Cultura

Eu li Grande Sertão Veredas como se lê um livro de matemática, letra por letra

Entre tantos outros livros que me encantaram, Grande Sertão Veredas fez a minha cabeça, porque com ele identifiquei-me apaixonadamente, tanto na forma quanto no conteúdo. A linguagem plástica de João Guimarães Rosa me fascinou à primeira página, me conduzindo em cada uma das 570 seguintes, como se me induzisse à aventura de uma expedição pelo interior de um vulcão habitável, isto é, o vulcão do Outro que nos habita. Eu li Grande Sertão Veredas como se lê um livro de matemática, minha área básica de formação, isto é, letra por letra. Pois em matemática tudo é importante no texto, inclusive um simples "til", pela sua estrutura lógica.

O gênero de leitura que empreendi não teve, entretanto, motivação racional. Pelo contrário, me deixei embalar pelo gosto da captação de agudezas que ultrapassam o formalismo lógico para poder me aproximar de nossos abismos, de nossas riquezas e de nossas complexidades mais lindas.

O Sertão, para mim, é nossa vida pessoal.

"Sertão não é malino nem caridoso... ele tira ou dá, ou agrada ou amarga, ao senhor, conforme o senhor mesmo." (p. 490)

"Sabe o senhor: sertão é onde o pensamento da gente se forma mais forte que o poder do lugar. Viver é muito perigoso..." (p. 26)

O Sertão é a existência de cada um, entretecida visceralmente na convivência com os outros, a qual nos engendra. Esta geração humana, a partir do grupal, é que levou Henry Wallon à sua afirmação proverbial: "Nós somos geneticamente sociais". E assim sendo dentro de nós, somos múltiplos e plurais. Em primeiro lugar, com Deus e o Diabo se alterando ou disputando.

"A força de Deus quando quer - moço! - me dá o medo pavor! Deus vem vindo: ninguém não vê. Ele faz é na lei do mansinho - assim é o milagre. E Deus ataca bonito, se discutindo, se economiza." (p. 24).

"Acha fio de verdade nessa parlenda, de com o demônio se poder tratar pacto?"

A descrição deste convívio intrigante, exigente e perigoso, entre o céu e o inferno de nossos sentimentos e de nossos pensamentos é que, por obra de João Guimarães Rosa, se constitui em verbo fecundo, no Grande Sertão Veredas.

Alma, grilos, reza, chefias, trabalho, chuva, caça, saudade, trovão, boi preto, assovios, batalha, paciência, governo, peixe, rede, rio, prisioneiros, sofrimento, fogo, pressentimento, traição, ... e horrorizância se mesclam magnificamente com mil outros elementos nesta imagem do sertão, exuberância de nosso mundo interior, tributário do nosso confronto e diálogo com os outros.

Riobaldo, o personagem central, é gente por inteiro. Duvida, arrisca e assume, com valentia e medo entrelaçados, na segurança buscada como âncora numa ética que aponta para a integridade.

Por trás, e sobretudo envolvendo amplamente Riobaldo, Diadorim, sua paixão secreta e interdita. A descoberta da mulher Diadorim é de uma força tão extraordinariamente bela que eu a transcrevi no meu livro de memórias conceituais, Águas da Graça da Vida, como coisa incorporada ao meu olhar sobre o mundo. Por outro lado, Diadorim mulher, cumprindo tão bem todas as valentias que eram tidas como prerrogativas do macho, faz de Grande Sertão Veredas um grande e sutil libelo feminista. João Guimarães Rosa desfez preconceito tão arraigado, com uma maestria admirável.

Grande Sertão descreve fundamentalmente o processo vital de construção de cada sujeito, no desafio de fazer-se autor, único, singular.

"Em toda a minha vida pensei por mim, fôrro, sou nascido diferente. Eu sou é eu mesmo. Divêrjo de todo o mundo." (p. 16)

"O mais importante e bonito, do mundo, é isto: que as pessoas não estão sempre iguais, ainda não foram terminadas - mas que elas vão sempre mudando." (p. 24)

Emociona-me muito ainda, 24 anos depois de minha primeira incursão nestas Veredas, reencontrar a fineza e o vigor da palavra do autor a respeito do embate vida e morte, ou guerra e paz, na trajetória destes jagunços com os quais tanto nos identificamos. O amor e a agressividade em sua dinâmica mais existencial povoa todo o livro, desnudam facetas inusitadas à abordagem ordinária. Confirme-se isto em "como se o obedecer do amor não fosse sempre ao contrário..." (P. 277), em que se desvela o amor como rebeldia por essência.

A capacidade de João Guimarães Rosa de recriar nossa língua sela todo o construtivismo que inunda seu livro, pois, se viver é um processo, o qual se concretiza em ação e linguagem, ambas precisam ser permanentemente renovadas.

Que eu suscite em quantos me lerem e que ainda não desfrutaram de Grande Sertão Veredas que o façam pra já. Certamente eles me agradecerão a oportunidade de se defrontarem consigo mesmos de um jeito tão original.

Esther Pillar Grossi é doutora em Psicologia da Inteligência pela Universidade de Paris, ex-secretária de Educação de Porto Alegre e deputada federal pelo PT-RS.