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O projeto de lei que regulamenta a parceria entre pessoas do mesmo sexo tem provocado polêmica e espertado o preconceito e a irados setores conservadores. Está na hora da sociedade estender aos homossexuais os direitos de cidadania já conquistados por outras chamadas 'minorias sociais'

Estamos entrando para o século XXI sedimentando a luta em defesa dos direitos humanos, tirando da clandestinidade e dando voz a todas as chamadas minorias sociais. Já o fizemos em relação às mulheres quando conquistamos o direito ao voto, ao atendimento integral à sua saúde, a garantia dos direitos reprodutivos e sexuais, o acesso ao mercado de trabalho e maior possibilidade de ocupar os espaços de poder. Em relação a crianças e adolescentes, conquistamos o Estatuto da Criança e do Adolescente, uma das legislações mais avançadas, que resgata estes segmentos sociais como sujeitos de seu processo e desenvolvimento. Avançamos em relação aos direitos étnicos e culturais, assegurando à população indígena a demarcação de suas terras e a preservação de sua cultura. Também avançamos no combate ao racismo e à discriminação do povo negro, resgatando e valorizando a cultura afro-brasileira. Está mais do que na hora de garantir direitos de cidadania aos homossexuais.

Vivemos numa sociedade que nos educa para a heterossexualidade como a forma correta: e aceita de viver a sexualidade. Portanto, a expressão do desejo e da atração sexual através da homossexualidade ou da bissexualidade para muitos ainda é considerada algo fora dos padrões, fora da normalidade e até mesmo uma doença.

A visão cristalizada e normatizadora apenas reforça os estigmas e preconceitos acerca da homossexualidade e não leva em conta a construção social da sexualidade que articula a singularidade, a história de cada pessoa e as relações com o ambiente social. Em se tratando da sexualidade, a existência de uma norma, de padrões de comportamento que nunca abarcarão todas as formas de ser e de se expressar tem como resultado a classificação e estigmatização das pessoas, o controle social de seus corpos e desejos. É claro que, para se impor de forma tão rígida, a heterossexualidade exclui a diversidade existente na realidade, imprimindo em nosso cotidiano binômios antagônicos e estruturas bem definidas do que é ser homem e mulher, dos comportamentos desejados e esperados de cada um, que vão, desde a forma de vestir até gestos e atitudes. "Mulher deve ser delicada, meiga e afetiva. Já o homem deve ser objetivo, assertivo e detentor do conhecimento e da autoridade." Como se homens e mulheres não aprendessem a desenvolver estas capacidades, como se elas fossem inerentes a um ou outro sexo e como se estas diferenças fossem matas e naturais.

É necessário romper com esta naturalização da construção das relações entre homens e mulheres que foram sedimentadas socialmente e que excluem o diferente. Esta exclusão e marginalização de gays e lésbicas reafirma a imposição da vivência clandestina e silenciosa de suas emoções, o não compartilhar, seus amores, sonhos e seu cotidiano com a família, com os amigos. Este silêncio é uma tentativa de eliminar as diferenças, como se a sociedade, negando a homossexualidade, pudesse impedir, sua existência.

Ao mesmo tempo que convivemos com esta violência e com os freqüentes assassinatos de gays, lésbicas e travestis, conhecemos a existência de uma tribo indígena, no norte do país, cuja convivência com os homossexuais se diferencia da grande maioria da população. Nesta tribo, onde as tarefas e o trabalho são divididos entre homens e mulheres de forma bastante rígida, a partir do momento em que um homem assume sua atração por outro homem, apesar de passar a integrar o grupo das mulheres e desenvolver as atividades femininas ele não é desqualificado ou desvalorizado como homem. A ele e a qualquer outra pessoa da tribo é dado o direito de expressar livremente sua orientação sexual. O respeito e a aceitação pelo diferente ganham outros contornos éticos e morais.

Atualmente, outro aspecto que deve ser considerado são os trabalhos e pesquisas que apontam para a predisposição genética da homossexualidade. Não é determinante, mas a vivência e a construção da sexualidade através de nossa cultura, de vínculos afetivos e familiares podem consolidar ou não esta predisposição. Nascemos seres sexuados e no processo de desenvolvimento e construção da sexualidade a pessoa se percebe homo ou heterossexual.

Um aspecto significativo quando falamos na homossexualidade é o fato de que na maioria das vezes o fazemos nos referindo aos gays, como se estas palavras fossem sinônimos. A falta de visibilidade das relações homossexuais femininas é grande. Somam-se aí questões contraditórias. Uma delas diz respeito às discriminações sofridas pelas mulheres, ao machismo que se reproduz junto ao movimento homossexual. As lésbicas não ocupam o mesmo espaço na mídia ou na coordenação do movimento. A contradição se estabelece quando constatamos ser mais aceita pela sociedade a troca de afeto e de carinho entre as mulheres. Entretanto, na hora de aceitar a homossexualidade feminina e as mulheres assumirem sua lesbianidade, o preconceito e a discriminação parecem potencializar-se. Talvez porque as mulheres são consideradas as maiores responsáveis pela manutenção e transmissão de valores culturais. A lesbianidade representaria uma ameaça a estes valores e por isso a situação das mulheres homossexuais fica mais isolada e marginal.

É importante salientar que quando estamos falando de homossexualidade, estamos falando para além da atração por uma pessoa do mesmo sexo, da escolha do objeto sexual. Estamos falando da sexualidade de forma mais ampla, dos valores culturais e da forma como convivemos em sociedade.

Dentro desta perspectiva, apresentei o Projeto de Lei que regulamenta a parceria civil registrada entre pessoas do mesmo sexo e também a Proposta de Emenda Constitucional para incluir o que em 1988 não foi possível no capítulo dos direitos individuais e coletivos: a não-discriminação por orientação sexual, assim como já existe em relação a religião, sexo e raça. Estes projetos tiveram ampla repercussão na mídia e na sociedade. O tema da homossexualidade hoje se faz presente nas discussões, conversas de diferentes segmentos setores da sociedade. Inclusive já foi tema para personagens de novelas e muitas entrevistas em talk-show. Soma-se a essa repercussão a realização da 17 a Conferência Internacional de Gays, Lésbicas e Travestis, que teve como sede o Rio de Janeiro em meados de 1995. Também em 1994, quando das eleições presidenciais, o PT foi o único partido que colocou em discussão, no seu programa de governo, o direito ao casamento homossexual. Gerou polêmica e o tema não constou do programa defendido por Lula. Entretanto, a discussão iniciada nesta época foi a fagulha para os projetos destemidos e a abertura da sociedade para a discussão do tema. O projeto de lei que disciplina a parceria civil registrada entre pessoas do mesmo sexo e que foi aprovado na Comissão Especial, sob a forma de substitutivo do deputado Roberto Jefferson, por 11 votos a 5, vai para votação em plenário no mês de abril. O projeto visa basicamente regularizar uma situação já existente e possibilitar que parceiros homossexuais tenham assegurado o direito a herança, benefícios previdenciários, seguro-saúde conjunto, declaração conjunta de imposto de renda, direito à nacionalidade - em caso de estrangeiros que tenham parceiro/a brasileira - e consideração da renda conjunta para aquisição de imóvel. O contrato deverá ser registrado em cartório e pode ser feito por pessoas solteiras, viúvas ou divorciadas. Contempla questões de patrimônio, deveres, impedimentos e obrigações mútuas.

O projeto não vai incentivar ou aumentar o número de homossexuais, apenas vai assegurar direitos para uma situação que já existe e ajudar as pessoas a assumir sua condição e gradativamente serem mais aceitos pela sociedade. Certamente vai ajudar famílias e pais de pessoas homossexuais a enfrentar o preconceito, ajudando seus filhos/as a viver numa sociedade que insiste em não respeitar as diferenças.

Países como a Dinamarca, Noruega e Suécia regulamentam a união entre homossexuais. Groelândia, Hungria, Islândia, Bélgica e Espanha reconhecem a união civil. Canadá, França (234 prefeituras) e Estados Unidos (26 cidades) reconhecem o contrato de união civil. A maioria destes países - incluindo Noruega, Alemanha, Áustria e Holanda - concedem asilo político por motivos de discriminação por orientação sexual. Desde 1991, a Anistia Internacional considera violação dos direitos humanos a discriminação ou qualquer ato de violência contra homossexuais. Até mesmo a tradicional revista The Economist recentemente teve como matéria de capa a discussão sobre a união/parceria entre pessoas do mesmo sexo.

Tenho recebido em meu gabinete muitas cartas e opiniões favoráveis e também contrárias ao projeto. Foi-me enviado um material escrito por adolescentes em sala de aula acerca do projeto: "Este projeto nada mais é do que uma autorização para que os homossexuais possam viver uma vida normal sem preconceitos e sem medo." "Sou a favor do projeto apesar de não simpatizar muito com a idéia de duas pessoas do mesmo sexo se amarem (...) mas se amam e estão dispostos a enfrentar preconceitos da sociedade inteira, a lei deve estar aí para ajudar as pessoas e não discriminá-las." Embora nem todos concordem com a orientação homossexual, no entanto o respeito à diferença e à singularidade de cada um é uma marca destas opiniões. Este talvez seja um aspecto importante e um aprendizado necessário para uma parcela dos parlamentares e da sociedade que não consegue se desprender de seus valores morais e religiosos e perceber o que de fato o projeto propõe: direito de cidadania para um segmento social que representa 10% da população, que paga impostos como todos nós, e que portanto não deve continuar marginalizado, excluído ou discriminado por ter uma orientação que difere da maioria da população.

Muitos profissionais que participaram de debates ou mesmo das audiências públicas realizadas pela comissão que discutiu o projeto também merecem destaque quanto a suas contribuições. O psiquiatra Ronaldo Pamplona mostrou que desde 1975 o Código Internacional de Doenças foi se modificando e com ele a visão acerca da homossexualidade. Do capítulo de desvio e transtornos sexuais passou para o capítulo das doenças mentais, especialmente pelo sofrimento e pressão que sentem ao se perceberem diferentes. Com isso o sufixo ismo, que designa doença, é substituído pelo sufixo dade, que quer dizer modo de ser. Em 1995, os psiquiatras revisores do CID concluem que a homossexualidade não se sustenta como diagnóstico médico e a retiram do código de doenças. Todas estas alterações apontam para uma nova visão acerca da homossexualidade compreendida como "forma de expressão da sexualidade e que diz da atração sexual por pessoa do mesmo sexo".

O jurista Edson Fachin abordou o "direito à orientação sexual como direito personalíssimo, atributo inerente e inegável da pessoa humana. E como direito fundamental surge o prolongamento dos direitos da personalidade, imprescindíveis para a construção de uma sociedade que se quer livre, justa e igualitária". O advogado Rui Fragoso ressaltou a importância e necessidade do Direito avançar em consonância com os movimentos políticos e sociais. "As leis devem ser criadas para assegurar direitos e possibilitar uma vida digna para todos os cidadãos. Os movimentos e as transformações sociais exigem hoje do Direito um posicionamento frente a situações já existentes rompendo com o silêncio e a omissão tão comuns nesta área".

Como diz Ricardo Balestreri, presidente da Anistia Internacional no Brasil, "este projeto coloca o Brasil em outro patamar na discussão dos Direitos Humanos", e nos coloca na vanguarda desta questão na América Latina.

Direitos Humanos e Cidadania são a principal bandeira deste século e também deste projeto.

Marta Suplicy é deputada federal, vice líder do PT na Câmara Federal.