Economia

O sistema soviético demonstrou que a questão da propriedade é mera formalidade técnica e, ainda com mais vigor, que o pleno emprego não representa qualquer garantia de cidadania

Desde o século passado, a identidade da esquerda vem sendo feita em torno da questão da propriedade: a direita seria aquela que defende a proprieda de privada; a esquerda, aquela que a ataca. Em 1848, o Manifesto Comunista reduzia a luta revolucionária à luta pela abolição da propriedade privada dos meios de produção. Mas, depois da experiência soviética e dos regimes burocráticos autoproclamados "socia listas", ficou claro que o "socialismo científico" mostrou-se apenas forma lista em seu apego à (abolição da) pro priedade privada, assim como era formalista, no fundo, o discurso incendiá rio dos anarquistas que propunham a abolição do Estado. O sistema soviéti co demonstrou que as formas de propri edade são expedientes técnicos no sen tido da acumulação, e que têm muito pouca função numa genuína reforma ou superação da ordem capitalista. A abo lição da propriedade privada havia se convertido num fetiche ideológico para os socialistas.

Pouco a pouco, essa compreensão vem se sedimentando nos movimentos de esquerda no mundo todo, o que cria um certo mal-estar. A esquerda reconhece a si mesma mas, ao mesmo tempo, parece não mais saber por que é que, afinal, ela se reconhece como esquerda. A disposição de mudar o mundo, de lutar por justiça e igualdade, aquela combatividade tão própria da esquerda, mudadas algumas roupagens, continua viva, mas o discurso centrado nas relações de propriedade, que lhe dava aquele "sentido histórico" quase épico, este se desmanchou no ar. A esquerda começa a gaguejar quando é chamada a dizer com precisão o que é que a diferencia da direita.

Daí que é bastante comum ouvirmos de políticos, em geral conservadores, em geral de direita, a afirmação de que a clivagem entre direita e esquerda estaria superada. Na verdade, nada parece tão urgente para a direita como provar que ela mesma, direita, não existe mais enquanto tal. Para a esquerda, nada é mais vital do que desarmar a empulhação e demonstrar que ela, esquerda, existe sim e é necessária.

No Brasil, o problema, quando vem à tona, vem embaralhado e confuso. Um bom exemplo é o debate em torno do "Programa de garantia de renda mínima", proposto pelo senador Eduardo Suplicy (PT-SP) e aprovado sem nenhum voto contrário e raras abstenções pelo Senado. A princípio, direita e esquerda estariam de pleno acordo no Senado, de onde surge a confusão: pois se num assunto tão importante, direita e esquerda concordam, em que estariam as diferenças? Dentro do PT, a situação é ainda mais interessante: não houve unanimidade e a adesão ou não ao programa provocou um corte inusitado no espectro ideológico interno ao partido.

O programa prevê que, respeitado um determinado cronograma de implementação, as pessoas com mais de 25 anos farão jus a um rendimento adicio nal equivalente a 30% da diferença entre os seus rendimentos brutos e um determinado piso, mínimo, estabelecido em lei. A idéia é uma espécie de imposto de renda negativo. O projeto, ressalte-se, beneficia também os desempregados, que, não tendo rendimentos, receberão 30% do piso estabelecido.

O programa merece apoio irrestrito. Ele não apenas contém um mecanismo inteligente de elevação indireta do salário mínimo, porque contorna o problema da produtividade do trabalho (ou, em outras palavras, aumenta o rendimento mínimo sem riscos de gerar desemprego), como ataca as mazelas do desemprego, que é, sem dúvida, o mais importante problema das economias centrais e também das periféricas pós-estabilização. Uma vez que o processo de produção exige cada vez menos trabalho, não parece ser mais possível defender o direito à renda somente às pessoas que ocupam um emprego. Portanto, alguma renda deve ser garantida a todos independentemente do trabalho.
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Além de apoio, a proposta do senador Eduardo Suplicy merece, de todos os interessados em discutir o que distingue direita de esquerda, uma atenção especial. Ela nos ajuda a desfazer mal-entendidos.

Para começar: embora seja uma proposta de distribuição de renda inspirada pelos ideais humanitários mais comuns na tradição da esquerda, não pode ser considerada propriamente uma proposta de esquerda. A idéia, a bem da verdade, não é original. Ela foi lançada nos Estados Unidos, em fins da década de 50, e, embora não introduzida por lei, teve apoio tanto dos democratas (entre os quais alguns de esquerda moderada) quanto dos neoliberais, Milton Friedman entre eles.

No campo da esquerda mundial, a esquerda considerada aqui de forma ampla, a idéia apoiada por Milton Friedman encontrou críticos. André Gorz, em Metamorphoses du Travail, questiona se é mesmo necessário dissociar o direito à renda do direito ao trabalho. Ele sustenta que "cada cidadão tem o direito a uma vida normal; mas cada um deve também ter a possibilidade (o direito e o dever) de fornecer à sociedade o equivalente-trabalho daquilo que consome". Sendo assim, "o mínimo garantido funciona como o salário da marginalidade e da exclusão social". No ponto que nos interessa particularmente, Gorz é categórico: "A menos que se apresente explicitamente como uma medida transitória, o mínimo garantido é uma idéia de direita". O trabalho, para Gorz, por sua abstração impessoal, libera o trabalhador de quaisquer laços particulares de dependência, sendo, portanto, juntamente com a renda dele proveniente, base da cidadania. A partir dessas considerações, ele aponta o que seria uma alternativa de esquerda: não aceitar o desemprego como uma conseqüência inevitável e, a partir disso, não lutar pelo direito à renda independente do próprio trabalho; lutar, sim, pelo direito à renda independente da duração do trabalho. A solução: gerar empregos por meio da redução da jornada de trabalho. Assim, todos teriam trabalho e todos teriam renda, além de mais tempo livre.

Antes de considerar as alegações de Gorz, queremos destacar algo que nos parece uma limitação do raciocínio que ele desenvolve. A proposta de redução de jornada sem prejuízo da renda funciona perfeitamente - para o trabalho alienado. Quando pensamos em trabalho como base da cidadania, para usarmos uma formulação dele, não estamos pensando no trabalho alienado ou num mero "emprego", mas no trabalho que faz de seu autor sujeito social e histórico. O homem não apenas deve ter direito ao emprego, mas o direito de ser o senhor de seu próprio trabalho, tomando parte, inclusive, no controle do produto de seu trabalho.

Agora, deixando isso de lado, admitamos a questão no plano em que Gorz a põe, ou seja, no plano do trabalho alienado. Aqui, é o caso de perguntar: essa nova clivagem proposta por Gorz, pela qual o programa proposto pelo senador Suplicy seria considerado um programa de direita, é aceitável diante da nova realidade internacional? A luta pela justa distribuição do trabalho, renda e tempo livre pode, de fato, substituir com sucesso a luta inglória, e fetichista, pela abolição da propriedade privada?

A resposta é não. Se o sistema soviético demonstrou que a questão da propriedade é mera formalidade técnica, ele demonstrou ainda com mais vigor que o pleno emprego da força de trabalho não representa garantia nenhuma de cidadania. O homem soviético experimentou a absoluta alienação do trabalho, num regime de escravidão geral moderna. Para ele, a possibilidade de cidadania confundia-se com a possibilidade de se recusar a trabalhar. Paralelamente, no chamado Ocidente, a redução drástica da jornada (de 3.200 horas anuais, no começo do século, para 1.600 horas anuais, atualmente), nem resultou no pleno emprego nem implicou uma ruptura com o modus operandi do capitalismo, apesar do enorme tempo liberado (mas não livre) do trabalho. Talvez devêssemos apelar para o velho argumento de que o acesso ao trabalho e ao tempo dele liberado é condição necessária, mas não suficiente, para a superação da ordem estabelecida. Essa condição não pode virar para nós o fetiche que já foi a abolição da propriedade privada. Não podemos correr o risco de não perceber que a condição complementar talvez seja a única necessária.
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Qual seria a condição complementar? Em poucas palavras: a subversão do padrão tecnológico, ou seja, o padrão de intercâmbio entre os homens e a natureza. No nosso entendimento, a nova clivagem direita/esquerda está precisamente aí.

Já foi dito que, nos estágios pré-capitalistas, o homem era o objetivo da produção, enquanto, no capitalismo, a produção é o objetivo do homem e a riqueza, o objetivo da produção (Karl Marx). À luz da inversão promovida pelo capitalismo, aqueles estágios pas sados adquirem uma aura de superioridade moral que só se esvaece quando consideramos o enorme incremento que ele representou no intercâmbio universal entre homem e natureza. Contudo, tamanho incremento se deu à custa da total alienação dos fins, os homens, em benefício da própria acumulação. E isso porque a ordem estabelecida, para sobreviver, apóia-se num padrão tecnológico que cria mais necessidades do que satisfaz.

Vejamos como isto se dá. Se é verdade que "o consumo põe idealmente o objeto da produção como necessidade", não é menos verdade que "quando o consumo se liberta da sua rudeza primitiva e perde seu caráter imediato, o próprio consumo é mediado pelo objeto" e "a necessidade que sente deste objeto é criada pela percepção do mesmo". Assim, "a produção não cria somente um objeto para o sujeito, mas também um sujeito para o objeto" (Karl Marx, outra vez: Marx não explica tudo, por certo, mas é incrível como, hoje, nada se explica sem Marx). Contudo, sob o capitalismo, dada a gestão sistêmica do processo de inovação tecnológica, a correspondência entre percepção e fruição não acontece. Rigorosamente, a correspondência entre percepção e fruição não está completamente desaparecida, ela permanece confinada na dimensão estética (diante de uma obra de arte, percepção e fruição coincidem, a necessidade da obra é simultânea ao prazer que ela proporciona). Já no âmbito da reprodução material da vida, muitos percebem e são carentes daquilo que só alguns usufruem (isso vale inclusive para as obras de arte transubstanciadas em mercadorias - assim como vale, em termos, para as mercadorias que se vendem como "obras de arte"). O gozo de poucos tem menos a função de saciá-los e mais a finalidade de acender o desejo de muitos outros, dos carentes.

Dizem, os homens da direita, que o mercado dará conta de equilibrar tudo. As necessidades serão satisfeitas, eles prometem. A promessa é tão antiga quanto o capitalismo - e a esquerda não sabe mais como desmascará-la. Desde que o "socialismo real" sossobrou, a esquerda, envergonhada, sem condições de opor a velharia da planificação centralizada ao mercado, parece não saber o que dizer. E é tão simples o que dizer! Quando o liberalismo defende a tese da soberania do consumidor através da metáfora de que o dinheiro, no mercado, representa um voto para conseguir que sejam feitas as coisas que se desejam (Samuelson), os homens de esquerda devem concordar, mas com uma ressalva: a de que a "democracia econômica" dos liberais se completará não só quando os consumidores "votarem" no que querem ver produzido, mas também quando os trabalhadores puderem decidir quais serão os "candidatos", ou seja, o que querem produzir (e perceber como carência).

Trata-se, portanto, de provocar a tematização de alguns problemas no âmbito da reprodução material (o que produzir, por exemplo) que têm tido solução por mecanismos sistêmicos. Desarmar os subsistemas Estado e empresa privada pela esfera pública, esta deveria ser a tarefa dos que dizem zelar pela integração social. Um tal alargamento democrático conduziria à substituição de um padrão tecnológico que cria necessidades por outro capaz de satisfazê-las. Subvertido aquele padrão, não é difícil elaborar prognósticos sobre o futuro da propriedade privada e da distribuição desigual da renda e do trabalho, categorias que passariam a ser no mínimo desimportantes. A razão é simples: o foco da ação política da esquerda deve deixar de ser o vínculo de propriedade e passar a ser o controle sobre as prerrogativas que têm decorrido desse vínculo. Assim, o poder de decisão dos proprietários dos meios de produção sobre o que produzir (uma das velhas prerrogativas) tenderia a ser limitado; ele ficaria a cargo, cada vez mais, de um espaço público aberto no seio dos subsistemas mencionados. Evidentemente, não estamos defendendo a adoção de qualquer das velhas fórmulas dos conselhos operários, dos sovietes etc., que são mecanismos igualmente sistêmicos. A solução passa por novas instituições, externas ao sistema, mas que abrem uma clareira pública no seu interior. Iniciar esse processo, como se nota, é tarefa factível dentro da sociedade capitalista. A luta da esquerda deve se dar, portanto, pela via democrática. O combate, sem nenhum trocadilho, é legal. E, apesar de legal, é subversivo.
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Para que o leitor se situe (ou nos situe) no espectro ideológico, talvez valha a pena uma reflexão no campo do direito. Nós não estamos simplesmente defendendo os "direitos formais", como o sufrágio universal, por exemplo, que são a bandeira (e a desculpa) do liberalismo; nem os "direitos materiais", como o acesso garantido aos serviços de saúde, educação etc., que têm sido a principal bandeira (e álibi) dos stalinistas e dos diversos seguidores do chamado socialismo real; e nem, tão pouco, defendemos a mera justaposição dos dois, como faz a social-democracia (incluindo Habermas). Nossa formulação é outra. Para nós a combinação a ser feita é de outra ordem: assegurar "direitos formais" no âmbito da reprodução material (como o direito de decidir, num espaço público, o que será produzido, ou, ainda, em que será investido determinado recurso público) bem como assegurar "direitos materiais" no âmbito da reprodução formal ou simbólica (como ter garantidos pela ordem pública, sem contrapartida, meios e recursos para que o acervo cultural da humanidade seja acessível a qualquer cidadão).

No alicerce dos padrões tecnológicos - um, existente, voltado para criar necessidades; outro, ainda inexistente, voltado para satisfazê-las - existe hoje, historicamente dada, a abertura para a opção política. Pode-se, hoje, escolher um ou outro, o que faz da identidade da esquerda não mais uma identidade pretensamente científica, mas sobretudo ética. Ou se trata a vida como meio ou se trata a vida como um fim. É um paradigma contra o outro. Ou o direito à propriedade está em primeiro lugar, ou a vida está em primeiro lugar. Se a esquerda faz a opção da vida como fim, ela milita para igualar os homens naquilo que a sociedade de classes os diferenciou e para permitir a diferenciação naquilo que a sociedade de massa os igualou. Aqui, vale um registro: a sociedade soviética promoveu a massificação do proletariado, com a apologia do trabalho alienado. A experiência soviética, se explicável no curso da história como um recurso que buscou realizar a acumulação primitiva numa sociedade atrasada, é um capítulo a ser lamentado à luz do padrão tecnológico. Ela não mudou o padrão tecnológico criado pelo capitalismo; ela o viciou ainda mais.

A esquerda, quando raciocina em termos de renda, emprego, propriedade, e nada mais que isso, ainda está presa ao primeiro paradigma, que é dado pela propriedade, que tem a vida como meio, por mais que procure negá-lo; está pautada pela lógica atualmente que a informação seja integral e - abarcada pela direita.

Evidentemente, propostas como a estatização e a renda mínima, para ficarmos apenas em dois exemplos, não são nem de direita e nem de esquerda, por mais que a direita insista em tachar a estatização de "idéia dos dinossauros de esquerda". Tan to que, no Brasil, a direita, no passado, foi a responsável pela intervenção estatal na economia e a esquerda, no presente, defende o programa apenas liberal de renda mínima.

O fato de ser liberal não a piora em nada. A imensa massa de excluídos sociais no Brasil precisa dela. Ela deve ser convertida em lei e, feita lei, tem que se tornar realidade. Muitas idéias liberais podem e devem ser encampadas pela esquerda. O que vai diferenciar a esquerda da direita é que a esquerda não pode ficar por aí. Se a direita foi capaz de assumir o comando da discussão econômica e, assumindo esse comando, foi capaz de enquadrar, incorporar e neutralizar a contestação socialista que tinha como objetivo a expropriação do capital e nada mais, a esquerda tem a condição de levar os direitos que o liberalismo pode admitir em princípio, mas não na prática, até o limite da superação do próprio liberalismo.

Eugênio Bucci e Fernando Haddad são membros do Conselho de Redação de T&D.