Cultura

Nelson Ayres tem a vocação para a liderança de grupos instrumentais, como a da Orquestra Jazz Sinfônica, da qual é maestro até hoje.

Em 1955, aos 7 anos, Nelson Ayres ganhou da avó seu primeiro instrumento: um acordeão, devido a seu fanatismo por Luiz Gonzaga. Vivia-se a febre do acordeão, estímulo para vários garotos que se transformariam em grandes músicos. Alguns, como Dominguinhos e Osvaldinho do Acordeão, para ficarem; outros, como Wagner Tiso, João Donato e o próprio Nelson, para chegarem ao piano.

Escolha estimulada pela mãe pianista, o primeiro professor de piano, o húngaro Paulo Urbach, será também seu primeiro professor de música popular. O interesse pelo jazz nasceu nessa época, quando ingressou num conjunto que existe até hoje, o São Paulo Dixieland Band.

No ano dourado, 1968, Nelson Ayres ingressou na Fundação Getúlio Vargas. Mas, como tantos outros jovens de sua geração, não escapou às encruzilhadas do tempo: uma longa greve de estudantes jogou por terra os projetos de um futuro administrador de empresas. Seis meses sem aula, seis meses enfiado "de cabeça" na música. Reprovado por falta, quando voltou às aulas viu que não tinha mais nada a ver com aquilo. Arrumou as malas e "zarpou" para os Estados Unidos.

Considera-se o primeiro aluno brasileiro da célebre Berklee (Berklee College of Music, em Boston). De volta em 1972, juntou-se com Roberto Sion, Zeca Assumpção, Hector Costita, Bolão, Buda e outros craques da música paulista para fundar a Big Band Nelson Ayres, uma orquestra de ensaio que começou se reunindo nas noites de segundas-feiras "para se divertir" e quando se deu conta estava tocando para o Teatro Augusta lotado. Experiência que durou oito anos, começava ali a revitalização da música instrumental que iria dar no boom do final dos anos 70.

Mas o forte de Nelson Ayres será a vocação para a liderança de grupos instrumentais, que continuou em seguida com a formação do Pau Brasil. E depois, em 1991, com o convite para reger a Orquestra Jazz Sinfônica, cargo que ocupa até hoje.

Qual foi a idéia originária da Jazz Sinfônica?

A idéia foi do Arrigo Barnabé que, na época - 1989 -, era assessor de música da Secretaria de Cultura do Estado de São Paulo. O projeto era criar uma orquestra sinfônica que desse continuidade à tradição das grandes orquestras de rádio e TV do passado, já chamadas de jazz sinfônicas. E com ela não deixar morrer a tradição dos nossos grandes arranjadores, como Radamés Gnatalli, Lyrio Panicali, Leo Perachi, Guerra Peixe, Pixinguinha e tantos outros que escreveram para sinfônica. Eu fui convidado para assumir a regência no começo, mas só pude aceitar um ano depois de criada a orquestra.

Mas reviver a tradição é só parte do trabalho. A outra parte é seguir em frente, usando essa tradição e fazendo novas propostas dentro da música sinfônica popular. Coisa que a gente tem feito com um certo sucesso.

Esse ir em frente consiste em quê?

Localizar novos arranjadores, novos músicos e novas formas de fazer música popular para sinfônica. Uma das formas que utilizamos é ter continuamente convidados de todas as tendências da música brasileira. Já passaram pela orquestra Tom Jobim, João Bosco, Ivan Lins, Milton Nascimento, Zizi Possi, Leila Pinheiro, Egberto Gismonti, Wagner Tiso, Sivuca, Naná Vasconcelos e muitos outros. No momento em que preparamos um repertório para cada um deles estamos de fato criando novas linguagens que se adaptem à linguagem de artistas de ponta.

O repertório de qualquer orquestra tradicional vem "da prateleira". A obra está pronta, o maestro dá apenas a sua interpretação. Mas ao examinar o repertório da Jazz Sinfônica se verá que 90% das notas que os músicos tocam foram escritas especialmente para ela. Essa é sua característica básica. Já devemos ter cerca de quatrocentas composições e arranjos escritos especialmente para a orquestra. Estamos formando um repertório sinfônico de música popular brasileira de todas as tendências, o que é muito importante.

Como é a estrutura interna da orquestra?

A Jazz Sinfônica tem oitenta integrantes e leva esse nome porque é uma jazz band: um grupo de saxofones, trompetes, trombones e bateria, ao qual se agrega um grupo de instrumentos sinfônicos, violinos, violoncelos, fagotes, oboés, flautas, trompas etc. Isso cria um problema para nós, porque aparentemente pode dar a impressão de que é uma orquestra que toca música americana. E o que tocamos de jazz é relativamente pouco. 95 % do repertório é de música brasileira.

Mas há um tratamento jazzístico à interpretação, não é?

O jazz deu à música popular uma metodologia de ensino. As primeiras escolas que ensinaram música popular foram escolas americanas ligadas ao jazz e esse método veio para o Brasil. E é uma música muito boa por causa da improvisação, que sempre existiu na música brasileira, mas que foi mais apurada artisticamente pelos jazzistas americanos. Então usamos recursos do jazz, tanto a improvisação individual como técnicas, do mesmo modo que usamos toda a tradição européia e as técnicas brasileiras de tratamento rítmico e melódico criadas e desenvolvidas por nossos compositores.

Descreva esta brasilidade.

A originalidade está no esquema de divisão, no ritmo que se põe na melodia. Isto que está presente na técnica brasileira de orquestração, e não só na obra para orquestra, vem de Villa Lobos. Ele passou a brasilidade para a música erudita e o mundo inteiro o aplaude por essa estrutura técnica brasileira. É difícil especificar do ponto de vista técnico no que consiste esse espírito brasileiro. Os orquestradores brasileiros pós-Villa Lobos têm uma ligação muito grande com as tradições musicais brasileira e européia. Eles juntam as duas e chegam a uma terceira, que é maravilhosa.

Qual outra contribuição você destaca na Jazz Sinfônica?

É descaretizar os músicos sinfônicos, que sempre foram muito caretas, fechados dentro daquele seu mundinho. Muitos deles chegaram na orquestra só para ter um trabalho a mais e acabaram vendo que existe uma outra forma de encarar a música, mais alegre, criativa, visceral. E isso tem influenciado o trabalho desses próprios músicos e, por intermédio deles, tem influenciado um pouco o clima das outras orquestras. Isso mostra que a longo prazo é possível mudar uma coisa meio rançosa que existe entre as orquestras.

Os maestros todos se odeiam, os pianistas clássicos falam mal uns dos outros. É um negócio mesquinho, pequeno, que na música popular não existe. Em contrapartida, a Jazz Sinfônica é a única orquestra que tem três regentes. Em qualquer outra sinfônica o regente faz o programa inteiro, porque imagina: "vão me comparar com o outro, de repente vão gostar mais do outro..."

Qual a sua avaliação da Jazz Sinfônica como escola técnica para os músicos que tocam nela?

Ela permite que o músico toque regularmente no mesmo grupo, o que pode ser um fator de aprimoramento, pois ele tem de estar sempre cuidando do seu nível técnico para fazer frente ao repertório. Esse aspecto é importante. Mas gostaria que a orquestra fosse mais, fosse um caldeirão de formação de novos músicos e principalmente de novos arranjadores. Mas pela sua estrutura, o músico que entra pode ficar lá o resto da vida, não tem uma renovação que talvez fosse interessante. Sempre pensamos em abrir a JS para novos arranjadores, mas infelizmente há pouca gente com um mínimo de gabarito para escrever para orquestra. Isso significa que está na hora de nos preocuparmos mais com o lado do ensino. Mesmo porque, com o sintetizador, o conceito de arranjo mudou muito. Os arranjadores agora não são mais artesãos, mas pilotos de computadores. Músico que saiba escrever um arranjo direto no papel é coisa cada vez mais rara.

Quais as vantagens e desvantagens que o computador trouxe para o trabalho de arranjador?

O computador torna a música mais barata. Pode-se sozinho criar com vários timbres diferentes, coisa que no passado não se conseguia fazer a não ser que fosse um multi-instrumentista e possuísse um estúdio de no mínimo dezesseis canais, que custava uma barbaridade. Hoje, com 3 mil dólares é possível adquirir um equipamento considerável.

E o resultado artístico?

Esse é o grande drama. As dificuldades surgem quando a pessoa tem vivência de computador e nenhuma de orquestra. Ela acha que apertando um botão de saxofone, escrevendo e dando certo no computador é só colocar numa orquestra que também dará certo. Ingenuidade brutal!

Na Jazz Sinfônica morremos de medo de arranjos feitos em computador. Freqüentemente vai dar uma caca. Tem nota que não existe no instrumento ou que está completamente errada para efeito de equilíbrio entre os diversos instrumentos. Há problemas de timbres, intensidade de som, combinações de tessituras etc. Eu escrevo no computador, é mais simples, é bom para substituir o lápis.

Então é melhor primeiro escutar como antigamente?

Sim, escutar independentemente da orelha. Os arranjadores da TV Record nos anos 60 chegavam no trabalho e perguntavam: "quais músicas a orquestra vai tocar hoje?". Definido o repertório, não tinha piano, não tinha nada, só uma mesa. O compositor mostrava a música ao violão e o arranjador ia escrevendo. Cinco ou seis arranjadores na mesma mesa e enquanto isso do lado a orquestra estava ensaiando outra música a toda altura. Veja a capacidade deles: escrever sem nenhum instrumento um arranjo complicadíssimo. Esse era o nível de abstração do pessoal antigamente.

É como o Villa Lobos dizia, o ouvido de dentro não tem nada ver com o ouvido de fora...

É, e a orquestra não tem nada a ver com o computador, pode-se fazer a mesma analogia. E, curiosamente, quando apareceram os primeiros computadores, no começo dos anos 70, eu fiz um curso sobre sintetizadores nos Estados Unidos. Na época, os sintetizadores pareciam um PABX, cheios de fios. É um instrumento relativamente novo, e imaginava-se que ele iria democratizar de tal forma a música que resultaria num grande desenvolvimento qualitativo dela. Mas aparentemente não aconteceu isso, ocorreu uma brutal queda de nível artístico. A quantidade de músicos aumentou barbaramente, mas a qualidade não é melhor do que era na década de 60, quando não havia computador nem sintetizador. Pelo contrário, acho que a década de 60 foi uma das mais criativas. É a mesma coisa que achar que com o editor de texto aparecerão melhores romancistas...

Maestro, pode-se dizer que nesses quase 10 anos de existência a JS já formou uma sonoridade caraterística?

Ela tem uma personalidade que não está muito no som. É a forma de se apresentar, mais alegre, descontraída, que passa para a música. Por isso ela cresce muito no palco. É uma orquestra que entre o ensaio e o show tem uma diferença incomensurável. Essa personalidade é dada também por seu repertório e pela justaposição de músicos de tradição erudita e músicos de tradição popular. Esta junção lhe dá, pela mistura, uma força criativa.

Quanto à sonoridade, ainda é muito deficiente, mas isso decorre do fato de que nunca tivemos as condições mínimas necessárias para trabalhá-la. A orquestra sempre ensaiou numa sala minúscula onde não se consegue ouvir as coisas direito, os metais ficam muito altos, todo mundo reclama, aí toca com tampão de ouvido. Não há condições para se refinar a sonoridade. Parece que agora vamos começar a fazer ensaios fora, no Memorial da América Latina, o que me faz acreditar que a orquestra vai dar uma melhorada muito grande no nível técnico.

A Jazz Sinfônica tem um público próprio?

Ela tem uma tradição muito grande de trazer convidados para seus concertos mensais. Mas temos feito concertos sem convidados, mesmo no Memorial da América Latina, e lota do mesmo jeito. Num dos últimos concertos, convidamos um instrumento, o saxofone. Três grandes saxofonistas - Teco Cardoso, Carlos Malta e Vinícius Dorim - grandes músicos, mas não estrelas de público. Assim mesmo lotamos e trezentas pessoas não conseguiram entrar. O mesmo acontece quando tocamos em outras cidades.

Qual é o vínculo da Jazz Sinfônica com a Universidade Livre de Música (ULM)?

Em primeiro lugar, um vínculo burocrático, porque a ULM é o departamento ao qual a orquestra está subordinada, e porque a maioria de nossos ensaios é feita na ULM. Existe também o vínculo afetivo, com a escola, os professores, os alunos.

Mas não acho que a ULM tenha até hoje conseguido alcançar seu objetivo inicial. A idéia do Arrigo - a ULM é também uma idéia do Arrigo Barnabé - era a de uma escola de música que quebrasse os modelos existentes, que pudesse oferecer de tudo. Para isso não poderia ter currículos fixos, para se afirmar como uma escola livre, como o próprio nome sugere, um centro de convivência e experimentação. Deveria haver uma interação muito maior entre os cursos, os corpos pré-profissionais como a Orquestra Sinfônica Jovem e a Banda Sinfônica Jovem, e os corpos profissionais como a Jazz Sinfônica, a Banda Sinfônica do Estado de São Paulo, o Coral Sinfônico e até a própria Osesp, a Orquestra Sinfônica do Estado de São Paulo.

Infelizmente a ULM acabou tendendo para currículos fixos, tradicionais. Temos agora uma nova administração que aos poucos está conseguindo mudar essa realidade, tenho grandes esperanças no futuro próximo.

A ULM não está sendo desmontada?

De forma alguma, isso é uma noção que tem sido levada a público por pessoas interessadas em combater as propostas mais arejadas que se pretende implementar na ULM. O problema começa, no verdade, na Secretaria de Cultura do Estado de São Paulo, que tradicionalmente é administrada por um político ou por alguém do meio universitário, nunca por um profissional da cultura. E essas pessoas, tanto os acadêmicos como os políticos, tendem a ver a cultura de uma forma clássica, convencional. No entanto, para estar viva, a cultura precisa ser iconoclasta, transformadora, capaz de propor novos caminhos. E a maioria dessas pessoas, principalmente os políticos, tem medo de se meter em confusão. A tendência do político, independentemente do partido, é ser sempre muito convencional e até mesmo quase reacionário em relação à cultura. Qualquer coisa diferente, como escola livre de música ou orquestra sinfônica que não toca música sinfônica, incomoda alguns setores. É como fazer um show de uma banda rap falando contra a polícia. São coisas que a cultura oficial, "chapa branca", absorve com dificuldade. Então, tradicionalmente, nas secretarias de cultura dos estados temos a política no primeiro plano e não a cultura. É esse o grande problema.

A tendência dos políticos, quando administram a área cultural, é deixar a sua marca, e para isso tendem a deixar de lado, às vezes inconscientemente, as coisas feitas por seus antecessores. Então, depois da morte de Eleazar de Carvalho, a Secretaria da Cultura resolveu criar uma nova orquestra sinfônica, remodelando a Orquestra Sinfônica do Estado de São Paulo. Esta tornou-se a menina dos olhos da secretaria, que deu a ela todas as condições possíveis e imagináveis e relegou as outras a ficarem exatamente do jeito que estão. Assim, para a Jazz Sinfônica, não houve nenhuma melhora, pelo contrário.

Você diria que a política prejudica a continuidade do trabalho na área cultural?

Quando o governo do estado resolveu reformar o prédio do ex-Deops, a idéia era transferir a ULM para lá. Mas, em vez disso, optaram por fazer uma tal Escola Superior de Música. Ninguém sabe o que é isso, não existe projeto, ninguém diz porque ela seria superior ou porque deveria existir. Em que ela será diferente da ULM ou do Conservatório de Tatuí, que é uma escola muito boa mantida pela mesma secretaria? É a tendência de deixar marcas próprias, assim como se faz com os teatros. O governo está transformando a Estação Júlio Prestes, em São Paulo, num teatro fantástico, o que é muito bom, só que o Memorial da América Latina está entregue às baratas.

Existem hoje no Brasil muitos bons profissionais em administração cultural. Por exemplo, as administrações da Cinemateca, do Masp, do Centro Cultural São Paulo, da Fundação Cultural de Curitiba, da Fundação Cultural de São José dos Campos. Pessoas que têm formação em administração cultural, que conhecem o funcionamento da máquina e que, ao mesmo tempo, têm uma ligação direta com a cultura. É impossível entender a situação da Jazz Sinfônica e de outras orquestras sem entender este aspecto.

Então a Jazz Sinfônica não será sediada no prédio do ex-Deops de São Paulo, que está sendo restaurado e recuperado para ser um importante espaço cultural?

Se depender do secretário de Cultura Marcos Mendonça, quem vai ficar lá é a tal Escola Superior de Música, ligada à Orquestra Sinfônica do Estado. Atualmente, a marca política, a menina dos olhos, é a Sinfônica do Estado, que corre um enorme risco de ir para a sarjeta numa próxima administração, justamente por ter sido a menina dos olhos da administração atual. Infelizmente esse é o panorama que se tem com as secretarias de Cultura sendo usadas por prefeitos e governadores como presentes a serem agraciados a aliados políticos. Mas os chefes políticos um dia vão entender que as secretarias de Cultura, tanto estaduais como municipais, são o principal meio de comunicação dos governadores e dos prefeitos com os formadores de opinião.

A atividade de uma secretaria de cultura dá uma cara para o governo frente a jornalistas, artistas, professores, que são mais sensíveis àquilo que está acontecendo na cultura. Alguns políticos já estão vendo isso. Quando escolheu Rodolfo Konder para a Secretaria Municipal de Cultura de São Paulo, o Maluf encontrou um caminho para suavizar sua imagem junto à opinião pública. Foi também com esse tipo de política que o ACM ganhou a simpatia de gente de peso da cultura brasileira. Parece que a tendência é de os políticos perceberem que não dá para brincar muito com cultura. E a própria comunidade cultural está tomando consciência da sua importância. Exemplos disso foram o movimento que levou Ricardo Ottake à Secretaria de Cultura de São Paulo no governo Fleury e o poder de pressão alcançado pelo pessoal do cinema. O aparecimento dos cursos de administração cultural nas universidades é outro dado importante.

Há também a tendência a desburocratizar a área cultural com a transformação das secretarias de cultura em fundações, como em Curitiba e São José dos Campos.

Você concorda com a tese de que vivemos uma certa crise de criatividade na MPB?

Como observador não muito ligado à questão, tenho a impressão de que a música popular anda em ciclos. Teve um ciclo fenomenal na década de 50, com a bossa nova; houve outro muito interessante na década de 60; nos anos 70 ocorreu um descenso, subindo novamente no começo dos 80, com o aparecimento de grandes cantores e instrumentistas. Nesse movimento ondulatório, hoje estamos em algum lugar misterioso, no fundo do vale ou começando a cair ou acabando de cair.

Em geral?

Muitos artistas novos, com a regionalização da música, estão se viabilizando em sua própria terra. Mas eu também não sei em que medida esta música é verdadeira. O mangue beat e outras músicas, em que ponto da curva se encontram, num ponto incipiente ou já deram tudo que têm para dar? É comércio, só para se dançar, ou vieram para ficar? Não há ainda um distanciamento histórico, não se pode dizer se a música do Chico Science será ouvida daqui a vinte anos. Alguém vai ouvir Gabriel Pensador em 2020? É esse o parâmetro da qualidade.

A sua formação teve desde o início um forte componente prático mas também um lado teórico. Como foi essa combinação?

Eu tive a vantagem de não entrar em conservatório tradicional. Tive professores particulares de várias matérias e a primeira escola que segui seriamente foi a Berklee, que é uma escola pragmática. Lá eles ensinam mesmo o que você vai usar no dia-a-dia. Voltando para o Brasil, achei que minha formação tinha muitos buracos na parte conceitual, aí fui estudar música na Escola de Comunicação e Artes da USP (ECA). Foram três anos na Getúlio Vargas, três na Berklee e três na ECA, nove anos de faculdade e nenhum diploma.

Você não pode ensinar em faculdade...

É, eu dirijo uma orquestra sinfônica de oitenta músicos, estudei nos Estados Unidos, gravei com Deus e o mundo, escrevi arranjos, e não posso dar aula em faculdade.

Qual sua avaliação sobre o ensino de música no Brasil? Como ele combina essas duas grandes matrizes pedagógicas, a européia e a americana?

Eu tenho a impressão de que a formação européia, embora valorize muito o metier do músico, tem um enfoque mais conceitual, da teoria, da forma etc. A ECA era uma escola com muitas viseiras, baseava-se na idéia de que a música de concerto é a única boa e digna de ser ensinada. Na ECA e nas escolas brasileiras superiores, que são orientadas pelo paradigma europeu, eles se recusam a olhar para o lado, ver além da tradição musical européia, chegam no máximo até a Escola de Viena, que são os dodecafonistas. Já na escola americana, eles ensinam como se virar na vida profissional, preparando o aluno para ganhar a vida como músico. Ultimamente se observa uma tendência a querer juntar as coisas. Por exemplo, a Unicamp já tem um curso de música popular mais arejado, embora ainda não tenha conseguido juntar tudo. O fato é que os músicos já estão querendo ser mais abrangentes, fundir o erudito e o popular.

Qual é a diferença entre as duas escolas em termos de currículo? O que fazem um aluno da Berklee e outro da ECA?

A Berklee tem uma vantagem, assim como a maioria das universidades americanas: você faz o seu currículo lá dentro. Há algumas matérias básicas obrigatórias e o resto você escolhe. Se quer estudar musicologia ou arranjo, se quer estudar o estilo de escrita de Duke Ellington ou cursar música para cinema, e assim por diante. Essa é a vantagem do sistema americano, a abertura para que o aluno se oriente. Numa escola como a ECA se estuda o que a escola determina, embora a maioria das matérias não capacite o aluno a pagar seu aluguel no dia seguinte. Esse é um problema seriíssimo do nosso ensino.

Um ensino que se propõe a formar concertistas eruditos que irão passar depois por um longo treinamento, ao final do qual se tornarão músicos solistas ou de orquestra...

Eu diria que a situação é pior do que isso. Se alguém for ganhar a vida como músico, não tem tempo de seguir a vida acadêmica, pelo menos nesses padrões. É muito difícil administrar sua vida e seu tempo de modo a ser doutor e, ao mesmo tempo, um bom músico. Então, nessas escolas há o risco de termos acadêmicos formando outros acadêmicos, completamente desvinculados da realidade cultural brasileira.

Pode-se afirmar que desvinculados não só da realidade cultural, mas também da prática musical, mesmo da européia?

Provavelmente. A ECA, por exemplo, é uma escola silenciosa. As pessoas têm medo de tocar, tal a pressão, a exigência dos professores sobre os alunos. Por isso talvez é que existe hoje uma tendência, que reúne gente muito séria, querendo fazer um trabalho em outra direção, na Unicamp, na Santa Marcelina, na Unesp, por exemplo. E com essa tendência obrigar a ECA e outras escolas a se remodelarem, se não quiserem perder terreno.

É bom olhar para o que vem acontecendo nas universidades particulares. Algumas já não privilegiam mais a quantidade, mas a qualidade do ensino que oferecem. Estão se capacitando para concorrer com as grandes, mesmo porque sabem que isso é um bom negócio. No ensino de música, a tendência é que as faculdades particulares evoluam para a criação de cursos de música altamente qualificados. Existe grande espaço no mercado para os músicos formados em escola, porque ser músico já é uma opção profissional viável no Brasil. Vejo por aí a mudança da universidade pública, porque haverá uma hora em que ela terá que acompanhar a particular, cujos resultados têm melhorado muito ultimamente. A saída seria pela universidade particular e não pela pública, que é quase impermeável à mudança.

Por que as escolas tipo ECA predominam?

A ECA é a demonstração da característica ruim do nosso ensino - essa história de acadêmico formando acadêmico - da qual todas as escolas, em todas as áreas, se ressentem. Mas tudo isso precisa ser relativizado, porque dessas escolas, inclusive da ECA, saem alguns grandes músicos, que se formaram e se aprimoraram. Recentemente, tivemos o primeiro Prêmio Visa de Música Popular Brasileira Instrumental. Entre os finalistas havia três alunos da ECA. São grandes músicos, o que mostra que não é tão ruim assim. Ruim é a mentalidade, meio reacionária.

Mas não se pode falar em ensino sem lembrar da formação de um músico que toca outro tipo de música, o que está acontecendo na escola do Olodum, no Candeal, na Mangueira, em Campinas e em vários outros lugares. São milhares de molequinhos, muitos deles tirados da rua, aprendendo música de percussão com formação musical. Em vez da bandinha ou canto orfeônico, que era a iniciação musical que se dava nas escolas, está sendo dada iniciação musical ligada à força da cultura local, o que pode vir a ser algo muito mais poderoso do que a gente imagina. E ao mesmo tempo está se criando uma disciplina rigorosa nas crianças, com professores, pedagogia e tudo.

Que papel joga a indústria cultural hoje? Ela é um freio à criatividade?

No fim do ano passado o governo da Bahia divulgou uma pesquisa na qual o item diversão (axé music, as bandas, o forró) já era responsável por 4% do PIB do estado, mais do que o turismo. Para a instalação de uma indústria automobilística, que vai gerar 4 mil empregos indiretos, o governo dá tudo. E no Brasil, a indústria da música é muito maior do que a automobilística. Tem o músico, o pessoal que trabalha na gravadora do disco, na loja, na rádio, na casa de show, o garçom do bar, o segurança, o técnico de som. Há um campo imenso para crescer, mas acham que é perfumaria, que cultura é acessório. Isso é de uma burrice monumental. Nos Estados Unidos só o cinema isoladamente já é a primeira indústria do país!

Eu sou da época em que ao tocar na televisão se ganhava cachê, a TV pagava. Hoje se paga para ir à TV! O artista deixou de ser mão-de-obra para se tornar produto que precisa ser administrado empresarialmente e cuja imagem precisa ser trabalhada, com todas as vantagens e desvantagens que isso oferece.

A indústria cultural tem a vantagem de fazer com que mais gente tenha acesso aos bens culturais - a própria competitividade gera a regionalização - e a desvantagem de um artista não ter lugar porque não consegue se ver como produto. A indústria cria também o fenômeno dos nichos, a segmentação do mercado. Tem, por exemplo, uma cantora como a Fortuna, que canta só música judaica e já gravou vários discos. Aí vem um cara que faz a música de Belém do Pará, outro que faz a do Maranhão, e todos vendem muito no seu respectivo nicho. O que pode ser muito bom, inclusive para a Jazz Sinfônica, que conseguiu a sua fatiazinha. Tudo isso é um fenômeno mundial com o qual a gente vai ter que conviver.

Ozeas Duarte é secretário nacional de Comunicação do PT.

Paulo Baía é economista, professor na PUC-SP.