Nacional

No Mato Grosso do Sul - ou estado do Pantanal -, a contradição que contrapõe o governo popular aos seus adversários se desdobra em duas faces: deslocar o eixo de desenvolvimento do estado do binômio soja-boi assentado no monopólio da terra para a agroindústria e o ecoturismo; e romper com a tradição da clientela, estabelecendo um processo de construção de uma sociedade democrática e participativa

[nextpage title="p1" ]

Para Geraldo Garcia, construtor.
Para Dorcelina Folador, bandeira.

"Desde o dia da divisão, esse estado tem sido um estado do latifúndio. Os latifundiários se revezaram numa alternância que só foi interrompida com a vitória do PT, em 98". Ele tem uma cara redonda, generosa, de lua pantaneira. A voz aguda, o brilho dos olhos, o gesto das mãos sublinhando as palavras traem a determinação de quem, guiado por uma laboriosa construção partidária e por uma intuição certeira, cumpriu uma trajetória de êxitos. Essa conversa me leva a outra, no início dos anos noventa. O espaço, bem distinto deste, era uma baiúca na beira da estrada para Rio Brilhante. Éramos poucos, pero mui sectários... e tínhamos o companheiro Geraldo Garcia entre nós, com sua infinita capacidade de ouvir as pessoas e sua irreconciliável diferença com o relógio. Geraldo decidira que o relógio era uma invenção absolutamente inútil. Para medir o tempo, nada mais adequado que o fluxo das águas do rio Paraguai lavando a planície... Cuidávamos, então, do apoio à marcha dos trabalhadores rurais de Dourados a Campo Grande para reivindicar desapropriações de terra. Coisa de delirantes, berrava o governo, além de ameaçar com a repressão os manifestantes. Como se vê, marchamos já, há muitos anos. Os problemas não eram muito diferentes. Menos graves e menos complexos talvez. José Orcírio, bancário de Porto Murtinho, era um deputado estadual diferente. Único eleito pelo PT para a Assembléia Legislativa do Mato Grosso do Sul. Era um deputado que tinha lado. O lado contrário da lógica oligárquica. Por isso se chamava Zeca do PT. Carregar um nome desse como identidade política é um ato de coragem em qualquer lugar do Brasil. Aqui... é uma temeridade...

O cenário de minha conversa é outro. O amplo gabinete do governador do estado. A energia é a mesma. Como foi possível romper com a alternância inter-oligárquica em que Barbosa Martins substituía Pedro Pedrossian, que substituía Barbosa Martins, que substituía...? Algumas razões se impõem para explicar a vitória, entre outras: as oligarquias marcharam divididas para a disputa. Imaginando que se tratava, mais uma vez, de uma disputa privativa, entre elas. Ambas repetiram o discurso tradicional para tentar esconder o que todas já sabiam: um vazio de projeto para o desenvolvimento do estado. A sociedade inteira, não apenas as classes populares, experimentava a percepção, ainda que difusa, de desmoralização do governo, de roubalheira, de privatização do bem público, de sucateamento do estado. Concentradas em Campo Grande e ausentes no interior, as estruturas do estado se tornaram invisíveis para grande parte da população. Foram anos seguidos de ausência do poder público nas comunidades, o que resultou no acúmulo de um enorme passivo social.

Disseminou-se na sociedade um anseio de mudança que a dança das cadeiras entre as oligarquias já não era capaz de responder. Este vazio foi ocupado pelas forças políticas lideradas pelo PT que, ao longo da última década, haviam se credenciado para a disputa. Não se tratava, porém de uma arquitetura fácil. O projeto estratégico deveria contemplar, de saída, a capacidade de atrair e aglutinar forças políticas desgarradas dos velhos coronéis; montar uma chapa ampla que combinasse o perfil aguerrido e militante do Zeca do PT, com forte apelo popular e vítima de uma fraude eleitoral recente, com alguém capaz de dialogar com os setores empresariais. A presença na chapa de Moacir Kohl (PDT), ex-prefeito de Coxim, como vice-governador, preencheu plenamente essa exigência. Quando me relata a montagem cuidadosa dessa estratégia, Zeca enfatiza: "não creio que teríamos sido vitoriosos sem contemplar esses aspectos". A incorporação do ex-presidente do Conselho da OAB - Dr. Carmelino Rezende - como candidato ao Senado, explicitava outra dimensão das lutas pela cidadania no estado, identificada com a trajetória dos candidatos a governador e vice: a dimensão da ética. Este desenho minucioso foi posto a serviço de um programa de fácil entendimento, de dimensão generosa - no sentido de contemplar amplos setores da sociedade sul-matogrossense -, que rompe com o modelo de desenvolvimento assentado exclusivamente sobre o binômio concentrador de terra e de renda soja-boi. Apresenta como alternativa o acento na agroindústria e no ecoturismo, capazes de conjugar geração de emprego e qualificação do estado para uma das indústrias que mais cresce no mundo, explorando de modo racional e sustentável o fabuloso patrimônio do complexo Bonito e do Pantanal.

Os homens vigiados pela multidão de bois

Mato Grosso do Sul foi criado pela Lei Complementar de 31 de outubro de 1977, quando governava o general Ernesto Geisel, e instalado em 1979. Separa-se do antigo estado do Mato Grosso, herdando uma economia assentada no latifúndio e uma tradição política oligárquica. Como deslocar o eixo de desenvolvimento do binômio soja-boi? E como enfrentar as forças sociais e políticas, herdeiras das velhas oligarquias, que se consolidaram em torno dele ao longo de duas décadas de mando? Essas são questões cruciais que deverão ser respondidas pelo governo popular e pelo Partido dos Trabalhadores. As raízes do binômio soja-boi se agarram com força e se ramificam de forma capilar nos negócios da sociedade inteira. Plantadas sobre uma estrutura fundiária altamente concentrada e sobre uma tradição de mando familiar. Não se trata, portanto, de um obstáculo removível com facilidade, por meio de medidas administrativas de curto prazo. Trata-se de uma batalha política de maior fôlego, que será travada em condições adversas.

A melhor radiografia nos é indicada por alguns dados emblemáticos: 22 milhões de cabeças de gado num estado cuja população não ultrapassa 2 milhões de habitantes. 23 milhões de hectares ocupados pela atividade agropastoril: 2 milhões pela produção agrícola, 13 milhões com pastagem plantada e 8 milhões com pastagem natural. O processo de ocupação do território, a exemplo do que ocorreu no país e particularmente na região centro-oeste, foi presidido por duas atividades econômicas: o garimpo e a fazenda. A mineração e a criação extensiva de gado. As propriedades com menos de 100 hectares representam 75% das unidades produtivas e ocupam 2% da área total dos estabelecimentos. Na outra ponta, as unidades com mais de mil hectares representam 11% dos estabelecimentos e ocupam 90% da área.

A contraface desse perfil de alta concentração fundiária é um movimento social considerável que se mobiliza para ocupar terras. Hoje são cinqüenta as propriedades rurais ocupadas no estado. Os movimentos são dirigidos pela Fetag, CUT e MST. Há uma demanda identificada de 30 mil famílias, agravada nos últimos meses pelo desemprego e subemprego nas grandes e médias cidades. Em 21 anos, o estado assentou apenas 729 famílias. A precariedade de suas condições - terras imprestáveis para a atividade agrícola, falta de crédito e assistência técnica - exige, hoje, o remanejamento de pelo menos 300 famílias. Entre 1986 e 1999, o Incra assentou no estado 12.031 famílias. A situação é idêntica: a falta de crédito e assistência técnica inviabiliza economicamente os assentamentos.

O modelo de integração a partir de grandes conglomerados - Ceval, Sadia, Frangosul, Cargil - entrou em crise com a saída de alguns deles do estado ou incorporação de outros. O sistema de cooperativas não existe para os 17 mil produtores familiares. O governo popular, por meio do Instituto de Terras, procura imprimir um novo rumo à cooperação agrícola tendo como centro de sua atuação os produtores familiares, buscando superar a política anterior em que o estado atribuía às empresas "integradoras" o papel central no sistema. Procura, assim, traduzir em ação um compromisso com uma importante base social no campo.

O processo de regularização das terras; a constituição de um estoque de terras públicas com vistas à reforma agrária; a cobrança de uma definição clara da ação do governo federal via Incra; a definição do montante de recursos necessários para assentar 2 mil famílias no próximo ano fazem parte de um plano de trabalho negociado com os movimentos sociais, a ser debatido com a Assembléia Legislativa. Ao definir a interlocução com os movimentos sociais como meio de tratar a questão da terra, o governo se credencia diante deles e do conjunto da sociedade como condutor de um processo inédito e que todos reconhecem delicado: a reforma agrária passa a integrar o topo da agenda do governo e da sociedade. A meta é assentar 6 mil famílias até o final do mandato.

A perspectiva que se desenha a médio prazo, com a implantação da Ferronorte, dos terminais portuários na hidrovia Paraná-Tietê, do gasoduto que vem da Bolívia, é a retomada do desenvolvimento do estado, agora em bases diversificadas, com ênfase na agroindústria e no ecoturismo. Desloca-se, portanto, o latifúndio e a pecuária como suportes principais da atividade econômica do Mato Grosso do Sul. Aqui reside o cerne da contradição e o objetivo dessa etapa da disputa política.

Não fica difícil entender as causas do controle tão estrito das oligarquias sobre a esfera política e o combate sem tréguas que travam contra o governo popular. A exemplo do que ocorreu em outros estados brasileiros, aqui os fazendeiros da terra se converteram em fazendeiros do ar, para utilizar a expressão de Carlos Drummond de Andrade, controlando com mão de ferro as concessões de rádio e TV, além da imprensa escrita. Estabelecendo, assim, um cerco permanente. Com diferenças irrelevantes, o Correio do Estado, a Folha do Povo, em Campo Grande, O Diário do Povo e o Progresso, em Dourados, oferecem um combate diário contra qualquer iniciativa do governo popular.

[/nextpage]

[nextpage title="p2" ]

 

O fio da navalha

A lógica cartesiana não é de grande utilidade como método para tentar compreender o processo político que se vive em Mato Grosso do Sul. O PT, que lidera a Frente Popular e elegeu o governador, ocupa uma única das 24 cadeiras da Assembléia Legislativa. Laerte Tetila, eleito basicamente pela região de Dourados, segunda cidade do estado, enfrenta uma parada dura para defender os pontos de vista do governo, coordenar a relação entre o Executivo e a bancada que lhe dá sustentação - um terço apenas - e o acidentado diálogo com os adversários.

As dificuldades iniciais foram muito grandes. Uma eleição, para muitos surpreendente - sobretudo para os institutos de pesquisa... -, levou a candidatura da Frente Popular para o segundo turno. A vitória insofismável inevitavelmente radicalizou a disputa política no momento seguinte, com a imprensa abrindo as baterias já no processo de composição do governo. Aqui, como em outros lugares, ela substitui os partidos conservadores derrotados na tarefa de reorganizar as forças das elites e travar a disputa ideológica na sociedade. A partir do momento da posse, porém, a circunstância do governador ter sido deputado por dois mandatos, conhecer de perto a dinâmica da Casa e a disposição para um diálogo corajoso e transparente têm sido fatores de importância considerável na relação entre o Executivo e o Legislativo. A cada 45 dias, aproximadamente, Zeca tem ido à Assembléia, em geral acompanhado de secretários, para defender projetos, realizar uma prestação de contas política e debater iniciativas da própria Assembléia.

A sensibilidade para compreender e aceitar o legítimo desejo de crescer das forças que compõem a Frente Popular; o tratamento criterioso e transparente das reivindicações pontuais e demandas regionais apresentadas pelos adversários; o êxito incontestável no esforço de aumentar a arrecadação - algo em torno de 30% em seis meses -; o cumprimento de compromissos assumidos como o pagamento dos servidores que se encontravam com quatro meses de salários atrasados, "pagamos 13 folhas em 9 meses", orgulha-se Zeca, conferiu ao governo a autoridade necessária para estabelecer um padrão de relacionamento que, sem excluir divergências, tem alcançado resultados expressivos.

Não há dúvida de que o Fundersul foi o mais significativo deles. Contrapôs frontalmente o governo popular a uma parcela importante daqueles setores que representam os interesses da pecuária. A maior receita do estado vem da comercialização da carne. O ICMS, que já foi de 17%, como em alguns estados, hoje é de 2%. A proposta do Fundersul é simples: cobrar R$ 3,00 por animal, no ato da comercialização. Compor com esta receita um fundo rodoviário, para a recuperação da malha viária que se encontra em condições lamentáveis: 20 mil metros de pontes necessitando de obras de reparo; 15 mil km de rodovias esperando recuperação ou por implantar; 15% dos municípios ainda carecem de ligação pavimentada.

A reação veio imediata. A gritaria das entidades dos latifundiários, desabituados a pagar impostos ou a assumir responsabilidades sociais, pela imprensa local. E a iniciativa jurídica para bloquear o Fundersul por meio de uma ação direta de inconstitucionalidade - Adin -, no STF. Zeca argumenta: "A renúncia fiscal do estado em favor da pecuária soma algo em torno de R$ 200 milhões por ano. Equivale a uma Ford no Rio Grande do Sul, portanto. Os maiores beneficiários do Fundersul são justamente os pecuaristas que transportarão sua mercadoria em melhores condições de segurança, com maior rapidez e menor perda. Se não forem capazes de entender isso e derrubarem o Fundersul, eu aumento o ICMS para retirar dele a receita necessária para um serviço que a sociedade reclama".

O projeto do Fundersul foi debatido e votado em duas etapas na Assembléia Legislativa: na primeira votação obteve 22 dos 24 votos; na segunda, que deliberou sobre a aplicação dos recursos, foi aprovado por unanimidade. A direção das entidades representantes dos interesses da pecuária - Famasul e Acrisul - armadas com um discurso exclusivamente ideológico se descolaram de sua base e caíram no isolamento. Não consideraram adequadamente, como me diz Tetila, "que todos os fazendeiros sabem que as estradas estão deterioradas, há um gasto de combustível de até 40% a mais no transporte, há o desgaste dos veículos e da carga transportada. Com os recursos do Fundersul serão recuperados ou implantados 15 mil km de rodovias, o que significa valorização imediata dos imóveis desses senhores". Se considerarmos que dos 24 deputados, quinze são fazendeiros, o governo tem o que comemorar.

A procissão dos mortos invisíveis

"Nada tão vergonhoso no continente", me diz com sua voz pausada e reflexiva o deputado Laerte Tetila, quando se refere ao interminável martírio do povo Kaiowá-Guarani, nas aldeias de Dourados e Panambizinho. A conversa com esse geógrafo é surpreendente. Não pela exuberância, mas pela sobriedade, qualidade rara nos dirigentes políticos brasileiros, mesmo os da esquerda. Tetila não altera a voz quando descreve o drama dos Kaiowá-Guarani ou quando relata que a fachada de sua casa recebeu 67 tiros na época da CPI da Pistolagem, durante seu mandato na Câmara Municipal de Dourados. Deixa que os fatos falem por si mesmos. "São 9 mil índios confinados numa área de 3 mil hectares. Um campo de concentração a poucos quilômetros da cidade. A raiz está na terra, ou na ausência dela. Ilhados, sem qualquer perspectiva de sobrevivência autônoma, são impelidos a changear, assim designam o trabalho fora das aldeias. Os Kaiowá-Guarani são muito requisitados pelos fazendeiros pela grande disposição para o trabalho na cana, nas empresas de reflorestamento, na limpeza dos aceiros. A proximidade com os centros urbanos os deixa expostos, mais que ao contato indiscriminado, a uma relação econômica assentada na superexploração do trabalho. A changa destrói a estrutura familiar patriarcal e abre espaço para a adoção e reprodução dos valores da sociedade envolvente. A multiplicidade de denominações religiosas opera de modo inevitável a destruição da cultura Kaiowá-Guarani".

Em 13 anos contam-se 308 Kaiowá-Guarani mortos em circunstâncias muito semelhantes: envenenados por ingestão de produtos químicos utilizados na agricultura ou por enforcamento, ainda que alguns dos mortos tenham sido encontrados pendurados em árvores ou no travessão da ôga, a choça de palha, quase de joelhos. Para designar essas mortes, a Funai, a polícia, a imprensa referem-se a suicídio. Antônio Brand, ex-secretário do Conselho Indigenista Missionário (Cimi), estudioso dos Kaiowá-Guarani desde os anos 70 acompanha e registra essa tragédia que parece não ter fim: entre 12 e 18 anos foram 123 mortes; entre 18 e 24 anos foram 63; 65% dos Kaiowá-Guarani mortos nessas circunstâncias tinham entre 12 e 24 anos.

Nenhuma sociedade medianamente civilizada pode permitir-se a indiferença diante da brutalidade e da extensão desse drama. Referir-se a essa tragédia continuada como uma seqüência de suicídios é um escárnio. Os Kaiowá-Guarani, diferentemente de outros povos, se caracterizaram na relação com a sociedade envolvente por sua inadaptabilidade; por sua insubmissão aos valores que lhes chegaram; pelo profundo apego aos valores de sua própria cultura como fator de sobrevivência como povo.

Aqui se reproduz o que ocorreu em muitos outros espaços da atormentada geografia dos povos indígenas que, por fatalidade, ocupavam as terras hoje definidas como território brasileiro, passados 500 anos de colonização. Vale lembrar uma história edificante repetida por antropólogos e missionários que conseguiram despir-se da impermeável armadura eurocêntrica que presidiu suas relações com as comunidades autóctones nos continentes colonizados: "Quando vocês, brancos chegaram aqui, nós tínhamos a terra e vocês tinham a Bíblia. Hoje, vocês têm nossa terra e nós temos apenas a Bíblia..." Essas duas linhas, em grande medida, resumem a relação entre os Kaiowá-Guarani e a sociedade brasileira. O nome para designar esse processo não é uma seqüência interminável de "suicídios". O nome é genocídio. Os Kaiowá-Guarani tiveram sua terra saqueada; foram submetidos pelos invasores à escravidão assalariada; sua família patriarcal - base de sua organização social e cultural - foi destruída; sua cosmologia, sua construção espiritual foi ridicularizada, desmoralizada diante das gerações mais novas; sua língua vai sendo aos poucos digerida pelo silêncio e pelo olvido; sua alma foi invadida por dogmas estranhos, repetidos de forma canhestra até a exaustão. O que lhes resta? Algum povo terá vivido, na história da humanidade, massacre tão absoluto? Hoje estão condenados a morrer em silêncio. Um a um. Ingerindo os agrotóxicos que os invasores trouxeram consigo para envenenar a terra. E a sociedade brasileira tenta se absolver, designando a assombrosa morte desse povo como suicídio.

Não há soluções simples para um drama dessas proporções. Sejam elas encaminhadas pelo governo federal, a quem cabe a responsabilidade pela política indigenista, sejam pelo governo estadual, que não pode omitir-se diante dele. Quando indago Egydio Brunetto, dirigente do MST, quais são os principais desafios do governo popular, a resposta é objetiva: "A questão indígena e a questão da terra. Nessa ordem. Se o Zeca resolver o drama das terras indígenas no Mato Grosso do Sul, será o melhor governador dos últimos quinhentos anos".

[/nextpage]

[nextpage title="p3" ]

 

Pousada Rio Vermelho

Choveu pássaros aquela manhã. Por um momento julguei ter-me apoderado do olhar de Manoel de Barros, poeta que traduz para o português a língua surpreendente dos rios, dos bichos de unha, de pluma, dos peixes desses corixos. As pessoas normais são acometidas de pássaros, lá uma vez na vida, por desatentas. E se são cardeais esses pássaros, mais raro ainda. Na Fazenda Rio Vermelho, porém, o que se viu foi um conclave, um concílio mais numeroso e belo que o Vaticano II. Uma cavalaria, como se diz por aqui, para designar essa revoada de luz. Como um arco-íris dilacerado chovendo diante de nossa retina alfabetizada pela cinza das cidades. Pousáramos há pouco numa pista precária para uma visita aos ninhais de cabeças-secas, colhereiros e garças brancas e para participar de um churrasco oferecido ao presidente do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), Dr. Enrique Iglesias. Aqui nesse Mar de Xaraés que permanece sob as águas durante a metade do ano.

A visita de Iglesias envolve aspectos da disputa que se trava em torno de cada iniciativa tomada pelo governo popular. Quando o governador anunciou a viagem a Washington para entrevistar-se com a direção do Banco, a imprensa local e algumas lideranças conservadoras tentaram ridicularizá-lo, pondo em dúvida se ele seria recebido. Erraram. Não só foi recebido, como vinte dias depois o presidente do Banco desembarcava em Campo Grande para discutir e dar encaminhamento ao Projeto Pantanal, que se encontrava engavetado há quase dez anos por falta de interlocutores com credibilidade.

São US$ 400 milhões divididos entre os governos do Mato Grosso do Sul e Mato Grosso para serem investidos em preservação ambiental - para deter, por exemplo, a agonia do rio Taquari, assoreado pela destruição das matas ciliares -; no saneamento básico das comunidades, para dotá-las das condições necessárias para acolher os turistas que chegam em número crescente de várias partes do mundo ao Pantanal; na malha viária para garantir condições adequadas de acesso; e para treinamento e qualificação de mão-de-obra para o trabalho na rede hoteleira e nas pequenas pousadas.

Pousamos em Corumbá. O tempo suficiente para as entrevistas de praxe e o embarque no Índia Porã II para nos darmos conta da majestade do rio Paraguai. Navegamos cerca de duas horas por seus labirintos tendo Corumbá diante de nós, nos altos, buscando inutilmente deter o pôr-do-sol: um casario, assentado sobre uma ponta de pedra branca, que se encontra ali desde o século XVII vigiando o curso imperceptível da vida. Ou dando batalhas, como no século passado, durante a guerra do império contra o Paraguai. O casario pede emprestado ao rio seus estoques de silêncio. E desafia com enigmas nossa vontade de compreender, de discernir as noites e os dias que desenham no espelho a cara que demonstramos - esquiva cara de bugres - a quem se aproxima. Tomamos depois o rumo do norte, para as nascentes, por mais dezoito horas, em lombo de águas.

A paisagem me invade e começo a entender - imagino - a febre que possuiu Manoel de Barros. Manoel é aderido às incongruências da paisagem... Por isso é contagioso. Foi tomado pela febre que vai destilando nas veias de quem for envenenado por sua poesia. No seu Livro de pré-Coisas, ensina a certa altura: "No pantanal ninguém pode passar régua. Sobremuito quando chove. A régua é existidura de limite. E o pantanal não tem limite". Essa é a percepção mais profunda que vai tomando conta de todos à medida que avançamos. Ninguém sabe dizer aonde terminam as águas, aonde começa a terra. A própria terra não é convincente. Aqui se move, afunda para aparecer mais adiante armada em bancos de areia prontos para encalhar as chalanas que se iludem com o contorno movediço das margens. Navegamos noite adentro. Quando subo à cobertura, por volta das seis da manhã, a impressão é de que navegamos pelo fundo do rio. Tudo está molhado como se caísse uma chuva invisível. Permaneço na cobertura até que as formações de pássaros organizadas pela noite - certamente voando por instrumentos... - se apartem da escuridão e anunciem o sol. Nesse mundo ambíguo, o sol é uma lua extraviada, banhada nos sangues vivos da madrugada. Aprendiz, vai improvisando seu acervo de luzes sobre os verdes reinventados de setembro. Tocamos a proa do Índia Porã II nas alturas do paralelo 18, por volta das onze horas da manhã. Uma pequena pista, ao pé de uma montanha imprevisível no meio do verde abandonado e infinito do pantanal. É como se a aridez dos Andes se inclinasse sobre o Chaco para inteirar-se de suas umidades...

Regressamos a Corumbá para as despedidas e para que o Dr. Enrique Iglesias recebesse um abaixo-assinado reivindicando a inclusão da cidade no programa Monumenta. Trata-se de um programa de preservação do patrimônio histórico e cultural coordenado pelo MinC e financiado pelo BID. Esse registro não é acidental. A iniciativa, independente do êxito na obtenção dos recursos, altera a tradição de tratar desses assuntos da cultura entre os mandatários, sem a participação da cidadania. Mesmo reconhecendo o abaixo-assinado como uma forma elementar desse exercício, no curto período da campanha, 30 mil pessoas assinaram o documento e, portanto, tomaram conhecimento do pleito e do significado da recuperação do casario de Corumbá.

Uma rajada de balas

Esse relato foi varado pela rajada de balas que alcançou o peito de Dorcelina Folador, prefeita de Mundo Novo. Uma pequena cidade a 18 quilômetros da fronteira com o Paraguai. Eram 23 horas do sábado, 30 de outubro. Dorcelina foi assassinada com seis tiros, na varanda de sua casa. Apesar das denúncias e advertências que fazia, das ameaças de morte que recebia desde a campanha eleitoral que a elegeu. Morreu como antes morrera Chico Mendes, como antes ainda morrera Margarida Alves, como morreram tantos... Deixou duas filhas: Jéssica, de 8 anos, Indira, de 4, e o marido César Folador. O assassinato de Dorcelina merece algo mais que a nossa indignação. "O que pode o grito se não se perpetua?" O processo de privatização do Estado brasileiro conduzido metodicamente por Fernando Henrique Cardoso, ao lado de destruí-lo como prestador de serviços públicos para a grande maioria da população, corrói sua legitimidade como representação da cidadania.

Nos milhares de pequenos municípios do interior, os organismos que mais se aproximam, ainda que vagamente, daquilo que nomeamos como civilização é o Estado na sua representação local: a prefeitura, secundado na maioria dos casos pelas igrejas. Não existe o que se poderia designar como sociedade civil. No máximo aparecem os movimentos sociais, em geral de vida curta, em torno dos quais as pessoas se mobilizam para reivindicações específicas. Quando o Estado desaparece como garantia dos serviços básicos universais aos cidadãos, perde a legitimidade, desaparece como poder constituído. Ausente o Estado, numa sociedade em acelerado processo de desagregação, abrem-se as portas para o crime. Em outras palavras, desloca-se o centro do poder na direção de quem, na sua falta, detém os meios de coerção e violência: o crime organizado. Isso vale para Mundo Novo, um morro carioca ou uma favela de São Paulo. Entre meados de 1997 e novembro de 1999, foram assassinados oito prefeitos no interior do Brasil. Não é possível estabelecer comparações entre eles. Vêm de trajetórias políticas diferentes, por vezes até antagônicas. Mas é inevitável estabelecer um nexo entre essas mortes. O mais provável é que encontremos esse mesmo pano de fundo emoldurando todas elas.

Não é inédito esse desfecho para uma contradição que, ao longo de mais de uma década, opõe o latifúndio e o narcotráfico, nem sempre associados, de um lado; e o MST e o Partido dos Trabalhadores, de outro. É reduzida a capacidade de um governo municipal ou mesmo estadual para fazer frente a um processo que deriva das políticas de liquidação do papel do Estado geradas pelos compromissos entre a União e os organismos gestores dos interesses dos grandes centros financeiros. As políticas neoliberais desconstituem o Estado de suas funções. Onde a sociedade civil não alcançou maturidade suficiente para uma ação autônoma, os cidadãos se vêem inermes diante do atropelo da lei, da violência e freqüentemente da morte. Aqui reside, em parte, a tragédia da prefeita de Mundo Novo, em que pese todos os seus esforços em fortalecer os movimentos sociais, em trabalhar na direção contrária. O que "a máfia da fronteira", como ela mesma definia, buscou matar com ela não foi a mulher, a mãe, a liderança popular. Foi o método de conduzir os assuntos públicos com democracia, transparência, para usar uma palavra da moda, com absoluta fidelidade aos interesses das camadas populares.

A professora Dorcelina Folador foi uma mulher valente. Todos conheciam sua determinação. Portadora de necessidades especiais, mãe de duas filhas, militante, encontrava-se onde a luta assim o exigia: sob a lona de uma barraca num acampamento dos sem-terra; na Prefeitura de Mundo Novo, ou defendendo seus pontos de vista no Encontro Nacional dos Prefeitos do PT, em Brasília. Denunciando a violência do latifúndio; o narcotráfico; a venda de bebês; o tráfico de órgãos ou anunciando os programas sociais como a bolsa-escola, a renda mínima e o financiamento aos pequenos agricultores que fizeram dela a prefeita mais popular de Mundo Novo nos últimos anos. Eleita com 46% dos votos, há três anos, contava agora com algo em torno de 83% de apoio da população para postular um novo mandato.

Os processos eleitorais ocorrem a cada quatro anos nos municípios brasileiros. Assim reza a lei. O crime organizado, não. Age diariamente. Como uma empresa. Toma suas providências com razoável antecipação. Removendo os obstáculos - Dorcelina era um obstáculo - às suas atividades com antecedência suficiente para parecer um crime acidental, fortuito, sem qualquer nexo plausível com a disputa do poder local, regional ou nacional. Não se tome como indevida essa extensão. Basta estar atento ao que tem ocorrido nas investigações da CPI do Narcotráfico e outras, envolvendo deputados estaduais e federais e membros de altos escalões do Executivo e do Judiciário. O assassinato de Dorcelina cobra da sociedade brasileira algo mais que a indignação passageira. Exige um salto de qualidade nas políticas de segurança pública nos âmbitos estadual e federal para encarar com eficácia o câncer da impunidade que vai corroendo o tecido das instituições políticas do país. Os governos federal e do Mato Grosso do Sul carregam o corpo dessa mulher como um sinal definidor da legitimidade - se forem punidos os assassinos e mandantes - ou - se permanecerem impunes - da rendição diante da evidência de que a mais nova força presente na disputa eleitoral é o crime organizado. Hoje, ele penetra as instituições e trava a disputa com os métodos que lhe são próprios. Amanhã, terá nas mãos os meios para substituir-se a elas.

A vocação transformadora e os desafios da hegemonia

As peculiaridades do processo em curso no Mato Grosso do Sul devem ser examinadas com atenção para que não se tomem as aparências pela realidade profunda e contraditória da experiência de um governo popular num estado de economia agrária e tradição política oligárquica. Neste primeiro ano, o governo tem a seu favor o discurso de que se empenha em pôr ordem na casa. Conquistou credibilidade pelos êxitos alcançados com o aumento da arrecadação e o pagamento das folhas atrasadas dos servidores públicos, o que atesta a competência e o rigor da equipe dirigida por Paulo Bernardo, secretário da Fazenda. Essas não são apenas vitórias morais. Além de recuperar a credibilidade perante a sociedade, o estado é grande empregador. Quando salda seus compromissos pagando em dia os salários e os fornecedores, acaba, de algum modo, injetando recursos na economia. Ainda que seja para que os prestadores de serviços e o pequeno comércio não fechem suas portas.

Passado o primeiro ano, o discurso de "pôr ordem na casa" perde a vigência. Por várias razões: se o governo levou um quarto do seu mandato e não saneou suas contas, não se deve nutrir grandes expectativas sobre ele; 2000 será ano de disputas municipais em todo o país e as contradições que essa disputa despertará no interior da frente popular são inevitáveis e legítimas; não é prudente imaginar, por outro lado, que as oligarquias se encontrarão divididas e paralisadas, dois anos depois da derrota eleitoral de 98; o delicado quebra-cabeças montado na relação com a Assembléia Legislativa tende ao tensionamento e ao desequilíbrio e, por fim, mas não menos importante, os movimentos sociais do campo e da cidade que, por razões conhecidas de identidade com o programa do governo popular, e depois de um ano de trégua pelo pagamento dos salários atrasados e pelas ações moralizadoras, tendem a se movimentar e pressionar no sentido de traduzir bandeiras de campanha em atos administrativos. A partir de agora, todo ato administrativo deve encontrar sua tradução política imediata nos termos da disputa pela hegemonia da sociedade. Não há motivos, portanto, para prever um período fácil nos próximos doze meses.

Quais são os termos dessa disputa? A contradição que contrapõe o governo popular aos seus adversários se desdobra em duas faces: na economia, o binômio soja-boi assentado no monopólio da terra; na política, o mando familiar, oligárquico. Deslocar o eixo de desenvolvimento do estado da pecuária para a agroindústria e o ecoturismo e romper com a tradição da clientela, do compadrio, da submissão dos setores populares e estabelecer o processo de construção de uma sociedade democrática e participativa. Aí reside o desafio.

Quais são os meios? O Orçamento Participativo como concepção do exercício democrático da cidadania na definição das políticas públicas, pode converter-se num instrumento privilegiado dessa disputa. Numa sociedade fechada, em que a participação efetiva do cidadão se limita ao ato de votar, ou seja de delegar poder, o Orçamento Participativo assume uma dupla função: processo pedagógico para construir uma nova relação entre o Estado e a sociedade; e a socialização das responsabilidades por definir as políticas de investimento dos recursos públicos.

Até agora foram envolvidas 39 mil pessoas na primeira fase, nos 77 municípios do estado. Os participantes votaram em três demandas, fixaram a ordem de prioridades para sua região e elegeram os delegados aos forums regionais. Ao todo, 2.284 eleitos representando doze regiões. Desses, resulta um fórum de 150 conselheiros no âmbito estadual, cruzando alguns critérios: um conselheiro por município; um por região; 25% aproximadamente pela densidade populacional da região; e 36% pela participação nas assembléias. Para conduzir o processo foi escolhida uma coordenação paritária: quatro eleitos e quatro indicados pelo governo. Incorporando experiências anteriores, sobretudo as de Porto Alegre e agora do Rio Grande do Sul, a coordenação orienta o debate no sentido de adaptar aquelas experiências à realidade do estado. Definindo o orçamento por regiões - cujas dinâmicas são muito diferenciadas - busca corrigir distorções no investimento dos recursos e inibir as políticas de clientela.

Saulo Monteiro, coordenador do Orçamento Participativo, registra com alguma preocupação que o envolvimento dos membros do governo no processo está abaixo da expectativa. Há, neste primeiro ano, a circunstância da construção do governo, montagem de novas secretarias, ressalva. "Mas, o fato é que ainda não estamos convencidos do conteúdo e do alcance mais profundo desse processo. Tomamos o Orçamento Participativo como se fosse apenas uma questão orçamentária, sem atentarmos para o seu significado como método de ação política".

É preciso considerar, a partir do que ensina a história recente dos governos populares, que uma experiência de governo até o momento realizada sob condições de cerco cerrado da imprensa - e não há elementos que indiquem alteração desse quadro - deve concentrar-se na produção de alternativas de comunicação e mobilização popular que resultem em mecanismos efetivos de disputa de hegemonia a partir dos setores organizados em torno do Orçamento Participativo e dos movimentos sociais dos trabalhadores. A consolidação do Orçamento Participativo como método instituído de decisão democrática sobre a aplicação dos recursos públicos radicaliza o processo que combina a democracia direta com a democracia representativa e permite um passo decisivo na ruptura com os mecanismos de clientela utilizados tradicionalmente pelo sistema político oligárquico.

Ao contrário do Pantanal, o espaço da revista tem limite. Chego ao fim desse registro com algumas convicções e muitas dúvidas. Neste país contraditório, a esquerda, os socialistas, alcançamos vitórias nas metrópoles e em estados de sociedades fechadas, como Mato Grosso do Sul, que Zeca do PT prefere chamar de estado do Pantanal e abre agora uma campanha popular com vistas a um plebiscito para mudar o nome. Ao lado da convicção de que vale a pena travar a disputa, ainda que às vezes à custa de perdas irreparáveis como a morte de Dorcelina Folador, me persegue a dúvida: num estado com essas características quais são as tarefas de um governo de frente popular dirigido por socialistas? Ben-Hur Ferreira, deputado federal mais votado do estado nas últimas eleições, numa das conversas que tivemos, reflete e dispara - Ben-Hur fala em descargas curtas, como uma metralhadora - "Dialogamos pouco com a sociedade civil, com os cidadãos que não se encontram organizados em nenhum espaço formal, igreja, sindicato, partido, clube, associação comunitária, esse cidadão comum que encontramos na rua e que tem grandes expectativas no nosso governo. E temos que chegar até ele. A adesão dele é a garantia da continuidade do nosso projeto". As tarefas são muitas. Ao lado do fazer diário, das tarefas administrativas, da condução das políticas sociais, da disputa diária com as forças conservadoras, do combate ao crime organizado, se impõe a necessidade de construir uma sólida unidade da esquerda em torno dos objetivos claros que estão no horizonte visível: um projeto de desenvolvimento do estado assentado sobre a agroindústria e o ecoturismo - capaz de isolar o latifúndio - e romper com a tradição política oligárquica. Pode parecer pouco, mas não é. Nesse tempo em que prevalecem a lógica do mercado e a abdicação da esfera pública, é imprescindível termos a coragem de sermos portadores da loucura de reforçá-la como espaço de exercício democrático contra a barbárie e de ouvir a fala do homem da rua porque "no osso da fala dos loucos, tem lírios..."

Pedro Tierra é poeta.

[/nextpage]