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O ambiente moral e político no seio do governo é cada vez menos sustentável. Na sua base de sustentação, todos aguardam e temem um agravamento da crise econômica mas querem continuar tirando proveito de uma nau que ameaça naufragar

"Quando eles batem no governo não é para sair, mas para entrar mais um pouquinho."

Miro Teixeira (PDT-RJ) sobre as críticas dos aliados ao desempenho do governo.

Um ano depois da promulgação de uma Constituição que tinha a vocação de ser o marco legal da organização de um Estado do bem-estar social no Brasil, a vitória de Fernando Collor, em 1989, significou o começo da demolição daquele quadro constitucional que nunca foi regulamentado.

Quer dizer, a mesma elite que fizera concessões em 1988, logo se reaglutinou em torno de Fernando Collor e de seu neoliberalismo gangsteril em 1989. O velho PFL vendeu Aureliano Chaves e apoiou Collor desde o primeiro turno, as raposas do PMDB certamente não suaram a camisa por Ulysses Guimarães. Tucanos sisudos, que chegaram a alimentar a esperança de colocar Covas e seu choque de capitalismo no segundo turno, não tardaram em revelar insuspeitadas simpatias por Coltor. Maluf tentou a Presidência uras, diante da derrota, não teve muitas dificuldades em se juntar à nau collorida.

Este episódio, revelador das fragilidades das elites, mostra como um aventureiro, depois de arrancar o apoio do monopólio da televisão, pôde se impor ao conjunto das classes dominantes, mesmo a setores que percebiam que estavam diante de uri malfeitor. Assim chegou o projeto neoliberal ao Brasil, superando um empate que durava dez anos. A opção por Collor também diz muito do horror que inspira às elites qualquer projeto de mudança.

Registre-se no entanto que a opção das elites em 1989 foi tão desastrada que muitos setores logo perceberam que era impossível sustentar Collor. O PT teve o mérito de fazer, desde o primeiro momento, uma oposição inequívoca, setores da imprensa também não tardaram em abrir fogo. Os movimentos sociais, particularmente os estudantes, conseguiram alcançar alguma mobilização, o que facilitou a geração de um arco de aliança parlamentar capaz de aplicar o impeachment depois que o empresariado paulista deu luz verde, contribuindo assim para sitiar Collor na república de Alagoas.

Itamar no governo significou uma redução do ritmo da aplicação do projeto neoliberal. Suas privatizações se deram em áreas periféricas, como a da siderurgia. A preocupação central foi o controle da inflação. Para ganhar as eleições, numa conjuntura em que Lula aparecia como franco favorito, as elites foram capazes de, com o favor da mídia, apresentar um neoliberalismo com face humana.

O PT vacilou, julgando talvez que a candidatura Lula era imbatível. O partido foi tímido na oposição a Itamar. O Diretório Nacional aprovou por maioria de apenas um voto uma oposição mais dura ao novo governo. Nada indica que a cúpula tenha queimado todos os seus cartuchos no combate a Itamar. O ambiente interno era tão favorável a ele que Luiza Erundina virou ministra com grande desenvoltura, mas terminou demitida por telefone e voltou ao partido para dizer sim. Enquanto isso, a maioria da direção namorava com uni parlamentarismo de inegáveis conotações golpistas, felizmente rejeitado pela base.

Tivesse sido mais duro na oposição a Itamar, o PT teria prestado um serviço não apenas à sociedade, mas ao próprio Itamar, que hoje não esconde seu arrependimento no que diz respeito aos serviços que, como presidente, prestou à candidatura de FHC. Mas agora Inez é morta. Na condição de ministro da Fazenda, FHC costurou um amplo arco de alianças, do empresariado paulista ao PFL, passando pela Globo e por Maluf. Quércia repetiu o Cristo de Jesus de Ulysses Guimarães. Brizola ficou atrás de Enéas. Lula cumpriu seu papel, teve mais votos do que em 1989, o P'1' elegeu cinqüenta deputados federais e ampliou para cinco sua bancada de senadores.

A única sombra que pairou sobre o projeto neoliberal, no começo do governo FHC, foi a crise mexicana do fim de 1994. Finalmente, as elites conseguiram instalar no Planalto um gerente "respeitável" para executar seu projeto. Ou, para usar a expressão de um executivo do FMI, encontraram um Pinochet light.

O primeiro semestre de 1995, FHC dedicou à quebra dos monopólios constitucionais: petróleo, telecomunicações, navegação de cabotagem e gás canalizado. Eliminou também o conceito constitucional de empresa nacional. Esta operação foi realizada sem nenhum racha significativo na base que havia sido aglutinada em torno de seu governo, que compreendia a unanimidade da mídia, o PSDB, o PFL, o PMDB, o PPB e o PTB. Além do empresariado e do latifúndio. Só a oposição de esquerda, girando num vazio de movimento social, ofereceu resistência.

Na prática, a maioria do Congresso Nacional abdicou de suas prerrogativas, permitiu que o presidente usasse e abusasse das medidas provisórias, passando a funcionar como uma espécie de constituinte inversa, cujo objetivo era demolir a Constituição de 1988. É esta situação que permite a Konder Comparato sustentar: "Algo de semelhante está em vias de suceder com a Constituição Federal de 5 de outubro de 1988. Ela continuará a fazer parte, materialmente, do inundo dos vivos, mas será um corpo sem alma. Todos nós, profissionais do direito, becados ou togados, continuaremos, por dever de ofício, a fazer de conta que vivemos nuns Estado constitucional. Mas as nossas argumentações tomarão, fantasticamente, o aspecto de sábias dissecações anatômicas: serão análises de uni cadáver. Afinal de contas, Hitler não precisou revogar a Constituição de Weimar para instituir o terror nazista: bastou retirar-lhe toda a força interior".

A partir do segundo semestre de 1995, FHC abriu a batalha da privatização da previdência e da liquidação do Estado. Aí começou a enfrentar maiores dificuldades em sua base de sustentação parlamentar. Estas dificuldades permitiram uma ação mais eficaz da oposição de esquerda e explicam o fato de que as "reformas" administrativa e previdenciária tenham tramitado durante mais de três anos no Congresso Nacional e que seu rescaldo ainda se encontre na Justiça, que deve se pronunciar sobre matérias previdenciárias, como a contribuição dos inativos e sobre o golpe de mão dado pelo deputado Moreira Franco na redação final da "reforma" administrativa.

Em matéria de privatizações, FHC realizou uma obra tão vasta como devastadora. Vendeu, por preço vil, a indústria de fertilizantes e insumos agrícolas, com o apoio dos ruralistas que hoje reclamam dos preços mais altos praticados pelo oligopólio do setor. Entregou a Vale do Rio Doce para quem provavelmente nunca tinha visto uma mina. Privatizou o sistema Telebrás numa meganegociata que envolveu a pessoa do presidente da República, surpreendido em flagrante delito de tráfico de influência.

Mas estas privatizações, realizadas ao longo do primeiro mandato de FHC, cujo objetivo legalmente estabelecido era reduzir o déficit público, não contribuíram para reduzir em uri centavo este déficit. Pelo contrário, ao longo do período, o endividamento do setor público, continuamente alimentado por elevadas taxas de juros, pulou da casa dos 60 bilhões de reais para a dos 400 bilhões de reais. Quer dizer, liquidou-se um patrimônio público considerável em troca de um aumento das dívidas.

No entanto, os primeiros sinais politicamente importantes de que o "Reich" de mil anos do liberalismo tucano não era evidente ocorreram nas eleições municipais de 1996.0 PT, apesar do cerco da mídia, venceu ern Porto Alegre e Belém. Conseguiu ir ao segundo turno em São Paulo, apesar de Luiza Erudina dizer sim; além de Campo Grande, Aracaju e Natal, cidades em que acabou derrotado no segundo turno. FHC terminou vencendo no Rio e em São Paulo par persone interposée, por intermédio de aliados que às vezes exibiram suas distâncias com o Príncipe. Malupita, por exemplo, falou mais da questão do desemprego que nossa candidata em São Paulo.

Mas apesar de não ter obtido um resultado brilhante nas eleições municipais de 1996, Fi-iC teve fôlego para manter sua aliança e bancar, por meios condenáveis, a reforma constitucional que mais interessava a seu ego: a reeleição. Depois de mais este atentado à democracia, restava a ele torcer para que a crise cambial anunciada não se verificasse antes das eleições presidenciais, o que terminou acontecendo, apesar da crise do Sudeste asiático e do colapso da Rússia.

Quando, no percurso, a mídia tentou sair da linha geral de louvação da figura do presidente e de defesa da dogmática liberal, foi devidamente enquadrada, como registra Bernardo Kucinski, citando tuna edição da Veja posterior às eleições presidenciais de 1998: "... Fernando Henrique convocou para conversas um grupo de pessoas muitíssimo influentes (...) os barões da elite brasileira (...) queixou-se das televisões, que no seu entender, vinham maltratando o governo com ênfase exagerada em notícias ruins, que acabavam azedando a avaliação popular do governo. Procurou os donos da Rede Globo, reclamou que o Jornal Nacional tinha ampliado a cobertura de temas como a seca no Nordeste, os saques e o arrocho de salários, o incêndio de Roraima (...) depois dessas conversas em que agitou o fantasma da renúncia, teve apoio imediato. A seca desapareceu do noticiário, o aumento do salário mínimo foi esquecido e os pajés apareceram para apagar o incêndio de Roraima..." E Kucinski conclui: "Neste encontro, impensável em democracias do Primeiro Mundo em tempos de paz, acenando com o fantasma de Lula, ameaçando renunciar à sua candidatura à reeleição, Fernando Henrique enquadrou a mídia e restabeleceu o caráter sistêmico de seu suporte ao governo".

Assim a crise cambial foi adiada para depois das eleições presidenciais e o segundo mandato de FHC pôde começar sob o signo de teia desvalorização vazada do real, de uma queda recorde da popularidade do governo, de sinais de rachas entre a elites e de retomada das mobilizações populares, inclusive de setores que não têm relações com a esquerda, como caminhoneiros e ruralistas.

A luta interna

O governo tucano gostava de se apresentar como moderno, de centro-esquerda e capaz de fazer uma aliança com o conservadorismo tradicional para atualizar o Brasil, inserindo-o no novo mundo globalizado. Isto sempre foi uma falácia, mas chegou a convencer quando, nas eleições de 1994, o PSDB não somente fez o presidente da República, como elegeu os governadores dos três principais estados da Federação.

Desde então a trajetória do PSDB foi descendente. Já as eleições municipais de 1996 mostraram que a "modernidade" tucana se sustenta nas pequenas cidades, nos chamados fundões. Em 1998, este partido perdeu dois dos três governos referidos. E, se manteve São Paulo, foi em condições muito especiais. Por meio de unia brutal manipulação de pesquisas contra Marta Suplicy e de um segundo turno em que o eleitorado petista foi levado a votar em Mário Covas por exclusão.

No governo central, o que se tem observado não é apenas a perda de autonomia nas relações internacionais, com o Planalto reduzido à função de mero executor das políticas traçadas pelo FMI, mas também a redução do papel do presidente. Em episódios como o da última reforma ministerial, da Medida Provisória da Ford, do anúncio do congelamento dos preços dos combustíveis, Antonio Carlos Magalhães tem procurado deixar claro que é ele quem manda. ACM cumpre hoje o papel que Ulysses Guimarães cumpriu no governo Sarney. O poço de vaidades chamado FHC reina, mas quem governa é ACM.

Considerando as meganegociatas promovidas pelo governo FHC, é surpreendente que até agora as disputas entre as diferentes gangues pelo espólio representado pelas privatizações não tenha degenerado para o atentado a bala. Até agora, as brigas e chantagens dentro do governo têm revelado um pendor de tucanos e aliados pelas escutas clandestinas.

No caso Sivam, contrato milionário para a instalação de um sistema de vigilância da Amazônia, que favorecia a empresa americana Raytheon e do qual participava a empresa brasileira Esca, que fraudava a previdência, a revelação de fitas gravadas, saídas do seio do governo, mostrava que o chefe do cerimonial do Planalto, Júlio César Gomes dos Santos, recomendou a José Afonso Assunção, representante da Raytheon no Brasil e dono da Líder Táxi Aéreo, que desse uma propina ao senador Gilberto Mirando (PFL/AM) para que ele facilitasse a tramitação do projeto numa comissão do Senado. Em função destas revelações, Júlio César Gomes dos Santos foi punido com uma promoção para um posto diplomático em Roma. O episódio contou ainda com a queda de um ministro da Aeronáutica.

Também no caso da compra de votos para aprovação da emenda da reeleição, operação provavelmente coordenada por Sérgio Mota, foi uma fita gravada clandestinamente e entregue por algum aliado do governo à Folha de S. Paulo que detonou o escândalo. Mas o governo teve forças para encerrar o episódio com a renúncia de dois bagrinhos: Ronnie Von Santiago e João Maia. Os demais envolvidos, deputados, governadores e políticos do Acre e do Amazonas se safaram. Mas o caso mais rumoroso foi o escândalo da Telebrás. Aliados do governo entregaram uma fita à Folha de S. Paulo que compromete pessoalmente o presidente. Claro, a preferência pelas escutas clandestinas não dispensa a chantagem por vias tradicionais, como no caso da pasta rosa e do dossiê Cayman.

Mas, fora as chantagens urdidas nos porões, as lutas internas no seio do governo têm assumido também a forma de marolas encenadas por caciques. Nesta categoria se classificam as CPIs do Senado, propostas por ACM e Jader Brabalho, para investigar respectivamente o judiciário e o sistema bancário. Tais iniciativas não deixam de ter um caráter chantagista, embora na forma sejam mais civilizadas e na prática tenham revelado a existência de juízes corruptos que agem em conluio com políticos aliados do governo e confirmado a conhecida promiscuidade das autoridades monetárias como sistema financeiro privado.

No que diz respeito ao pacto federativo, percebe-se o agravamento da guerra fiscal, não somente por iniciativa dos diferentes estados, mas agora contando com o estímulo do Planalto, que fez uma clara intervenção para tirar a Ford do Rio Grande Sul e instalá-la na Bahia. Isto para não falar da concentração de recursos tributários na União, em detrimento dos municípios, o que vem acontecendo desde a aprovação do chamado Fundo Social de Emergência.

Os desdobramentos

O projeto neoliberal já alcançou seus objetivos, o Brasil ficou socialmente mais injusto, não tem perspectivas reais de retomada do crescimento econômico e está cada vez menos governável. O Planalto limita-se a responder às crises semanais e a rezar para que não ocorra mais uma onda de especulação. O clima do "salve-se quem puder", entre os políticos, está em expansão e pode contaminar vastos setores da sociedade.

Os fatos referidos mostram que o ambiente moral e político no seio do governo é cada vez menos sustentável, que todos aguardam e temem um agravamento da crise econômica e que todos querem continuar tirando proveito de unia nau que ameaça naufragar, mas querem também se manter perto de salva-vidas porque a vida continua. Este dilema dos políticos conservadores está bem expresso por Miro Teixeira na frase que serve de epígrafe a este texto.

Já nas eleições municipais do próximo ano, muitos aliados do Planalto seguramente procurarão se apresentar com um discurso de oposição. E não haverá surpresa se o PSDB começar a trilhar os caminhos da desagregação anteriormente percorridos pelo falecido PRN.

Mais a longo prazo, a direita tem no nome de Ciro Gomes uma possível alternativa para retomar a governabilidade e tentar dar uma solução conservadora, mas coerente, à crise política, social e econômica. Mas nada impede que a degeneração acelerada dos costumes políticos abra espaços para aventuras golpistas, o que exige das forças de esquerda unidade de ação e a elaboração de um projeto destinado a retomar o crescimento econômico com distribuição de renda e resgatar a soberania nacional.

Athos Pereira é jornalista e chefe do gabinete na Liderança do PT na Câmara Federal