Economia

Como o Brasil gasta no resto do mundo muito mais do que este gasta aqui e como boa parte da dívida externa é de curto prazo e vence nos próximos meses, é inegável que estamos mergulhados em crise cambial, da qual no momento não se vê a saída

A partir de agosto de 1998, o mercado financeiro internacional começou a se fechar para o Brasil. Logo em seguida iniciou-se um fluxo ininterrupto de saída de capitais, sob forma de moeda forte, que nem a elevação ao dobro da taxa de juros logrou deter. Em agosto e setembro cerca de 30 bilhões de dólares deixaram o país. Como o Brasil gasta no resto do mundo muito mais do que este gasta aqui e como boa parte da dívida externa é de curto prazo e vence nos próximos meses, é inegável que estamos mergulhados em crise cambial, da qual no momento não se vê a saída.

É importante entender as razões desta crise. Elas são basicamente duas: um sistema financeiro internacional descontrolado, em que imperam os movimentos especulativos de imensas massas de capital, originárias dos países desenvolvidos, grande parte das quais buscam ganhos de curto prazo aproveitando-se de juros elevados em "mercados emergentes"; e um governo brasileiro que estabilizou os preços, abrindo o mercado interno às importações e financiando com capitais externos um aumento de 150% das mesmas em dois anos.

Em artigo publicado há um ano em TD1, analisei o surgimento deste mercado financeiro internacional, que reproduz em linhas gerais as características que tinha na época do padrão-ouro. Só que agora a economia mundial está submetida ao domínio de um número restrito de grandes EMNs (empresas multinacionais), que impõem a governos nacionais uma "disciplina financeira" – leia-se: irrestrita liberdade do capital privado de se transferir sobre fronteiras, limitação do déficit do setor público e política monetária restritiva, tendo como propósito único a estabilidade dos preços – em muitos casos antagônica aos interesses vitais da maioria dos cidadãos que elegeram tais governos.

A maioria dos governos nacionais (há exceções) se submete à ditadura dos controladores da riqueza financeira "global" em última análise porque querem, isto é, porque sua ideologia os leva a preservar a "liberdade de iniciativa", na qual incluem o descontrole da movimentação transfronteiras de capitais privados. O exemplo recente da Malásia mostra mais uma vez que nada impede que um governo adote controles cambiais e um bom número de governos de fato o faz. Os liberais costumam agitar o fantasma do boicote do mercado financeiro internacional contra os países que atentarem contra o direito do capital privado ir e vir, mas isso não passa dum blefe. A China, Taiwan e o Chile, que há muito controlam os fluxos de capital, nem por isso deixam de receber créditos e inversões estrangeiros.

A aposta perdida

Mas, infelizmente o governo brasileiro não se encontra entre estes últimos. Desde o governo Collor foram abolidos os controles sobre a movimentação de capitais para dentro e para fora do país. É isso que torna o Brasil dependente da boa vontade dos controladores da riqueza financeira globalizada. O governo atual apostou que a enxurrada de capitais que atingiu o país desde 1994 permitiria modernizar o parque industrial e aumentar sua competitividade de modo a espontaneamente reequilibrar a balança comercial e algum dia até reverter o déficit imenso da conta de serviços. Já há mais de um ano, desde que começou a crise financeira dos mercados "emergentes", está evidente que a aposta foi perdida.

As dimensões desta aposta são estarrecedoras. De 1983 a 1994, o Brasil vinha sustentando saldos positivos na balança comercial, tendo em vista cobrir com eles os déficits em serviços, onerados por pagamentos elevados de juros sobre a dívida externa. Mas, já em 1995, o saldo comercial tornou-se negativo (-3,4 bilhões de dólares), e atingiu -5,5 bilhões no ano seguinte e -8,4 bilhões no ano passado. Ao mesmo tempo, o déficit em serviços também foi crescendo aos saltos: -18,6 bilhões em 1995, -21,7 bilhões em 1996, -27,3 bilhões em 1997 e -12,7 bilhões no primeiro semestre de 1998.

Os rombos crescentes foram cobertos com empréstimos e com "inversões", grande parte das quais não passou de compra de empresas brasileiras – privadas e privatizadas – por EMNs. O total de empréstimos estrangeiros foi de 17,6 bilhões de dólares em 1995; saltou a 27,1 bilhões no ano seguinte e a 47,2 bilhões no ano passado. Este aumento enorme entre 1996 e 1997 foi em parte compensado por um crescimento igualmente grande das amortizações, cujo total passou de 14,4 bilhões em 96 para 28,8 bilhões em 1997. Isso indica um encurtamento dos prazos das dívidas externas, ou seja, uma queda da confiança dos credores internacionais no Brasil. Obviamente, no ano passado, a euforia dos controladores do grande capital globalizado com o Brasil já estava acabando.

Um sinal claríssimo de que o jogo estava no fim foi o ataque ao real em outubro de 1997, ao qual o governo respondeu com outro aumento da taxa de juros (o primeiro fora feito em abril de 1995). Na época, os comentaristas elogiaram a "firmeza" do governo em enfrentar os especuladores internacionais. Na realidade, foi o contrário: o governo brasileiro ofereceu um agrado a mais, sob a forma de juros dobrados sobre as aplicações em reais, aos especuladores, para induzi-los a não fugir do país. A firmeza foi em relação aos brasileiros, que sofreram nova queda do nível de atividade e de emprego. Este ano o desemprego bateu todos os recordes em nossas áreas metropolitanas.

No começo de 1998, houve uma última volta dos investidores globalizados ao Brasil e nossas reservas atingiram 74 bilhões de dólares. Nesta altura, o governo estava desesperadamente comprando tempo, tendo em vista a reeleição. A privatização do sistema telefônico foi encaminhada de modo a maximizar o valor da transação, mesmo com sacrifício dos interesses nacionais em termos de limitar a participação estrangeira no capital das novas concessionárias e de assegurar algum mercado à indústria nacional de material telefônico. E bancos brasileiros, como o Excel e o Real, foram vendidos a bancos estrangeiros com o beneplácito do Banco Central.

A entrada dos dólares correspondente a estas alienações está neste momento dando algum fôlego às reservas cambiais. O governo, consciente de que o modelo de dependência da entrada maciça de capitais externos estava inviabilizado, mais uma vez recorreu ao aumento da taxa de juros em setembro, mas desta vez sem resultado. A fuga de capitais continuou, desmascarando a versão oficial de que o Brasil continuava merecendo confiança do "mercado".

As eleições na crise

É digno de nota que as eleições gerais de 4/10/98 se travaram num ambiente que o governo fez de tudo para evitar. Quando os eleitores foram às urnas, o país tinha perdido 30 bilhões de dólares de reservas e a hemorragia continuava, o movimento comercial despencava, as grandes indústrias estavam em férias coletivas, a inadimplência subia e o desemprego continuava alto tendo toda a probabilidade de subir ainda mais. Seria razoável esperar que muitos eleitores votassem nos candidatos da oposição, que tinha denunciado sem cessar a aposta perdida pelo governo e apresentara uma série de propostas para tirar o Brasil da crise.

Os resultados mostraram que não foi assim. FHC foi reeleito, embora com maioria um pouco menor do que a obtida em 1994, e a composição do Congresso foi pouco alterada. Lula obteve uma parcela maior de votos e as oposições conquistaram cadeiras no Senado e na Câmara, mas sem ameaçar a esmagadora maioria situacionista. O eleitorado deu, em sua maioria, um voto de confiança a Fernando Henrique, que se mantém fiel à postura neoliberal e começa a negociar com o Fundo Monetário Internacional comprometendo-se a não mudar a política cambial e nem restaurar controles do câmbio.

Estes fatos convidam à reflexão. O nosso povo está muito mal informado sobre as causas e a natureza da crise em que o país está metido. Isso vale para a maior parte das correntes políticas e das entidades empresariais. O que lembra o ocorrido na Grã-Bretanha, no início dos anos 30, quando seu governo era do Partido Trabalhista. Keynes teve um encontro com os ministros e tentou convencê-los a tirar o país do padrão-ouro, controlar a movimentação de capitais e iniciar a recuperação da economia. Ouviu como resposta "já nos basta carregar o estigma de socialistas, não queremos ser chamados também de charlatões." Pouco tempo depois, a Grã-Bretanha sofreu uma fuga de capitais e o próprio Banco da Inglaterra, bastião do liberalismo, recomendou a saída do padrão-ouro, o que levou um dos ministros trabalhistas a comentar: "mas nunca nos disseram que isso podia ser feito..." Esta história mostra que até a elite política precisa de algum tempo até que possa apreender o significado dos fatos, sobretudo quando estes contradizem frontalmente as expectativas.

As pesquisas de opinião, feitas antes das eleições, sugerem que muitos já perceberam que estamos numa crise, mas não sabem o que a causou e como pode ser resolvida. A confusão reinante decorre em boa medida do caráter internacional da crise. Como ela parece atingir certos países de fora para dentro, surge na mente popular a idéia de que sua causa é algum ente chamado "especulação internacional", ao qual todas as economias estão expostas e da qual não podem se defender. O antídoto à especulação seria a "confiança dos investidores globais", que dependeria das opiniões elogiosas sobre o nosso governo de autoridades mundiais, como a direção do FMI, o governo dos EUA ou algumas sumidades econômicas. Muitos votaram pela reeleição porque Fernando Henrique tinha apoio internacional, do qual Lula carecia.

O dilema do futuro

A reeleição de FHC e a manutenção da política de veias abertas à hemorragia de capitais apontam para o agravamento inevitável da crise. É muito provável que a perda de reservas continue até o ponto em que elas estejam reduzidas ao nível mínimo. Se houver alguma injeção de ajuda externa, sob a forma de pacote organizado pelo Federal Reserve System dos EUA, em conjunto com o FMI, este desenlace será apenas adiado. O esgotamento das reservas obrigará o governo a deixar que o câmbio flutue ao sabor da demanda e oferta de divisas fortes. Como em tais momentos o pânico se intensifica, a procura por dólares sobe à estratosfera e a oferta some. Logo, haverá uma desvalorização do real, muito maior do que a necessária para restabelecer o equilíbrio das contas externas.

A desvalorização da moeda encarece as importações e torna as exportações mais competitivas, mas feita sob pânico ela enseja uma forte crise financeira. Bancos, empresas e governos endividados em moeda forte ficam impossibilitados de cumprir seus compromissos que, em reais, se tornam excessivos. É praticamente inevitável que haja alguma moratória interna, que pode alcançar também credores externos, como foi o caso da Rússia. Seja como for, a economia sob dupla crise cambial e financeira se desorganiza, acarretando o fechamento de empresas, demissão em massa de trabalhadores, exclusão social exacerbada.

Isso infelizmente não é um pesadelo mas uma descrição sumária do que vem acontecendo na Tailândia, na Coréia do Sul, na Indonésia e na Rússia. A insistência no modelo neoliberal condena o Brasil à mesma sina. Mas, isso não é fatal. A crise poderia ter sido evitada e ainda pode ser abreviada mediante a imposição de controles que impeçam a continuidade da fuga de capitais, seguida por medidas de contenção de gastos no exterior – turismo, importações etc. – e racionamento do uso de divisas visando atender necessidades essenciais e capacitar a economia a retomar o crescimento.

A consciência desta possibilidade está crescendo no mundo inteiro. Importantes pensadores econômicos liberais, como Paul Krugman, do MIT, Jadish Bhagwati, da Universidade de Columbia e Joseph Stiglitz, do Banco Mundial, já estão apontando novos rumos que deixam o modelo neoliberal para trás e visam a restauração de um sistema internacional de pagamentos em que os fluxos internacionais de capitais voltem a ser controlados por autoridades políticas nacionais ou multilaterais. O pensamento de esquerda, herdeiro de Keynes e Marx, nunca deixou de criticar o referido modelo e a presente crise mostra que suas premissas são muito superiores às do liberalismo neoclássico.

O Brasil se encontra no olho do furacão e é aqui que se podem decidir os rumos da crise financeira internacional. Stanley Fischer, economista chefe do FMI, escreveu: "A chave para frear a difusão da crise é a América Latina; e na América Latina é o Brasil."2 Só que Fisher ainda espera que no Brasil o modelo neoliberal possa ser salvo. Não é uma expectativa realista. Nas próximas semanas e meses, o desafio para o Brasil será o de evitar o agravamento da crise mediante políticas inovadoras, em conjunto com as nações-irmãs do continente e em particular do Mercosul. Mas, para que isso seja possível será necessário ganhar a compreensão da opinião pública brasileira e dos outros países sobre as alternativas disponíveis. Uma nova batalha política, entre oposição e governo, decidirá o futuro do país.

Paul Singer é professor na Faculdade de Economia e Administração da USP e membro do Conselho de Redação de TD.