganizou internamente, provavelmente, tinha sua "estrutura narcísica" mais bem resolvida, isto é, por circunstâncias primordiais de sua vida, ficou bem constituído egoicamente, a ponto de poder resistir em situações limite.

Quando "ferido na alma e no coração", muitas vezes, o clandestino se isolou, se retraiu para, sem saber, quase que "por instinto", refazer-se em seu retiro. Outras vezes se jogou num desvario ativista, transitando por caminhos de risco, às vezes calculados, dando vazão à sua sede revolucionária, a seus desejos libertários. E, em não poucas ocasiões, sentiu-se bloqueado entre a ambigüidade de decisões a tomar: ir ou não ir, fazer ou não fazer, ficar ou desistir, arriscar-se ou recuar. O militante clandestino experimentou o estiramento de que Guy Rosalato chamou de duplo-entrave. Uma experiência narcísica crucial, correspondendo, na leitura do mito, à decisão que atormentou o jovem Narciso, de jogar-se ou não, nas águas mortíferas do lago.

E, quando finalmente se jogou, obcecado no espelho que o refletiu. Narciso não morre, mas sim, transforma-se em uma planta que imortaliza sua beleza desfeita pelas águas. Resgatando do mito o deslizamento e a metáfora, pode-se dizer que, quando por uma fatalidade o militante mergulhou em um salto sem retorno, deixou uma lembrança que reacende a imagem dos que, por excesso de paixão, se lançaram em lutas inconclusas.

A militância clandestina foi, em última instância, uma página apaixonada, vivida por uma geração instigante e intrépida, que acreditou demais e desconfiou de menos.

Como não é próprio à juventude a sensatez, lançou-se em uma jornada que deixou espalhados, ao longo de seu curso, sonhos e projetos.

Iluminada pelo ideário político a que aderiu, acreditou que era possível transformar o mármore em escultura que imortalizasse a saga de uma geração de brasileiros.

O que foi conseguido?

Na minha opinião: o essencial. Ao final de quinze anos, a queda de um regime discricionário e fascista. O custo? Irresgatável. Vidas perdidas. Corpos assinalados. Sonhos petrificados.

Sair da clandestinidade requer novas escolhas e novas decisões. Assim como "cair na clandestinidade" envolveu determinações pessoais, o retorno à legalidade supõe nova "causalidade interpretada". Embora as condições objetivas sejam substantivamente favoráveis, as condições subjetivas não têm o mesmo viço de vinte anos atrás.

O retorno à vida cidadã, o resgate do nome próprio, a recuperação da imagem social e o re-encontro com amigos e parentes, já assentados nos espaços políticos e sociais, e sobretudo, a reinserção profissional, levaram o militante por muito tempo clandestino, a se ver frente ao reverso de si mesmo. Consegue divisar apenas os contornos de que poderia ter sido e não foi, abatido em pleno vôo libertário, colhido pela ameaça de fuzis ditadores. O ex-clandestino tem uma saída psíquica: buscar dentro de si mesmo as fagulhas ainda incandescentes que lhe permitam, das cinzas de seus projetos políticos e pessoais, resgatar sua inteireza.

Há quem tenha já conseguido fazê-lo. Outros continuam tentando. Pode-se supor que o ex-clandestino se encontra às voltas com novas paixões, políticas e sociais, profissionais ou não.

De qualquer forma, o rito-de-passagem, patrocinado em parte pelos militantes da anistia, aos que foram libertados da prisão, e aos que retornaram do exílio, não foi exercido para os que retornaram da clandestinidade.

Em verdade, por não sabê-los clandestinos e, em parte, por não sabê-los retornados.

O silêncio do regresso à vida legal teve reconhecimento igualmente silencioso.

É tempo de revelar histórias clandestinas, de territórios ainda submersos!

Maria Auxiliadora de Almeida Cunha Arantes é psicanalista, mestre em Psicologia Clínica e membro da Comissão Coordenadora Geral do Departamento de Psicanálise do Sedes Sapientiae. Clandestina no Brasil entre 65/76