Nacional

O poeta Pedro Tierra relata sua ida ao acampamento dos sem-terra em Parauapebas

Para Isabel,

que tece os cordões

da resistência

As pessoas desandaram a correr em todas as direções. Encurraladas. Explosões de bombas, os dentes das metralhadoras mastigando descargas curtas. Primeiro para o alto, para semear o medo. Depois, para colher as pernas, como ceifadeiras, e o estampido seco dos fuzis. Mulheres, meninos correndo sem rumo, ora sobre o asfalto, ora pulando pelos barrancos à margem da estrada. No meio da confusão e do medo, Amâncio. Aquele jeito inseguro, desamparado, corria com os outros, sem se dar conta do que se passava. Acompanhava a esmo os passos do grupo mais próximo. Até sentir nos pés o impacto que o derrubou. Estendido na estrada, sentia o calor e o frio de quem sangra. E não podia mover-se. Ainda reparou, sem atinar com o sentido da dor, que os companheiros corriam para ele atirando paus e pedras para além do seu corpo. De repente, recuaram. O assombro estampado na cara. Moveu lentamente a cabeça para o lado de Marabá e o que viu foi a bota do soldado, o olho vazado do fuzil, o clarão... e a noite. Amâncio era surdo. O sol acusava cinco horas da tarde, na curva do S, na rodovia PA-150, a três quilômetros de um povoado perdido e pobre a quem, um dia, alguém deu o nome de Eldorado dos Carajás.

De um lado, 68 homens do batalhão da Polícia Militar de Parauapebas. De outro, duzentos do batalhão de Marabá. Nenhum deles trazia no peito a tarja com a identificação. Estavam livres para matar. O peito sem o nome escrito era o sinal da premeditação. Passado o susto do primeiro confronto de paus, pedras, foices - ninguém foi ferido pelos dois revólveres em poder dos trabalhadores - e a ira dos deserdados da terra contra as metralhadoras e os fuzis, abriu-se a porta do terror sem limites. Foi dada a senha para a matança. Os soldados foram soltos à caça dos que ainda gemiam pelos barracos, pelas grotas, atirando no peito e no rosto dos sobreviventes à queima-roupa. O plástico preto e a palha de babaçu que cobriam os ranchos foram arrancados e queimados junto com os alimentos e os remédios. A tropa, comandada pelo coronel Mário Colares Pantoja, expôs os corpos de dezenove trabalhadores mortos. Todos homens, adultos. Destroçados pelos fuzis, revólveres ou a golpes de foice. "Missão cumprida. Ninguém viu ", teria dito o coronel. Há testemunhas que viram os corpos de sete crianças, um adolescente e uma mulher estendidos no chão. Ninguém sabe até hoje o destino dessas pessoas. Quando os corpos foram removidos depois do massacre, as luzes de Eldorado se apagaram, para que não houvesse informações precisas sobre o que acontecera ali. Os trabalhadores sem-terra bloquearam a rodovia para reivindicar comida e transporte necessários para seguir até Belém. Queriam negociar a desapropriação da Fazenda Macaxeira: 43 mil hectares de terras ociosas. Ordenou a desobstrução da rodovia PA-150, "a qualquer custo" o governador do estado, Almir Gabriel, com quem queriam negociar. Era 17 de abril.

A cidade insubmissa

A floresta ampara a cidade de madeira verde, palha e plástico preto. A construção dos barracos escapa qualquer ordem imaginada pela vã ciência dos urbanistas. Enlaçados uns aos outros como se temessem sentir-se sozinhos. As chuvas já se foram. O tempo está enxuto. Uns quarenta minutos de caminhada foram suficientes para vencer o pasto, já invadido pela capoeira, e a vereda que corta os brejos e nos traz até aqui. Ofusca ficou sob as árvores, ao lado da Casa de Tábua, uma espécie de posto avançado do acampamento. A partir dali, só a pé. "Acabou-se a mordomia", dissera Isabel enquanto dobrava a barra do jeans e calçava as botas para enfrentar a lama.

A impressão que me vem é de que acabo de entrar no acampamento do Robin Hood, do filme de Kevin Costner. Atravesso sobre a pinguela um estreito curso d'água que tem nascentes próximas. A pinguela é apenas um tronco tombado sobre o córrego para permitir atravessá-lo sem molhar as roupas. O engenheiro vem nos saudar: "já melhorou alguma coisa, logo mais faremos um viaduto". Alarido de crianças mergulhando na água fresca. Mulheres morenas lavando roupas.O acampamento da Fazenda Macaxeira se estende sobre uma ondulação do terreno de modo a dominar a planície à sua volta. Os barracos se abraçam em torno de uma pequena praça com um palanque de madeira tosca, utilizado para assembléias e celebrações. A essa hora do dia, com o sol rachando tabocas lá fora, a floresta protege o acampamento do calor e filtra a luz que incide sobre os rostos desses sertanejos e sertanejas castigados pela vida. Rostos que realizam aquela mistura sutil de dor, astúcia, medo, coragem e vagas luzes de esperança, quando recebem o sopro de uma palavra amiga: o rosto dos acossados.

Meus olhos registram distraidamente os movimentos da mão invisível que me conduz. Já vi outros acampamentos e sei que não é fácil organizar a vida diária, os pequenos conflitos, as disputas mesquinhas - e humanas... - sem rigorosa disciplina. Uma das condições essenciais para a disciplina é a fixação de um objetivo claro, estruturante do comportamento do indivíduo ou do grupo que o converte numa dimensão essencial da vida. Um objetivo capaz de submeter as pessoas que o escolheram, mesmo, às mais difíceis condições para consegui-lo. Um objetivo gerador dessa capacidade de abnegação e sacrifício inconcebíveis para as pessoas que levam uma vida normal. O Movimento dos Sem-Terra oferece um contorno concreto ao sonho desses deserdados. Converte o sonho vago num objetivo claro: conquistar a terra para viver melhor. Ou simplesmente para viver. E vai além. Oferece a ponte entre cada indivíduo e seu objetivo: a organização.

A lei seca é regra básica no acampamento. Cachaça, não. A excepcionalidade é estabelecida pela Coordenação, para os momentos de festa de uma comunidade que habitualmente não tem muito o que comemorar. A regra é a abstinência. De outra forma seria impossível administrá-lo. Sentado no palanque ouço essa pequena história da aplicação da lei. O sem-terra flagrado pela segurança com duas garrafas de cachaça dentro do acampamento é advertido em público e, diante de todos, o membro da Coordenação abre as garrafas com o gargalo para baixo, até esgotar o precioso líquido diante dos olhos incrédulos dos acampados. "Isso é pecado mortal. Esse infeliz não pode ter lugar no céu ...... murmuram os sedentos, condenados à abstinência. "Teve gente que quis deitar no chão e comer a terra molhada..."

Amparada por essas árvores, 860 famílias vindas de diferentes lugares, religiões, cultos se submetem às mais difíceis condições para realizar o sonho que as unifica e solda o laço essencial entre elas: conquistar um pedaço de terra para viver e trabalhar em sossego, com os seus. Aqui a água que se bebe vem diretamente do riacho onde se banham as crianças e os adultos. O sanitário é a floresta. A noite é povoada de mosquitos e pesadelos. Muitos ainda convivem durante a noite com os tiros, os gritos, os gemidos, os pedidos de socorro, as cenas do massacre. A fome ronda os barracos. A fome é um lobo que come de dentro pra fora. A comida, quando vem, é racionada. A malária, uma ameaça permanente. As diarréias, um fato. O médico não quer molhar os pés na lama. Só atende quem atravessar os brejos e o pasto até a Casa de Tábua.

O ressuscitado

Não havia mais como fugir. Estendido sobre a margem do asfalto. Tudo era sangue, clamores e gemidos ao redor. "Canta, filho da puta. Tu não disse que era valente?" Há poucos metros, o berro do soldado ou pistoleiro. Nesse hora ninguém divide um do outro. E o estampido. Eles berram assim para espantar o medo que vem sempre de tocaia, pelos lados. Também para se sentirem fortes, capazes de dominar a besta do terror que soltaram dentro de si mesmos. Era a caçada aos feridos. Estavam agora matando a golpes de arma branca. Como quem sangra porco. Pra não gastar balas.

O medo tamanho anoiteceu o corpo por alguns instantes. Ou terão sido horas? No limite, quando a força, os ferros, as armas somam todas de um lado, e do lado de cá permanece apenas a dor acusando que a vida prossegue, as regras do tempo são outras. O tempo não obedece aos minutos, se mede em horas assim, intermináveis. Organizou o que restava de energia e arrastou-se penosamente até a estiva de corpos destroçados há alguns metros, na margem da estrada. Olhos fechados para revogar a ordem do tempo e convocar uma noite que pusesse fim à eterna agonia daquela tarde. Guiava-se pelos ouvidos e pelo nariz. Um cheiro adocicado de sangue de gente, de fezes, de morte. Os homens cheiram mais forte durante a caçada. Quando estão assim, em mutirão de matança.

Ouviu vozes se aproximando. Passos. Pressa. Estavam dando o arremate final à caçada. Prendeu a respiração. Morto, esperou a morte. Estavam carregando os corpos. Para onde? Deu adeus ao corpo que era agora apenas um fardo de sobressaltos. De repente foi suspendido por mãos fortes e lançado sobre outros corpos, na carroceria de um caminhão. Sentiu o baque pesado e úmido, outro corpo, depois mais outro. O cheiro de sangue, de fezes, de morte entrando pelas narinas. Nessa instância tirânica do desespero, morto entre os mortos, era a derradeira forma de reencontrar um fiapo de vida.

A vida prossegue

Os fogões mantêm acesa a vida sob os barracos. Suspensos sobre os jiraus de madeira, os fogões de barro são a peça mais importante da casa. Em torno deles se move a vida dos acampados. Sirvo-me na panela de um pouco de arroz e feijão preto, hoje misturado com duas ou três fatias de torresmo. Fico me indagando por que viemos exatamente para este barraco e não outro. A mão invisível não se ocupa em explicações desnecessárias. Age. Silenciosa e eficaz. Termino meu almoço e lavo a vasilha para que outro possa comer. Uma bucha de capim, um restinho de sabão, me servem. A água, na bacia de alumínio, é regrada. Os latões são divididos com as famílias mais próximas.

Enquanto percorro, depois de almoçar, o estreito corredor das ruas entre os ranchos, reparo no desenho caprichoso das esteiras, trançadas em palha de babaçu. Prestam-se a múltiplas funções. São esteiras, cortinas, divisórias, feitas por mão de artista, reproduzindo a tradição secular herdada das comunidades indígenas e dos negros. Alguém me relata que Amâncio, o surdo, era quem melhor trançava e ensinava a trançar esteiras. Conheci, nesses sertões do norte, algumas comunidades onde a pobreza exige a contribuição de todos ao ofício de sobreviver. Nelas se estabelecia uma cuidadosa divisão do trabalho. Para os homens adultos a lavoura, o trato dos animais, o serviço pesado. Para as mulheres, o mais longo: a casa, a cozinha, a almofada da renda de bilros, o tear, a colheita, os filhos. As crianças se encarregam de buscar água na fonte, apanhar lenha no mato e ajudam na colheita. Para os idosos, os portadores de deficiência, os moucos, os tolos, os surdos, os cegos de nascença, esses anjos tortos, tratados com tolerância maior que nos hospitais psiquiátricos ou nos asilos, certos tipos de trabalho artesanal em palha, fio de algodão ou barro que resultam nessas pequenas maravilhas que fazem as utilidades domésticas dos sertanejos: cestos, tapitis, esteiras, quibanos, chapéus, redes de dormir, cobertas, potes, vasilhas de barro. Descobriram e aplicaram a terapia ocupacional com discreta sabedoria.

Acompanho Isabel e Walmir, nosso motorista, até um ranchão mais alto e mais amplo. Ao fundo, fixados no tapume, uma bandeira do Movimento dos Sem-Terra, um cartaz da campanha do Lula, quando navegava em caravana pelo São Francisco, em julho de 1994. Se estivesse em outro lugar diria que estou entrando na prefeitura. De dentro da massa de acampados, que a essa hora está às voltas com o almoço minguado ou outros afazeres domésticos, se destaca aquilo que se poderia definir como os nós da rede que recolhe e costura os sonhos heterogêneos dessa cidade insubmissa. Uma pequena coordenação se senta nos troncos suspensos que nos servem de bancos, para conversarmos.

Além da necessidade de alimentos e remédios, assunto obrigatório em qualquer acampamento, o que ocupa a cabeça desses jovens dirigentes é a questão da segurança. Aqui ninguém tem nome ou tem nomes trocados, por motivos óbvios. A vida me trouxe algumas vezes a essa região. Fui testemunha de perdas irreparáveis para os trabalhadores, não muito longe daqui, na região do Bico do Papagaio. É preciso distinguir com precisão os movimentos do inimigo. O inimigo, aqui, não se perde muito verbo para identificá-lo: são os fazendeiros que antes aforavam os castanhais, os madeireiros e aqueles que, nos últimos vinte anos, converteram a floresta em carvão e pasto para o gado.

A memória do massacre invade permanentemente nossa conversa. Nessa terra, onde a violência brota com o nascer do sol e é uma espécie de segunda natureza que percorre os dias todos da vida, é preciso distinguir o que há de novo, no seu exercício. A luta entre os posseiros, unidos por laços familiares e a oligarquia dos castanhais, se perde na sombra da floresta. É imemorial. No tempo e nos sinais físicos. Os oprimidos não têm papel ou monumentos onde fixar sua história. As castanheiras, morrendo de solidão no meio dos pastos, serão, talvez, os testemunhos silenciosos, inúteis, das espantosas tragédias que se enterraram aqui.

O que há de novo não é a promiscuidade entre a Polícia Militar e os grandes proprietários de terra. Essa relação é tão antiga quanto a existência dos dois. O que há de inédito é que a chegada do Movimento dos Sem-Terra arregimentou a legião dispersa de lavradores ou ex-lavradores. Concentra centenas, às vezes milhares de pessoas à frente dos órgãos públicos, nas estradas ou ao pé das cercas de uma fazenda ociosa. Habituados a liquidar um a um os pequenos grupos de posseiros dispersos e a fazê-los desaparecer na floresta, os latifundiários se vêem agora diante de uma situação desconhecida. Privatizar a força armada do estado e movê-la para matar em massa tem um preço mais alto. Não é possível esconder. O coronel Pantoja se enganou ao dizer "Missão cumprida, ninguém viu." Esse é o fato novo. A sociedade inteira testemunhou a tragédia pelos olhos de uma jornalista corajosa, a quem a mão do acaso tinha conduzido à curva do S, naquela tarde.

O terror seletivo

A conversa é curta e densa. Aqui, o coração da violência reside no cativeiro da terra e na escravidão do trabalho. A terra cercada, ou os castanhais apropriados sem cercas, pela oligarquia são o nó para o qual convergem os fios tecidos pelos cegos teares da dor e da brutalidade, como exercício permanente de opressão, como pedagogia. A propósito do exercício da violência, recordo a reflexão de Antônio Houaiss: " ... o Brasil é um país de concentração de renda e riqueza desde sempre. É um país de concentração de terra desde sempre. E é um país de violência desde sempre. Violência tão espontânea, tão natural, que não é violência, é um direito. Quando você exerce a violência na plenitude de sua consciência você está exercendo o seu direito, porque o outro é que aparece como violento por não obedecer".

O outro aqui são os sem-terra. Quem exerceu o direito - essa é a palavra, direito quer dizer dentro da lei - à violência foi o- coronel Pantoja e seus homens. E quem ordenou a violência na plenitude da consciência do seu poder, "desobstruam a estrada a qualquer custo", foi o governador Almir Gabriel. Mas tão espontânea e naturalmente que a sociedade brasileira, passado o primeiro momento de indignação, já não se dá conta da necessidade de uma investigação séria sobre o massacre. Sem a identificação dos soldados, sem a tarja no peito, sem a cautela das armas utilizadas na chacina, o IPM se encaminha para uma conclusão previsível: os mortos são os culpados. Prendam os mortos. E condecorem, por bravura no cumprimento do dever, os soldados do coronel Pantoja.

É improvável que depois do massacre de 17 de abril, em Eldorado dos Carajás, a Polícia Militar do Pará volte a se envolver em operações repressivas nos próximos meses. O que costuma ocorrer em situações semelhantes? Nessa região, a experiência ensina, quando a PM formalmente reflui para os quartéis, aparecem os pistoleiros. Alguns deles, soldados sem farda fazendo extra ou ex-soldados que se dedicam ao arriscado ofício de limpar terras, a soldo de fazendeiros ou grileiros que se implantaram na região. O pistoleiro não se aventura pela mata. Evita o risco de se expor em um território que não é o seu. O pistoleiro espera com a paciência do caçador que o líder sindical, o religioso, o dirigente de comunidade venha ao comércio. Expedito Ribeiro morreu numa rua de Rio Maria. O pai e os irmãos Canuto foram sequestrados em casa, levados e assassinados na estrada. O Padre Josimo Tavares morreu ao entrar no sobrado em que funcionava a CPT, numa esquina de Imperatriz. A Irmã Adelaide Molinari foi alvejada na rodoviária de Eldorado, em 14 de abril de 1985; Arnaldo Delcídio, presidente do Sindicato, que a acompanhava naquela tarde e escapou ferido, foi assassinado na rede, dentro de casa, em maio de 1993, oito anos depois. Quando, talvez, já se julgasse a salvo dos seus caçadores. Eis como opera o terror seletivo, metódico, profissional da pistolagem a soldo dos grandes fazendeiros, madeireiros e donos de castanhais. Os posseiros aprimoraram o método para defender-se dele. A vida de um pistoleiro tampouco vale muito, nesta região. Encontram-se sob a mira dos posseiros ou da ameaça permanente da queima de arquivo, dos seus próprios contratantes. Fica a indagação: como um movimento de massas, organizado nos moldes do MST, encontrará aqui o caminho para alcançar seus objetivos?

Levanto-me com a coordenação. Há mais pessoas visitando o acampamento, o que significa que há tarefa para todo mundo. Esperam ansiosos uma caravana de Belém com alimentos, remédios e a solidariedade indispensável para manter de pé este acampamento. Volto a percorrer as ruas entre os ranchos. A edificação mais importante da Macaxeira é o Colégio. Para atender às setecentas crianças em idade escolar. Aqui se revezam professoras para introduzi-las nas primeiras letras e nas idéias organizadas em cartilha própria do MST. E também para dividir com as mães a árdua tarefa de acompanhá-las nessa espera sem data até a desapropriação e demarcação da Fazenda. Essa espera sem retorno não pode deixar de ser ação permanente, ensina a experiência do Movimento dos Sem-Terra nos acampamentos. Esse é outro fio visível da rede que tece a resistência dos acampados. Para o MST, investir em educação é tão importante quanto o gesto de ocupar a terra, um gesto, aliás, que se encontra no cerne da pedagogia do movimento. Aqui, educar é o aprendizado coletivo das possibilidades da vida. As dores e as vitórias são face e contra-face do mesmo processo.

Dois testemunhos

A conversa com a viúva de João Rodrigues é penosa. É a fala baixa, contida, sitiada por silêncios prolongados. Essa sertaneja que veio do Piauí ainda não digeriu a dor do massacre. Queria, com seu homem, apenas um pedaço de terra e sossego para criar os filhos. Vai até o rancho e retoma com algo nas mãos. Guarda neste retrato três por quatro, envolto num lencinho, a memória do marido. Um carinho, um cuidado para que não se perca aquele último sinal que restou dele. Ela sabe que prisão mesmo, moço, é só para os que morreram. Para os que já se foram pra debaixo da terra. Soldado, mesmo, não vai preso. Eles não prendem eles. Vai criar, sem João Rodrigues, os seis filhos vivos. Entre eles Robson, livre e nu, misturado com terra, vadiando seus três ou quatro anos com os outros de sua idade, no centro da pequena praça do acampamento.

Enquanto percorremos os labirintos do acampamento vou conversando com o jovem que nos conduz. Ele veio do Maranhão como tantos aqui. Vou chamá-lo Juvêncio, para comodidade deste registro. O pai conquistou uma área na Fazenda Rio Branco. Hoje se chama Palmares, como o Quilombo. Agora estou aqui e quero meu pedaço de terra. Mas não tenho pressa. Para mim a terra pode esperar. Tem gente que precisa mais do que eu. Tenho apenas 18 anos. Sou militante do Movimento. Foi nele que aprendi o que sei. E sei que a terra apenas, não basta. E a saúde? E a escola? Quando a gente é analfabeto é o mesmo que dizer, cego. A escola do movimento, na cartilha e na prática nos ensina a enxergar o mundo.

Quando acampamos em Marabá, ano passado, lá no Incra, eles demoraram a nos atender, como sempre. Chuva bateu. Ocupamos a escola em frente para fugir da chuva e para ensinar os meninos. Enquanto teve acampamento, teve escola. Assim, a gente planta consciência. Isabel enfrentou o diretor do Colégio, explicou nossos objetivos e nós ficamos lá. Depois, quando saímos, deixamos tudo lavado e limpo. O acampamento, a bem dizer, é uma escola prática. Aqui a gente aprende muito mais que numa sala de aula. E quando junto com a prática do acampamento vêm as letras, é melhor. Teve medo no 17 de abril? Tive. Todo mundo tem. Coragem não é quando não existe medo. Coragem é quando a gente vence o medo que bebeu no leite da mãe ou foi aprendendo sob os açoites da vida.

Caminho de volta. Deixo o acampamento pela vereda que leva à Casa de Tábua. Durante o percurso vamos nos encontrando com grupos de acampados, em geral jovens, transportando na cabeça, nos ombros uma carga preciosa: caixas de papel, lápis, cadernos, cartilhas, lousas, material destinado às crianças em idade escolar. O acampamento da Macaxeira não descansa. Compreendo que para eles, os sem-terra, esse é um caminho sem volta. Quando o coronel Pantoja deu o sinal para o massacre de 17 de abril, estava, de fato, queimando as pontes de retirada. Daqui é só para a frente. Toda a força concentrada pela dor, pelas mortes, será posta a serviço do sonho: a conquista da terra.

Palmares: quilombo vivo

Negros, em sua maioria. Maranhenses, piauienses, tocantinenses, baianos, cearenses. Os ranchos são mais sólidos e organizados em ruas mais amplas que no acampamento da Macaxeira. Aqui os problemas são de outra ordem. Passada a fase árdua da conquista da antiga Fazenda Rio Branco, ao pé da Serra dos Carajás, no município de Parauapebas; passado o tempo das lutas do acampamento da área do Cinturão Verde; passado o tempo dos espancamentos e da repressão policial em frente à Companhia Vale do Rio Doce, agora é tempo de construir. Depois do tempo de derrubar as cercas, vem o tempo de disputar os recursos públicos para fazer a terra produzir e converter pela ação coletiva o acampado em produtor e em cidadão.

As angústias aqui são outras. Na primeira conversa em casa de Joaquim, as preocupações giram em torno da demarcação da terra conquistada, dos recursos do Procera - Programa Especial de Assentamentos de Reforma Agrária-, da abertura das ruas na agrovila que estão construindo no assentamento e do escoamento da produção. Se alguém imagina que uma vez conquistada a terra a luta está ganha, engana-se. Aqui se dá a experiência concreta de uma comunidade - o termo comunidade se aplica à perfeição como comunidade de objetivos - para a qual, quando se derruba a cerca de um latifúndio, não cai com ela o Estado brasileiro. Outras cercas se levantam. As cercas da polícia ou do Poder Judiciário, fiel servidor da propriedade, mesmo quando esta, por ociosa, é um crime contra um povo faminto. E a disputa pelos recursos públicos é uma batalha interminável, pontilhada de avanços e recuos. A comunidade que se constituiu e teve a audácia de pôr abaixo uma cerca para fazer a terra produzir é punida em todos os passos seguintes. Não obtém os financiamentos necessários à fase de implantação da unidade produtiva sem muita mobilização, pressão sobre os órgãos públicos e muita disputa na ponta do lápis. Os financiamentos do FNO - Fundo Constitucional do Norte - ou do Procera são tão difíceis de arrancar quanto a própria conquista da terra. E como se o Estado, privatizado pelos interesses dos latifundiários, ou simplesmente paralisado pela burocracia, se vingasse cobrando uma parcela a mais de sacrifício, de indignação pela primeira ousadia, aquela de romper com o código sagrado da propriedade privada.

A Agrovila

Percorremos em cinco, dentro do fusca, alguns quilômetros até o lugar escolhido. Uma máquina da Prefeitura trabalha na abertura de ruas e praças. A poucos passos, logo depois de atravessarmos o curso d'água que circunda a área, uma gigantesca castanheira, protegida por um pequeno bosque, preside a paisagem. Cheiro de terra revolvida. Cheiro de coisa nova. O barro liguento adere aos sapatos enquanto andamos. Ficamos todos de salto alto. De vez em quando temos que raspar o solado em algum tronco caído para aliviar o peso e seguir adiante. A discussão entre nossos guias, dois coordenadores do assentamento e um terceiro assentado que encontramos trabalhando para erguer o ranchão da escola, é sobre que destino será dado ao pequeno bosque à entrada da agrovila. Um diz que é para deixar como está. Outro, que deve ser brocado embaixo, removidos os arbustos e fixados bancos para aproveitar a sombra fresca da tarde. O terceiro, que deveria se fazer ali um campo de futebol para o assentamento. Não há acordo, a discussão prossegue.

A primeira construção já está de pé: a escola. Um rancho amplo, comprido, ventilado com cobertura e paredes divisórias - de uma classe para outra - feitas de palha de babaçu. Joaquim me diz com simplicidade: a maior parte das pessoas que conheço foram para as cidades em busca de escola para os filhos ou de tratamento de saúde. Na cidade, às vezes, encontram escola para os filhos, mas não encontram emprego para os adultos. Na roça tem emprego para os adultos mas não encontram escola para as crianças. Por isso a escola para nós é tão importante quanto a estrada para chegar até Parauapebas ou o financiamento do banco. E nós queremos que nossos filhos aprendam mais coisas que nós. Não podem crescer como os bichos brutos da mata. A escola de certa maneira é a alma do assentamento. E o material escolar? - pergunto. Nós arrancamos do governo. Mas as cartilhas são nossas. Não queremos que o governo envenene a cabeça dos meninos. Tem lugar por ai, povoados de trabalhadores, que têm mais de dez anos e não existe escola. Aqui é a primeira providência que tomamos.

Os construtores

Percorro o espaço amplo, cingido pelo pequeno rio de águas limpas. Os três guias acertam entre si a divisão entre eles de um tronco seco, ainda de pé. "Aqui tem madeira para nós três e ainda sobra." A mudança dos assentados para a agrovila está prevista para daqui a quinze dias. Discutem entre eles como será a transferência da escola. As crianças vem antes, com as professoras, para não interromperem as aulas ou aguardam na escola velha enquanto as famílias fazem a mudança? São questões que equacionam com alegria, porque alegria é o que preside a tudo aqui.

Aos poucos os ranchos vão sendo levantados. Entre os escombros das Velhas construções da Fazenda Rio Branco. Há espaço de sobra para todos. Na trempe, que lhe serve de fogão, sob um rancho ainda sem paredes, uma senhora nos prepara um café, estimulante pelo aroma - sinal de que a vida humana aqui recomeça sua incessante oficina -, pelo sabor e por esse calor que se reparte entre nós. O ofício de poeta, de certo modo, pode-se resumir na observação dos gestos humanos e na sua tradução pela subversão da palavra. Não encontro outra palavra para descrever o que testemunho aqui: alegria. A limpa, a poderosa alegria de quem constrói, para si e para os seus. Essa alegria menina, que percorre todo o ato de criação livre. A alegria de quem ocupa o espaço que lhe cabe no mundo; de quem recolhe da floresta, com trabalho e suor, a madeira, a palha, os materiais para construir sua casa. Hoje, eles são meninos e meninas. Riem por qualquer motivo ou por motivo nenhum. Estou diante da invencível alegria desse povo, sempre capaz de reinventar esperanças.

Eles são construtores. Legitimam-se diante da sociedade como construtores de realidades novas. Aqui antes era a terra cercada e ociosa. Eles a ocuparam para ter um lugar e para fazê-la produzir. Hoje estão sendo fincados os alicerces de uma cidade. Uma cidade de negros e brancos pobres. Uma pequena cidade de gente livre, altiva, que se recusou a morrer de fome ou comer lixo nas grandes cidades. Legitimam-se não pela propriedade, mas pelo trabalho, nesse mundo em que o trabalho está em extinção. Legitimam-se porque fazem História, num mundo que já proclamou o fim da História. Esses homens e mulheres são um contra-senso porque restituem à vida um sentido que se perdeu, porque reinventam a humanidade, sua grandeza, suas misérias. Aqui, ao abrigo das flores, entre uma e outra conversa com esses peões que talvez nem conheçam as experiências das lutas urbanas, me ocorre esta reflexão que sem dúvida não é inédita entre os leitores de T&D. Há quase vinte anos, aqueles operários do setor de ponta da economia cobraram o espaço que lhes cabia na esfera do mando, da política. Eles desempenhavam um papel decisivo no modelo econômico da época. Eram a mão-de-obra qualificada do coração industrial do Brasil. Hoje, alguns milhares de deserdados, expropriados da terra, atendem ao chamado do Movimento dos Sem-Terra. Não aprenderam a fazer outra coisa na vida senão amanhar a terra, com ferramentas rudes. Do ponto de vista econômico são desimportantes. O que os faz comover a nação? Haverá razões diversas. Identifico uma: carregam consigo uma dimensão ética profunda, que escapa a eles mesmos e é decisiva para uma sociedade que deseja reencontrar-se com a decência - essa elementar noção de justiça que se traduz no gesto dos famintos pondo abaixo o arame que cerca uma terra ociosa.

Ainda há muito barro na estrada, no regresso ao assentamento. Ofusca está com o combustível baixo. Passamos por um grupo de assentados, todos de bicicleta, carregando os quartos de um animal carneado. Pelo tamanho e pela cor, vermelho-escura, deve ser anta. Vêm felizes com o resultado. Chegaram algum tempo depois de nós e fizeram a partilha num pequeno rancho perto da escola.

Deixamos Palmares para trás. Carrego comigo angústias e esperanças. Conheço histórias e histórias de gente humilde e lutadora que conquistou a terra com muito sofrimento e a perdeu na disputa dos papéis. Nos processos. No Judiciário, esse poder paralítico. Um poder que se relaciona com a sociedade como se fosse uma ferrugem que vai corroendo, como, soda cáustica, a construção de novos direitos. A luta dessa gente merece melhor destino.

Um vento vigia na Curva do S

Há uma cruz de madeira tosca, sem lavrar. E o vento. Há uma pequena casa de madeira pintada de negro. E o vento. E uma capelinha, com caibros mastigados pelas descargas. Vigas, tábuas, portais estanhados pelos balaços. E o vento. A mangueira ao lado mostra um galho morto, testemunha. Recolho nas mãos um pouco da terra deste lugar. Abriga um silêncio devastado e só. Esta terra nunca mais será apenas pó. A leve poeira que migra para outras regiões da memória. Carrega um insuportável fardo de assombros. E o vento que me ronda, enquanto caminho. Há uma fileira de cruzes. Dezenove cruzes como sentinelas. São apenas madeira gritando em silêncio. O que pode o grito se não se perpetua? E o vento me ronda, enquanto caminho entre os barracos. Lado a lado, ainda de pé, estão os esqueletos dos barracos, à margem da estrada. E o vento povoado de gemidos, de súplicas, de estampidos. Um vento que busca em vão discernir a ferocidade da tarde de 17 de abril.

Regresso. Mais algumas horas e estarei de volta entre as pessoas normais, deste impossível pais normal. Alheias à tragédia que aconteceu aqui. Para elas, Eldorado já é uma confusa lembrança, entre outros tantos desastres. Desabamentos, explosão no Shopping Center de Osasco, Caruaru, Santa Genoveva. Entre todos esses rumores que nos entram pela sala de jantar, os meios de comunicação destilam aos poucos nos nossos ouvidos que os sem-terra estão se afastando da lei. Que estão ocupando órgãos públicos e impedindo as pessoas de trabalharem. De forma sutil, nos conduzem à conclusão de que os sem-terra merecem nossa consideração, nosso respeito, e até vagos gestos de apoio desde que continuem se deixando matar sem reagir. Volto à reflexão de Antônio Houaiss: "... Violência tão espontânea, tão natural, que não é violência, é um direito. Quando você exerce a violência na plenitude de sua consciência você está exercendo seu direito, porque o outro é que aparece como violento por não obedecer. "

E o vento me ronda, enquanto caminho entre os esqueletos dos barracos. Um vento de agonia. Um vento sem misericórdia. Que levanta redemoinhos e presságios. E me invade o peito, armado de areia como L'harmatan, o vento do deserto. Toco nos troncos, nas forquilhas dos barracos. Estão fincadas aqui há mais de sessenta dias. As chuvas já se foram. Levanto os olhos e recolho o derradeiro significado dessa viagem ao território do massacre: no alto das forquilhas está brotando um ramo verde. A vida reencontra seu curso. Como crianças correndo entre os barracos dos acampamentos, estão brotando as forquilhas dos ranchos queimados na Curva do S.

Pedro Tierra é poeta.