Economia

Nesta virada de século o debate fundamental não reside no "capital financeiro versus capital industrial". O importante é centrar a análise nos grandes grupos privados, que têm extraordinárias vantagens em termos de capacidade produtiva e de alavancagem financeira

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A estratégia política da esquerda brasileira defronta-se com três questões importantes relativas à configuração das estruturas empresariais e organizacionais do capitalismo no Brasil. Primeira: o capital financeiro merece um "enquadramento" específico, tendo em vista o seu poder econômico e político?; segunda: o capital industrial merece um tratamento preferencial, tendo em vista as sinergias existentes dentro dos grandes grupos econômicos?; e terceira: há uma alternativa, pela esquerda, que envolva uma reconfiguração dos grandes grupos privados nacionais, que minimize seu poder político, ao mesmo tempo que promove o progresso econômico?

Para as duas primeiras perguntas temos como resposta um "não rotundo", enquanto que para a última temos um "sim qualificado".

Capital financeiro, poder e grupos econômicos

O conceito de capital financeiro tem forte tradição no pensamento marxista a partir do trabalho pioneiro do austríaco Rudolf Hilferding publicado em 1910. O economista heterodoxo inglês John A. Hobson também deu uma contribuição pioneira em um livro cuja edição de 1906 é a de maior referência. Na concepção de Hilferding o capital financeiro surge quando há uma integração entre o capital bancário e o industrial com a dominância dos banqueiros sobre os industriais. Na visão de Hobson "a estrutura do capitalismo moderno tende a lançar um poder cada vez maior nas mãos dos homens que manejam o mecanismo monetário das comunidades industriais - a classe dos financistas."

Há uma forte evidência histórica a respeito da estreita integração entre capital bancário e capital industrial, principalmente, na Alemanha e no Japão. No que se refere aos EUA, os estudos mostram resultados menos conclusivos. Na realidade, quando se examinam os fatores apontados por Hilferding como determinantes da existência do capital financeiro (ações, contatos pessoais e acesso a informações), a percepção é de que estes fatores não são suficientemente significativos para explicar um fenômeno mais geral, fora de contextos históricos específicos.

No entanto, a questão central reside no processo de centralização e concentração do capital que gera o capitalismo monopolista. Estruturas de mercado cada vez mais marcadas por trustes e cartéis são controladas por grandes grupos econômicos e, dependendo do processo histórico específico, sob controle dos financistas. As implicações são as mais diversas, principalmente no que diz respeito à expansão do capitalismo em escala mundial. No início do século XX estas implicações motivaram um conhecido debate sobre imperialismo envolvendo autores como Lenin, Bukharin e Rosa Luxemburgo.

Nesta virada de século tem havido um interesse renovado a respeito do poder dos bancos, tendo em vista a globalização e a volatilidade do sistema financeiro internacional. Este poder independe da existência do capital financeiro na medida que estaria associado à capacidade dos bancos de afetar os mercados monetários e cambiais em escala global. Neste sentido, duas variáveis-chaves do sistema econômico (taxa de juros e taxa de câmbio) seriam determinadas pelas forças de mercado sob significativa influência dos bancos internacionais.

A questão política central reside, assim, no poder dos bancos que controlam os fluxos internacionais de capital. O domínio dos bancos sobre as empresas industriais (gerando o capital financeiro) é uma questão secundária do ponto de vista político. Não obstante, deve-se levar em conta que mudanças na configuração empresarial e organizacional (como o domínio dos bancos sobre os grandes grupos econômicos) podem ter importantes implicações econômicas e políticas.

As implicações políticas derivam, principalmente, da concentração do poder econômico e político nas mãos de grandes grupos privados sob o controle do capital bancário. As conseqüências econômicas resultam, principalmente, das estratégias e condutas usadas pelo capital bancário nas suas associações com o industrial.

Para melhor entender as implicações econômicas, cabe fazer uma taxinomia das estratégias do capital bancário nos seus processos de integração com o capital industrial. Esta classificação de estratégias envolve diretrizes, naturezas e horizontes temporais. As estratégias podem ser especulativas, defensivas e ativas. A estratégia especulativa significa a compra de um ativo com o intuito de vendê-lo quando ocorrer o aumento de preços esperado. A estratégia defensiva significa investimentos orientados para a diversificação patrimonial que minimiza riscos. Os investimentos com uma estratégia ativa envolvem a intenção de uma estreita integração entre blocos de capitais. A integração entre capitais pode ter duas naturezas distintas: investimento indireto (ou de portfólio) e investimento direto. Este envolve o controle direto da tomada de decisão da empresa receptora do investimento; aquele trata de uma aquisição sem interesses na tomada de decisão. Com relação ao horizonte temporal, os investimentos podem ser de curto prazo (até um ano) ou médio prazo (até três anos) ou de longo prazo (mais que três anos).

O capital financeiro strictu sensu envolve uma estratégia ativa, com base no investimento direto e numa perspectiva de longo prazo. Neste sentido, o capital financeiro é um entre doze possíveis tipos de associação entre capital bancário e industrial. Esta classificação é útil na medida que, quando a utilizamos para o caso do Brasil nos anos 90, verificamos que o capital financeiro é muito mais uma exceção do que a regra nas relações entre capital bancário e industrial.

Deve-se ressaltar, entretanto, que a questão do poder econômico transcende estas combinações de estratégias, naturezas e horizontes. De fato, o poder econômico e político está concentrado nos grandes grupos privados, independentemente do domínio do capital bancário, industrial ou comercial.

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O grupo econômico é definido como o conjunto de empresas que, ainda quando juridicamente independentes entre si, estão interligadas, seja por relações contratuais, seja pelo capital, e cuja propriedade (de ativos específicos e, principalmente, do capital) pertence a indivíduos ou instituições que exercem o controle efetivo sobre este conjunto de empresas.

A propriedade do capital é vista como um mecanismo ou instrumento de controle e como locus de controle (i.e., quem controla). Por meio da propriedade se exerce o poder e nela reside o poder de determinar ou limitar as decisões administrativas, operacionais e estratégicas do grupo econômico. O grupo econômico é, então, um locus de acumulação de capital e um locus de poder.

Neste sentido, a distinção entre capital financeiro e capital industrial corre o risco de minimizar a importância do poder econômico e político existente nos grupos econômicos. Independentemente do predomínio de um ou outro tipo de capital, o poder econômico reside no grupo econômico. Isto significa que um grande grupo econômico, predominantemente industrial, pode ter mais poder político que um grupo dominado pelo capital financeiro.

Ademais, há um certo reducionismo ao se identificar o "financeiro" com o capital bancário e o "produtivo" com o capital industrial. Na medida que avança o processo de financiarização, os grandes grupos econômicos com origem industrial desenvolvem "braços" financeiros muito poderosos que, em alguns casos, tornam-se ainda maiores que a atividade industrial. Parte expressiva das empresas transnacionais (por exemplo, General Electric e General Motors) tem suas próprias instituições financeiras, que são muito poderosas em termos de mobilização internacional de capitais. O mesmo acontece com grupos industriais brasileiros (por exemplo, Votorantim).

A discussão acima indica, em síntese, que nesta virada de século o debate fundamental não reside no "capital financeiro versus capital industrial". Do ponto de vista da estratégia política da esquerda, o importante é centrar a análise nos grandes grupos privados, que têm extraordinárias vantagens específicas em termos de capacidade produtiva e de alavancagem financeira, que faz com que estes grupos concentrem enorme poder econômico e político.

Neste sentido, a política de "enquadramento" deve ter como foco os grandes grupos econômicos, independentemente do tipo de predomínio de um bloco de capital (bancário, industrial ou comercial). Os principais instrumentos referem-se a políticas macroeconômicas (monetária, fiscal, cambial etc.) e microeconômicas (comerciais, tecnológicas, crediticias etc.). O efeito de políticas regulatórias e de intervenção do Estado dependerá, naturalmente, do bloco de capital dominante. Entretanto, isto não altera a questão central: não há distinção, em termos de estratégia política, entre os blocos de capital. O que deve ser minimizado pelo Estado é o poder econômico específico aos grandes grupos econômicos, independentemente do bloco de capital dominante.

Capital industrial e grupos econômicos

No Brasil pode-se distinguir duas correntes de pensamento a respeito da configuração do capitalismo no país, a partir da análise das estruturas empresariais e organizacionais.

A primeira corrente, que pode ser chamada de "coreana", argumenta que a expansão e modernização do capitalismo brasileiro depende da existência de grupos privados nacionais de grande porte (à la chaebols coreanos). Neste sentido, a argumentação resulta em proposições de política econômica que levam à aceleração da concentração e centralização do capital, inclusive, com o apoio financeiro do governo (leia-se, BNDES).

O objetivo da corrente "coreana" é a maior capacitação organizacional e tecnológica dos grandes grupos privados nacionais, que seria alcançada com uma certa dose de intervenção governamental: planejamento, apoio financeiro e políticas específicas (industrial, comercial, tecnológica etc.). Assim, tendo como inspiração a estrutura do capitalismo coreano, o governo promoveria mudanças no capitalismo brasileiro de forma a induzir a transformação de uma Votorantim em Samsung e de uma Vicunha em Daewoo!

A segunda corrente pode ser denominada de "antitruste" e freqüentemente envolve os analistas de uma tradição mais liberal. Esta corrente argumenta que uma excessiva concentração do poder econômico gera um sistema produtivo altamente ineficiente que, inter alia, permite que os grandes grupos apropriem-se de uma parcela significativa do excedente num ambiente altamente permissivo. Estes grupos, quando protegidos da concorrência internacional, abusam do seu poder econômico. Assim, sua proposição básica é que estes grupos precisam se defrontar com padrões de concorrência que levem a um maior dinamismo e eficiência da economia brasileira. Isto é, estes grupos precisam passar pelo "teste do mercado concorrencial". Neste sentido, cabe ao governo a formulação de políticas de controle destes grupos visando reduzir as práticas comerciais restritivas e o abuso do poder econômico, assim como criar as condições institucionais para a operação das forças de mercado.

Não resta dúvida de que a predominância, seja da corrente "coreana", seja da "antitruste", pode ser determinante da estrutura empresarial e organizacional brasileira e, portanto, da configuração futura do sistema econômico. Há, entretanto, uma visão alternativa que se baseia em um fato importante: a já absurdamente elevada concentração de riqueza, renda e poder no Brasil implica um custo (econômico e político) excessivamente alto para o país.

O transplante do modelo coreano para o Brasil, por meio da centralização e concentração do capital, pode terminar não em um sistema econômico eficiente e dinâmico, mas numa situação similar à da Indonésia. Neste país houve uma "cooptação bilateral" entre os burocratas e a plutocracia, que significou uma brutal concentração de riqueza, renda e poder político, que sustentou o governo de Suharto por várias décadas.

No que se refere à implementação de medidas antitrustes e de controle do abuso do poder econômico, a experiência dos EUA mostra que o escopo destas políticas é limitado, mesmo que haja sistemas jurídicos e institucionais avançados. No caso do Brasil, com o extraordinário poder econômico que os grandes grupos já possuem, não é realista esperar resultados minimamente significativos no futuro. O fato básico que a corrente "antitruste" negligencia é que a definição de um conjunto de normas jurídicas orientadas para o controle de práticas comerciais restritivas e de abuso de poder econômico não garante resultado algum.

A visão acima não significa, naturalmente, uma volta a outro tipo de credulidade: small is beautiful. Pelo contrário, o argumento central é que a eficiência e o dinamismo do sistema econômico não depende de uma estrutura empresarial e organizacional determinada. Mais especificamente, no caso brasileiro pode-se afirmar que a inexistência de políticas que incentivem a concentração dos grandes grupos não vai tornar o sistema menos eficiente. O contrário parece, entretanto, verdadeiro. O poder econômico, já e ainda mais concentrado nos grandes grupos, vai comprometer as chances de se criar um sistema economicamente eficiente e socialmente justo no país.

Sem hesitação, pode-se afirmar que, no caso brasileiro, o incentivo à concentração e centralização do capital pode ser considerado um erro estratégico grave, enquanto a crença nos efeitos de uma política antitruste não passa de um exercício de pura credulidade.

Neste sentido, os estímulos (com uma agenda positiva ampla de incentivos) devem estar concentrados nas micro, pequenas e médias empresas. Por outro lado, os instrumentos regulatórios devem estar orientados, em grande medida, para os grandes grupos econômicos, sejam comerciais, industriais, financeiros ou qualquer combinação possível destes tipos de capital.

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Alternativas

O capital financeiro não parece se constituir em um problema que exija uma estratégia política específica no Brasil. Neste sentido, parece não haver necessidade de um "enquadramento" especial para ele, tendo em vista o seu poder econômico e político. De fato, o capital financeiro strictu sensu é minoritário no conjunto dos blocos de capital na economia brasileira e, ademais, não há evidência de que esteja avançando mais que outros tipos de capital. Pelo contrário, bancos brasileiros (Garantia, Real e Bamerindus) que eram candidatos a capital financeiro foram vendidos para o capital estrangeiro. Talvez o único grupo que possa ser caracterizado, de forma inequívoca, como capital financeiro, é o Itaú.

Por outro lado, o capital industrial não merece um tratamento preferencial tendo em vista eventuais sinergias existentes dentro dos grandes grupos econômicos. Há uma alternativa, pela esquerda, que envolve uma reconfiguração dos grandes grupos privados nacionais no sentido de minimizar seu poder político, ao mesmo tempo que promove o progresso econômico.

Nem a corrente "coreana", nem a "antitruste", isoladamente ou combinadas de alguma forma, representam a concepção mais apropriada para a estrutura empresarial e organizacional do capitalismo no Brasil. Assim, tentar transplantar o modelo coreano de relação entre Estado e setor privado, ou o modelo antitruste norte-americano de regulação do abuso do poder econômico, é um erro grave que, antes de tudo, deixa de lado as peculiaridades do capitalismo no Brasil. Dentre estas, deve-se destacar o já elevado grau de concentração da riqueza, renda e poder econômico e político. Este transplante espúrio significa uma legitimação arcaica do Estado brasileiro.

Do ponto de vista da esquerda, a estratégia política deve se orientar para uma agenda negativa de forte regulação dos grandes grupos econômicos e para uma agenda positiva que estimule as micro, pequenas e médias empresas. O dinamismo econômico, a estabilidade política e o progresso social no Brasil dependem fundamentalmente da distribuição de poder, riqueza e renda, que represente uma ruptura para as elites econômicas. E, por fim, deve-se notar que, a partir de 1995, iniciou-se um amplo e profundo processo de desnacionalização da economia brasileira. O resultado é que o sistema bancário e financeiro brasileiro está sob o crescente controle dos bancos estrangeiros. Está surgindo, assim, um novo e sério desafio político.

Bibliografia

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Reinaldo Gonçalves é professor da UFRJ e economista das Nações Unidas.

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