Mundo do Trabalho

Mesa-redonda entre pesquisadores debate as transformações nas relações de trabalho no Brasil

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Teoria & Debate promoveu uma mesa-redonda sobre as transformações que a reestruturação do capitalismo está provocando nas relações de trabalho. Participaram quatro especialistas na área: Rosa Maria Marques, chefe do Departamento de Economia da PUC-SP; Jorge Mattoso, professor de Economia da Unicamp e pesquisador do Cesit; Ricardo Antunes professor de Sociologia da Unicamp; e Tarcisio Secoli, diretor do Sindicato dos Metalúrgicos do ABC. As colocações partiram da avaliação mais geral das mutações do capitalismo contemporâneo e suas implicações sobre a organização do trabalho e da classe trabalhadora. Com o desenrolar do debate, elas foram se deslocando para as visões sobre a relação entre mudança tecnológica e desemprego e depois para os problemas de como enfrentar a ofensiva neoliberal do governo FHC no terreno das relações de trabalho e sindicais. O fim do horizonte do desenvolvimento nacional e do pleno emprego e a realidade infame do desemprego estrutural permanente, desregulamentação, terceirização, flexibilização, precarização, mudanças impostas pelo governo na legislação sobre organização sindical são hoje desafios muito concretos colocados para o PT e o movimento sindical brasileiro. As iniciativas debatidas pelos participantes como resposta a este quadro enfatizam três aspectos: a luta estratégica pela redução da jornada de trabalho; o enraizamento dos sindicatos nas empresas e a organização dos trabalhadores por local de trabalho, combatendo a estruturação de sindicatos por empresas, que não conseguem resistir à sua cooptação pelo patronato; e a defesa de formas estatais de regulação da economia e das relações trabalhistas, que vem sendo eliminadas pelo neoliberalismo. (JCL)

Coordenação: José Corrêa Leite e Flávio Aguiar

Ricardo Antunes - Estamos vivendo um dos momentos mais difíceis no que diz respeito à ação dos trabalhadores e ao sindicalismo, especialmente desde os anos 70, em função do que se tem chamado de crise do padrão taylorista e fordista, do Estado intervencionista keynesiano, da regulação social-democrata. O capitalismo em escala mundial, ao mesmo tempo em que mantém seus pressupostos e fundamentos básicos, tem ensaiado, e em alguns casos avançado, uma nova forma de produzir mercadorias. Dessa nova forma de produzir mercadorias, chamada de acumulação flexível, inspirada no modelo japonês e um pouco em experiências do norte da Itália, EUA e Alemanha, resultaram coisas que vieram para ficar, do ponto de vista da lógica do capital.

Passamos por uma revolução tecnológica, que permite que a concentração de capitais se mantenha e opere a desconcentração do espaço físico. Isto é muito importante para o capital porque se mantém a competitividade intercapitalista, que decorre desta nova revolução tecnológica, e de outro lado - e isso é crucial -, o capital pode se reproduzir de forma ampliada fragmentando a classe trabalhadora no que diz respeito a seu espaço físico.

Esses elementos compõem um todo. As linhas de montagem rígidas do taylorismo e do fordismo agora dão lugar a empresas flexibilizadas, com operários multifuncionais, operários desespecializados, operando em várias dimensões. Incorpora-se força de trabalho nos momentos de expansão; em outros ela é expulsa. Então, mantém-se permanentemente esse exército de subtrabalhadores, de trabalho parcial. Isto pressupõe um conjunto de mudanças tecnológicas e organizacionais. No plano destas últimas, o chamado enxugamento da empresa, a reengenharia, do ponto de vista do capital, necessita da adesão dos trabalhadores; é preciso que a parcela que fica nas empresas abrace esse projeto. Dai que no Japão, no pós-guerra, especialmente de meados dos anos 50 para cá, espraiaram-se os sindicatos por empresa. E com estes, o que havia de sindicalismo combativo no Japão foi arrebentado. Isto cria um cenário que é muito propício para o capital, o que chamei de nova forma de produzir mercadorias no interior do capitalismo.

Essa nova forma é a desespecialização multifuncional/funcional, essencialmente nefasta para os trabalhadores. Mesmo que uma parcela pequena dos trabalhadores permaneça no trabalho e tenha, no caso japonês, salário, produtividade, emprego vitalício etc, isso de algum modo beneficiou o operariado. Tampouco tem sido transplantado na ocidentalização desse modelo de acumulação flexível. E isso faz com que o prejuízo maior, além da perda do direito ao trabalho, seja uma grande fratura no interior da classe trabalhadora.

Jorge Mattoso - Vivemos a partir dos anos 60 uma série de crises que se sobrepõem e que vão aparecer mais plenamente nos anos 70, sobretudo a partir do primeiro choque do petróleo. Há uma crise do capitalismo que vai se somar a outras, inclusive à do próprio socialismo e à da social-democracia enquanto alternativas mais-gerais.

Essas crises trouxeram mudanças importantes. Em primeiro lugar, o revigoramento que o capital passa a ter a partir da aceleração e desregulação da concorrência. No entanto, não esqueçamos de que na década de 20 também se dizia que o capitalismo ia muito bem com o boom da segunda revolução industrial, mas ele explodiu em 1929. Nesse meio tempo, as grandes corporações reagrupadas mostravam um vigor inusitado, que é um pouco o que se verifica hoje. E um vigor aparente o resultante dessa aceleração e desregulação da concorrência. Em segundo lugar, a internacionalização é algo intrínseco ao capitalismo. Primeiro foi a internacionalização de mercados, depois a das grandes corporações multinacionais. Mas existe um fator novo que diz respeito à globalização financeira que determina, inclusive, a dinâmica econômica nos anos 80 e 90. Temos a redução do investimento e do crescimento econômico em todos os países capitalistas avançados, que sobrevivem graças ao processo de globalização e à obrigação de que os países atrasados devam abrir seus mercados para expandir os mercados dos países centrais.

Há um processo de aceleração da concorrência e isso favorece a inovação tecnológica, que não é algo novo no capitalismo. A diferença é que agora essa inovação tecnológica se faz sem barreiras, sem regulação e sem políticas públicas capazes de dar conta da sua tendência à redução do trabalho vivo. A inovação tecnológica, e isso está claro em Marx, tem por base a questão da concorrência entre os capitais. O que se modifica hoje é a globalização financeira que determina taxas de investimento pífias, crescimento baixo e aceleração da concorrência, com inovação tecnológica e redução do trabalho vivo, num marco de ausência de regulação pública. A ausência de regulação é o motivo fundamental do processo de desordem do trabalho, que vamos ver nos momentos seguintes.

Tarcisio Secoli - Fico imaginando a discussão desse tema nos anos 20, logo depois que Henry Ford implantou a linha de montagem. Como os sindicatos estariam tratando essas novidades, sem muita saída para o movimento sindical naquele momento? Hoje vivemos algo muito parecido. A situação é grave, mas é possível encontrarmos saídas no campo dos trabalhadores. Isso passa também pela questão do Estado, que não regulamenta e não gera benefícios que possam minimizar este tipo de coisa.

Algo muito grave é a quebra da solidariedade de classe. O movimento sindical no Brasil hoje está com muita dificuldade de entender isso em função de sua estrutura, de sua atuação. E, ao não entender, não percebe que a relação de solidariedade que tínhamos está se extinguindo.

As políticas de cooptação das empresas são aspecto central na reestruturação produtiva. As empresas necessitam cada vez mais de que os trabalhadores vistam sua camisa, usem o seu linguajar e falem o que o empresário quer. No passado, a luta para ganhar a consciência dos trabalhadores era exclusiva dos sindicatos, dos partidos de esquerda. Hoje temos um forte concorrente, que fica oito horas por dia no local de trabalho falando das benesses do capital, da vantagem do trabalhador em se aliar a esse projeto - e não temos uma ação política mais conseqüente para reverter esse quadro.

Toda vez que se discute esse tema fica a impressão de que morremos de vontade de que volte o velho. O modelo anterior - o fordismo - também era ruim para os trabalhadores. Eventualmente podia proporcionar algum tipo de facilidade em termos de organização de massa, mas se pensarmos no trabalho em si, ele não satisfazia nem dava condições dignas. Os dois modelos são ruins.

Rosa M. Marques - Não gosto do termo globalização. Acho que é mais mundialização porque, na verdade, embora haja elementos sob o aspecto financeiro, o que temos é simplesmente o aprofundamento de uma tendência inerente ao capitalismo.

Esse é um período de inflexão, de introdução de um novo padrão de acumulação capitalista. A crise do final da década de 60 e começo da de 70 é relativa à acumulação fordista, à qual estão associadas todas as outras aqui mencionadas, inclusive a da social-democracia e a da Europa do Leste. Mas há uma grande diferença em relação às inovações tecnológicas anteriores. Pela primeira vez na história do capitalismo, essa inovação, basicamente centrada na microeletrônica, permeia todas as atividades do ser humano. As outras, muito embora tivessem reflexos indiretos sobre todas as atividades, se circunscreviam a alguns setores produtivos. Essa não. É como o nome diz: flexibilidade, propiciar que o aparelho produtivo se reestruture a partir das oscilações da demanda, o que é um ganho do capital em relação a crises anteriores. Isso exige uma mudança brutal nas relações de trabalho.

No período fordista, a incorporação cada vez maior de trabalhadores assalariados estava colada à organização seriada e à forma como se expandia a acumulação. Hoje não. Há um núcleo central no aparelho produtivo e uma massa de pessoas, que seriam trabalhadores sem trabalho, que são incorporados quando aumenta a necessidade das empresas de atender uma determinada demanda. Elas entram e saem. Quando se fala em núcleo central, se tem a idéia de que ele é permanente, estável, tem garantias, não só de direitos trabalhistas, mas de integração dentro da empresa. Isso não é verdade. A precarização permeia quem está fora e quem está dentro.

Essa desregulamentação que está sendo implementada significa destruir o mundo do trabalho tal como era visto, tem implicações profundas em todas as áreas. Há pouco tempo, antes da crise, o trabalho era elemento de integração do indivíduo na sociedade. Trabalhar e depois se aposentar era a trajetória normal de todos, pelo menos no mundo desenvolvido. Hoje não é mais assim. A desregulamentação do trabalho afeta todo mundo, a começar pelo jovem que está saindo da escola e que não tem garantido um emprego. Assistimos a desintegração daquilo que foi possível no capitalismo do período anterior, a criação da coesão social pelo trabalho.

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Jorge - Da mesma forma que o luddismo, no início do século XIX, há hoje um certo tipo de neoluddismo, expresso inclusive pelo discurso anticiência e pela prática terrorista de um Unabomber, que busca responsabilizar a tecnologia pelo desemprego. A cada momento histórico, a tecnologia penetra nos diferentes setores econômicos de forma diferenciada, mas da mesma forma como no início do século XIX, no entanto, ela assume determinadas características comuns pela ausência de regulação.

A tecnologia, em si mesma, possibilita duas coisas: aumento de produtividade e redução do trabalho vivo envolvido na produção. Ela não traz necessariamente o desemprego. Este ocorre pela ausência de ação da sociedade e dos governos, principalmente destes, ao se mostrarem subordinados ao capital financeiro internacional e pouco propensos a enfrentar as conseqüências desse processo.

Há duas alternativas incorretas: uma é considerar que os fenômenos que se observam no mundo do trabalho são internacionais e portanto não temos nada a fazer, como se todos os países reagissem a eles de forma uníssona, com políticas iguais. A outra é considerar que isso é resultado da inovação tecnológica. No Brasil, é um sempre dizer não; não há problemas de emprego, não há problemas no mercado de trabalho. Estes, quando existem, são setoriais, menores, é uma questão internacional e, portanto, não temos o que fazer. Ou então dizem que a questão é tecnológica e, portanto, também não temos o que fazer. Ora, a inovação tecnológica se propõe a aumentar a produtividade e reduzir o trabalho vivo e faz isso muito bem. O que os governos não fazem é buscar políticas macroeconômicas voltadas ao pleno emprego porque a lógica é da concorrência desregulada.

O desemprego - resultante da desregulação da concorrência e dos mercados, da ausência de políticas macroeconômicas apropriadas, dos efeitos da globalização financeira sobre o investimento e o crescimento econômico - é apenas a ponta de um extraordinário iceberg de mudanças no mundo do trabalho, que não têm por causa a tecnologia, nem a suposta globalização, explicações que apenas servem de álibi à ausência de alternativas das forças progressistas.

Ricardo - Quero fazer duas considerações. Uma a propósito do que coloca o companheiro Tarcísio. Estou de acordo em que a crítica ao toyotismo ou à acumulação flexível não pode significar uma nostalgia do fordismo. Mas se critico o fordismo e digo que o toyotismo é um avanço, está faltando ousadia. O que tem faltado para o movimento sindical combativo é mostrar que essas são duas faces da mesma moeda de um modo de produção perverso. E é preciso ir para além de ambas, para além do capital. Para uma sociedade que produza coisas úteis para todos.

O segundo ponto diz respeito à tecnologia. Concordo que sem regulamentação é a selva, o vale-tudo. Tem que haver regulamentação. Mas esse não é um elemento novo. Na primeira revolução industrial, no contexto inglês, não havia regulamentação nenhuma. A classe trabalhadora trabalhava doze, quatorze, até dezoito horas por dia, mulheres e crianças inclusive. Ou seja, num primeiro momento não há regulamentação. É verdade que atualmente há um retrocesso, quer se voltar a uma situação pior do que a anterior.

Esta nova revolução tecnológica é muito mais abrangente, se dá num patamar distinto das anteriores. Não é a tecnologia que causa desemprego. É a tecnologia sob a lógica destrutiva do capital. Esta é a questão central. Caso contrário, convertemos a máquina no inimigo dos trabalhadores e ela não o é. O inimigo é uma tecnologia destrutiva que não se salva sob a lógica do capital. Ela tem que ser inteiramente preservada, mas numa lógica totalmente diversa.

Rosa - É evidente que uma tecnologia poderosa como essa significa ganhos de produtividade nunca vistos. Significa também diminuir a quantidade do trabalho socialmente necessário para a produção de mercadorias como nunca. Mas, inserida na lógica atual do capital, significa desemprego.

Alguns pensadores de esquerda tomam isso como absolutamente dado e não vêem que é a lógica do capital que a rigor traduz a tecnologia em desemprego.

À medida que consideram esta lógica como inevitável, recorrem à proteção social. Isso implica não só o aprofundamento da crise do sistema de proteção como, inclusive, propor a concessão de uma renda mínima, descolada do trabalho, pelo simples fato da pessoa nascer, como um dividendo social. Isso hoje é discutido em toda a Europa e o debate se inicia também no Brasil. Porque consideram que o desemprego veio para ficar. Então, é necessário conceder uma renda para que as pessoas vivam. Ora, essa não é a forma de integrar alguém. Numa sociedade em que a centralidade do trabalho ainda está presente, não se tem como criar dois tipos de cidadão: um que trabalha e é produtivo para o capital, e outro a quem se concede renda.

Outros pensadores de esquerda respondem que a única alternativa é impor uma luta ferrenha para a redução brutal da jornada de trabalho. Porque senão não se consegue garantir a integração social das pessoas.

Tarcisio - De forma geral, culpa-se o trabalhador que está empregado pela crise. Em todos os países se percebe isso. Na Espanha, Argentina, México, qual é a lógica dos governos e do capital? É tentar desregulamentar o trabalho, retirando algumas conquistas, barateando a mão-de-obra e dizendo que com isso fará frente à concorrência internacional e gerará empregos.

No Brasil, o modelito está sendo aplicado do mesmo jeito. Primeiramente, se culpa o salário pela inflação e, então, não existe mais política de correção de salários, acaba-se com a lei que reajustava os salários periodicamente. Incentiva-se ao máximo a terceirização nos locais de trabalho para acabar com conquistas de categorias mais organizadas e colocar trabalhadores fragilizados e sem muita condição de resistência. Depois vem a perspectiva de redução e flexibilização dos direitos: a ofensiva atual, em que o governo responsabiliza os encargos pelo desemprego. E há sindicalistas, como os metalúrgicos de São Paulo, que entram nessa história.

O Almir Pazianotto diz que precisamos acabar com a unicidade argumentando que numa unidade se tem mais força para negociar com o patrão do que pulverizados em diversos sindicatos. A CUT também defende o pluralismo sindical mas não com esse objetivo. Em hipótese alguma concordamos com o sindicato por empresa.

Jorge - Sou daqueles que usam o termo terceira revolução industrial justamente para apontar a profundidade das transformações. Mas elas em si não são marcos definitórios. No fundo, as sociedades podem trilhar diferentes caminhos independentemente das estruturas produtivas. No caso do socialismo existente na Rússia pós-1917, ele se manteve dentro dos marcos do taylorismo e do fordismo. Se quem controla o trabalho é um feitor do patrão ou um membro da burocracia, do ponto de vista das forças produtivas faz pouca diferença, ainda que em outros campos o faça.

Quando limitamos a análise das transformações contemporâneas do capitalismo à questão tecnológica no interior da estrutura produtiva, perdemos a capacidade de dar respostas alternativas a esse processo. O problema central é que a lógica do capital sem freios, sem formas de regulação pública, leva à barbárie. Assim foi nos anos 20 e 30. Quando a esquerda não quis arriscar formas de regulação pública para o controle do capital, quem deu resposta foi a extrema direita. Porque a lógica do mercado auto-regulável desestrutura as sociedades, fragmentando-as e debilita a organização dos trabalhadores, destruindo os elementos capazes de reação. No Brasil, o problema é exatamente esse. De que maneira seremos capazes de reagir a essa lógica preservando as condições mínimas para uma regulação futura? Porque senão, quem vai dar resposta é a extrema-direita. No fundo o discurso que o Fernando Henrique faz é de que a globalização está dada, não podemos fazer nada a não ser políticas compensatórias que já demonstraram sua incapacidade para resolver os problemas.

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Ricardo - Há um discurso de que a lógica da globalização é inevitável, portanto vamos remendar a sociedade global. Parte da esquerda está jogando o melhor da sua energia nisto. Há, porém, uma outra leitura, a de que sob lógica do capital a tendência à globalização e ao desemprego tecnológico é inevitável. Concordo que temos que ter regras de intervenção estatal para abrandar isso. Talvez você, Jorge, pense que isso resolve. Não, no máximo abranda. Você acredita na regulação social-democrata, que é possível regulamentar, social-democratizar um país como o Brasil! A classe trabalhadora respondeu na França e na Itália com movimentos alternativos contrapondo-se à lógica que tem presidido as mudanças. No México há Chiapas, que não é uma coisa de camponês e índio, é muito mais. Há respostas nesse sentido.

Pode-se adotar três posturas: olhar para este sistema e dizer que ele é bom; olhar para este sistema, dizer que ele não é bom, mas incorporar-se a ele tentando minimizar os danos; olhar para o sistema, ser contrário a ele e gastar o melhor do oxigênio na oposição, o que não pode impedir uma alternativa imediata. A Rosa levantou a questão da redução da jornada de trabalho. Isso não é flexibilizar, é diferente. Flexibilizar é abaixar hoje, aumentar amanhã, está no universo da reestruturação produtiva. Reduzir a jornada de trabalho é fundamental porque ameniza - não resolve - o desemprego, mas ao mesmo tempo fere a lógica do capital que hoje é de expulsar a força de trabalho.

Jorge - Por que você chama a regulação, ou seja, a sociedade tomar para si o que é público, de social-democrata? O que é o socialismo senão a apropriação da política pelos trabalhadores e a apropriação das formas de regulação da vida social?

Ricardo - O socialismo é mais do que isso, é a apropriação da política e do mundo da materialidade. É o fim da propriedade privada. Estou de acordo com o fato de que cabe à esquerda buscar intervenções do Estado que minimizem o problema da barbárie, mas esta é a concepção social-democrata mesmo: capital, trabalho, com a participação do Estado, negociam ganhos relativos para todos. Essa batalha é imprescindível, senão temos o vale-tudo. Mas no fundo o problema é que talvez você pense, Jorge, que é possível implantar este modelo de regulação num país como o Brasil, no capitalismo desta fase. Acho isso inviável. Essa é a diferença!

Rosa - Quando foi enfatizado que, dada a lógica do capital, a inovação tecnológica significa, em última análise, apropriar produtividade para o capital e não para a sociedade, isto quer dizer aumentar cada vez mais o desemprego. Cai o número absoluto de trabalhadores em vários setores da indústria. Uma coisa é uma produção seriada, que pressupõe consumo de massa, e outra é uma produção flexível, capaz de fazer com que as empresas vivam bem, mesmo com oscilações da demanda.

Não existe uma ligação direta entre nível tecnológico e emprego. Isto é resultado de relações de força. Essa inovação tecnológica chega num momento de crise de referencial, de crise do pacto social-democrata entre capital e trabalho, estabelecido no pós-guerra, e encontra os trabalhadores na defensiva. Não me diga que os franceses mobilizados conseguiram barrar alguma coisa. Quem estava na rua era funcionário público, defendendo seus regimes especiais. Não vi o resto da sociedade mobilizada e trabalhador francês unido, porque é impossível unir desempregado com empregado. Em relação à França é desemprego massivo de pessoal qualificado, é precarização.

Não há direção política que norteie qualquer luta. No âmbito do sindicato a correlação de forças em relação ao capital é cada vez mais desfavorável. Frente a isso, é necessário resistir mas com propostas e a única que vejo é a da redução da jornada de trabalho. Reduzir jornada de trabalho significa apropriar o aumento de produtividade para os trabalhadores. Essa é a alternativa.

Tarcisio - É necessário que tenhamos políticas públicas de regulação, mas não vamos parar nelas. E isso não é uma política social-democrata, é uma política do que é necessário e possível fazer agora.

No Brasil, nenhum sindicalista discutia o mundo do trabalho. Discutia sindicato, partido... Eu comecei em 1981 e só vim a discutir trabalho muito recentemente, obrigado por essa reestruturação. A luta pela redução da jornada de trabalho é secular e também por si só não resolve. Podemos reduzir jornada mas os avanços tecnológicos, os avanços na organização do trabalho desempregam mais gente do que as máquinas, do que a automação. A redução da jornada de trabalho não é salvação para todos os problemas, mas é fundamental, tem que ser a bandeira central. Quanto à questão da flexibilidade, há uma que é livre, aberta, geral e irrestrita, que é a desregulamentação que eles estão querendo, mas se se consegue, com a redução da jornada de trabalho, uma flexibilização negociada, imposta pelo trabalho, ela pode ser positiva, pode ferir o capital.

Ricardo - O governo FHC é expressão avançada de uma racionalidade burguesa que não é neoliberal, mas sua prática no fundamental está em sintonia com o ideário neoliberal. A social-democracia européia está em crise, foi atingida pelo neoliberalismo e agora está debatendo no campo neoliberal. O Felipe González não é neoliberal, mas age num campo muito próximo ao neoliberalismo. O Mitterrand começou falando em res pública e terminou melancolicamente. Na América Latina, com Menem, Fernando Henrique, Fujimori, Salinas ontem e Zedillo hoje, o ideário é muito parecido, as diferenças são pequenas.

Esse é o contexto de reformas do governo Fernando Henrique, um neoliberalismo tardio, mas ao mesmo tempo - ao contrário do Collor, que era dotado de uma forte dose de irracionalidade - um neoliberalismo racional, o que torna o embate mais difícil. As mudanças na legislação sindical estão em sintonia com isso.

Essa fragmentação da classe trabalhadora, esse processo de terceirização criaram um fosso monumental entre os que permanecem dentro das fábricas com alguns direitos e aquela massa crescente de trabalhadores que eu chamo de subproletariado fabril e de serviços. Subproletariado porque é um proletariado sem direitos que está nas fábricas e fora delas. Na época do fordismo não havia esse fosso. O que era terceirizado era muito pouco. Hoje, a fábrica da Volks em Resende é um exemplo de aonde se está chegando.

Há três modelos dominantes de sindicatos no cenário mundial: um modelo social-democrata de negociação, que também está abalado pela avalanche neoliberal; o modelo anti-sindical inglês com uma política de arrebentar o sindicato, e o modelo japonês do sindicato-casa que adere ao projeto da empresa. O governo FHC se move nesse cenário. O modelo social-democrata não encanta o capital que hoje quer desregulamentação; o modelo antisindical inglês é pesado; então o japonês é a saída. Sou favorável à liberdade sindical, mas sou inteiramente contrário a essa liberdade sindical do Pazianotto que fala em sindicalismo por empresa, o que é nefasto.

Os sindicatos combativos no Brasil devem se horizontalizar, menos Câmaras Setoriais e mais política de ampliação. Porque, quando se pensa na Câmara Setorial está se pensando naquela parcela mais estável da categoria. Mas hoje há uma parcela enorme, crescente, que não é estável. É inconcebível que um sindicato não aceite a sindicalização de um terceirizado, que ele esteja de acordo com a política que demite o terceirizado para preservar o estável. O terceirizado é parte constitutiva da classe trabalhadora, com a diferença de que é mais penalizado. É inaceitável o acordo que o Sindicato dos Metalúrgicos de São Paulo fez pela precarização. Esse projeto legitima um país que não tem direitos sociais e com o tempo o capital vai ter o instrumental jurídico para não contratar mais ninguém com direitos.

Tarcisio - No passado, os sindicatos cometeram alguns erros e agora vamos pagar o preço. Quando o governo vem com essas políticas de desregulamentação da atividade sindical, acabando com a unicidade, abrindo o campo para sindicatos por empresa, em muitos locais de trabalho, pela ausência total dos sindicatos, os trabalhadores vão optar pelo sindicato por empresa.

Junto com a política do capital, de cooptação dos trabalhadores, há uma política errônea dos sindicatos - inclusive muitos da CUT - ao longo de décadas. Muitos sindicatos nunca fizeram trabalho efetivo com suas bases. Utilizaram-se da estrutura sindical para fazer disputa política, debate ideológico. Esses sindicatos vão ter muitos problemas à medida em que, porventura, venha a existir sindicato por empresa. Quem não tem representatividade vai perder base. E na CUT temos muitos sindicatos que têm uma política importante, trabalham com o mundo, menos com a sua categoria. Para combater a política de cooptação temos que organizar no local de trabalho. Essa é uma velha proposta da CUT que poucos sindicatos conseguiram implementar. Os trabalhadores desorganizados ficam à mercê do capital. Dizer que o sindicato que organiza, que luta e negocia algumas coisas é pelego, é não perceber que pelego é o sindicato que deixou as portas escancaradas para o capital fazer o que quer dentro da empresa. E na CUT tem muito sindicato que pelo discurso da negação se enfiou dentro do aparelho.E preciso organizar no local de trabalho para recriar uma solidariedade de classe que infelizmente no último período perdemos. Hoje o trabalhador é mais individualista. Antes, a consciência éramos só nós, o capital só queria mão-de-obra. Hoje ele quer o cara inteiro. Uma tarefa essencial é recuperar a solidariedade dos trabalhadores. A estrutura sindical, com Central, departamentos, sindicatos territoriais, as eleições que fazemos onde a base tem muito pouco espaço de participação, está fadada ao limbo. O rumo é organização no local de trabalho, efetiva, vinculada a um sindicato que possa congregar o trabalho de diversas empresas, incorporando os terceirizados.

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Jorge - A questão do desemprego é um elemento importante, mas é apenas a ponta de um iceberg. A tentativa do Sindicato dos Metalúrgicos de São Paulo vai na direção de criar mecanismos que rompam a solidariedade interna dos trabalhadores e, pior, a solidariedade dos trabalhadores com os excluídos da produção, consumo e cidadania. Porque o sindicato exclusivamente no âmbito da empresa é o pior dos mundos: rompe com os laços de solidariedade entre os trabalhadores e faz aumentar a desigualdade. O trabalhador passa a se interessar só pelo seu e não pelo salário mínimo, pelos direitos para os trabalhadores, por interesses nacionais.

O desemprego, em primeiro lugar, é resultante de uma forma de inserção subordinada da economia na desordem econômica internacional, através da qual o Brasil abre mão de todo e qualquer mecanismo de regulação, coisa que outros países não fizeram e não fazem. Temos uma abertura comercial indiscriminada, uma reestruturação absolutamente predatória, uma desregulação da concorrência absurda. Quem liquidou as Câmaras Setoriais foi o governo Fernando Henrique porque esse processo de desregulação da concorrência é inerente ao projeto liberal. Ele é contra as Câmaras Setoriais, porque é contra qualquer forma de política industrial, de políticas setoriais de defesa da produção e do emprego, assim como toda e qualquer efetiva forma de regulação pública. Outra causa do desemprego diz respeito à valorização do real, às elevadas taxas de juros, aos mecanismos intrínsecos ao processo de estabilização econômica do Plano Real.

São esses grandes eixos que têm causado desemprego e esse não é um processo iniciado no governo FHC. O governo Collor o iniciou, rompeu com determinados laços de solidariedade em nome de abrir a economia para o mundo. Não importa, para eles, que isso tenha reduzido emprego e consumo. Os sindicatos e as forças progressistas têm que se posicionar em relação a isso. E muitas vezes, lamentavelmente, o defensivismo em que foram colocados foi de tal magnitude que aceitamos discutir só a agenda deles. O grande risco é, portanto, manter-se dentro da agenda liberal.

Por isso, a questão da solidariedade é fundamental. Esse processo neoliberal visa romper a solidariedade interna dos trabalhadores e destes para com o resto da sociedade. A tendência é de os sindicatos buscarem defender o emprego e o salário dos seus, e diga-se de passagem que, se não fizerem isso, vão deixar de ser sindicatos. Mas seu grande desafio é conseguir ir para fora, o que é extremamente difícil, porque os de fora não têm expressão política clara. Para tentar incluí-los, é necessário discutir outras coisas: a forma de inserção da economia no mundo, a desregulação da concorrência e buscar mecanismos de regulação. E para isso as Câmaras Setoriais, embora limitadas, foram extraordinariamente positivas.

Rosa - Vejo algumas contradições no governo Fernando Henrique. De um lado se encaminha a desregulamentação, mas, ao mesmo tempo, a reforma previdenciária que foi encaminhada é absolutamente contraditória com isso. Porque o discurso neoliberal era a desoneração dos encargos sociais e o que se fez, acordado com as centrais sindicais, foi intensificar o lado contributivo da Previdência, que pressupõe necessariamente a manutenção dos encargos sociais, já que 2/3 deles são financiados pelas empresas.

Quanto à questão da solidariedade, sou bem mais cética do que vocês. É claro que o caminho é restaurá-la, mas ele pressupõe necessariamente identificação. Quero insistir na questão da jornada de trabalho, ainda que infelizmente não tenhamos condições de propor uma redução abrupta.

Jorge - O Brasil demonstrou uma vitalidade extraordinária na resistência aos desígnios do "Consenso de Washington". Durante toda a década de 80, sob uma ou outra forma, o Brasil resistiu ao neoliberalismo, auxiliado por um fenômeno externo que foi o estouro em 1982 do México, país que, de certa maneira, sempre tem prenunciado os problemas. O governo Collor fez a primeira tentativa neoliberal mas impulsionado também pela ruptura que causou na estrutura produtiva, acabou sofrendo o impeachment, que não ocorreu só por causa de problemas éticos. Isso foi o central, mas houve outros fatores. O Fernando Henrique tenta novamente impor esse processo de subordinação.

A sociedade demonstra certa vitalidade em vários momentos. As Câmaras Setoriais a demonstraram, rompendo na prática com a política do Collor acabando com a política recessiva. Estamos no sexto ano de crise, de abertura absolutamente destruidora da estrutura produtiva e os sindicatos ainda demonstram certa vitalidade. Se esta vai na direção de reforçar os laços de solidariedade e ser capaz de dar a volta por cima, fazendo a crítica a esse processo e oferecendo alternativas, é uma coisa que só a história dirá. Mas existe ainda uma vitalidade muito grande na sociedade brasileira.

Não sei se o governo Fernando Henrique, dada a situação internacional, se mantém nessa rota. Há contradições geradas inclusive pela nossa capacidade de dizer não às políticas, de resistir à desestruturação do mercado de trabalho e à dessolidarização. Essa é a nossa capacidade. E na medida em que a demonstramos, isso acaba obrigando a mudanças de rota e possibilitando a constituição, no futuro, de um outro tipo de hegemonia, onde os trabalhadores possam vir a ter um lugar ao sol.

Ricardo - No final do século XX, o desafio maior que a esquerda tem é o de reconquistar um socialismo renovado e radical. Neste sentido, mesmo concordando em muitos pontos com o que o Jorge levanta, talvez a nossa ênfase seja diferente. É imprescindível para a esquerda que a tentativa fracassada de socialismo do século XX nos auxilie pelo menos a perceber que ele não pode se realizar num só país, muito menos num país atrasado. Ele é uma construção para o conjunto da sociedade, renovada e radical. Aí sim a tecnologia poderá ser colocada a serviço da humanidade e não da lógica do capital. Isto supõe um conjunto de ações e mediações. A diferença que existe na esquerda brasileira é que muitas das ações de mediação estão presas a um contexto da ordem; o desafio é o de, mesmo nas ações do nosso dia-a-dia, mesmo nas negociações, agirmos contra a ordem.

As Câmaras Setoriais, por exemplo, são uma negociação dentro da ordem. O que estou propondo é um desafio mais ousado: resistir e confrontar mais. O Movimento dos Sem-Terra nos dá uma contribuição muito importante. Eles não ficaram nos marcos da institucionalidade. A coisa caminhou com ações concretas. E hoje a ponta da oposição social no país é o movimento dos trabalhadores rurais. Porque eles foram além desses marcos. E possível ter um conjunto de ações imediatas, mas é preciso que tenhamos um projeto global contrário a esse, porque aí calibramos nossa ação imediata com esse projeto. E o melhor da esquerda deve estar voltado para tentar desenhá-lo.

Rosa - Foi a partir da última derrota do Lula que realmente a burguesia conseguiu se unificar e começar a fazer valer seus projetos, porque havia uma força real, que era o Partido dos Trabalhadores e o Lula, se colocando como alternativa de direção dessa sociedade pelos trabalhadores. Na última eleição fomos derrotados e isso significou, em última análise, avanços na unificação deles. Ao mesmo tempo e contraditoriamente, a solidariedade de que tanto estamos falando mais do que um trabalho do sindicato, tem que ser um trabalho partidário, pois só o partido tem condições de unificar o que eles estão tentando tornar desigual.

Tarcisio - A esquerda como um todo tem um desafio, combater a lógica da competitividade, da qualidade total como valor de produção, como mecanismo de gerenciamento nas fábricas. Temos que introduzir a lógica da solidariedade: como pensar em quem está hoje excluído do mercado formal de trabalho, que não tem emprego regular? As políticas que estão sendo adotadas fragmentam e dificultam nosso trabalho, mas o fundamental é a postura dos sindicatos em relação ao trabalho de base. Não tem saída se não houver organização no local de trabalho para começar a resistir, resgatar a solidariedade e mobilizar efetivamente os trabalhadores. O sindicato, da forma como está organizado, não dá conta disso.

Para criar um mundo novo temos que resistir e para isso temos que mudar a forma de intervenção dos sindicatos na sociedade.

José Corrêa Leite é membro do Conselho de Redação de T&D.

Flávio Aguiar é professor de literatura na USP e membro do Conselho Editorial de T&D.

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