Sociedade

Antropóloga e professora do Programa de Pós-graduação em Ciências Sociais da PUC-SP, Carmem Junqueira realiza pesquisa de campo no norte do Mato Grosso. Publicou 'Os índios de Ipavu' (Ática) e 'Antropologia indígena' (Educ).

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Qual tem sido a política do Estado brasileiro com relação aos índios?
A política indianista brasileira é extremamente contraditória. Por vezes, algumas legislações temporárias davam mais liberdade aos índios, matava-se menos, pregava-se uma certa boa vontade. Mas logo refluía tudo. É um vai e vem da colônia até a primeira república, mas que deixa claro sempre uma tendência antiindígena.

No começo do século uma boa parte dos índios continuava nas suas aldeias, por vezes isolados. Tinham contato com missões da Igreja, que sempre se esmeraram em catequizá-los. Com a república, o governo central começa a controlar os assuntos da Nação. Ora, um grande problema para isso era a questão indígena. Data do começo deste século a fundação do Serviço de Proteção aos Índios, que buscou acabar com as concessões de proteção dadas à Igreja. O controle passou para o governo federal. Mas é um controle administrativo, pouco efetivo, dada a distribuição espacial dessas populações, a maior parte na Amazônia.

Desde o início se nota o desejo de formar índios iguais a nós. Isso começou com as catequeses, visando levá-los a crer no Deus dos europeus. Mas a idéia de fazê-los iguais aos brancos era de torná-los trabalhadores rurais. Os índios têm usufruto perpétuo das terras que habitam, que são da União. Enquanto forem índios eles podem usar estas terras. Por trás dessa tendência de fazê-los iguais a nós está o objetivo de liberar terra de certos territórios, tidos como muito grandes para uma população pequena. Nunca se entendeu – ou não se quis entender – a forma de produzir do índio.

Vemos nesses últimos cem anos, na população indígena, uma crescente substituição de hábitos, relações de trabalho, crenças. Adotou-se uma política de contato paternalista. A aproximação com um grupo é feita deixando presentes, com uma generosidade enorme, que vai minguando à medida que a população indígena vai se habituando ao contato. Até que de repente é apresentada a idéia de que a comunidade tem que ser auto-sustentável. Porém, com o acréscimo grande de necessidades que o contato traz, não é possível eles se tornarem auto-sustentáveis com a agricultura.

Como essa política influenciou o comportamento dos indígenas?
Uma parcela da população indígena queria parecer igual aos brancos. Passaram a se vestir iguais, a usar tênis, e a ter aspirações semelhantes. Em alguns casos, eles têm computador, fax, televisão, mesmo que não haja eletricidade na aldeia. Fundam, então, uma associação e montam um escritório na cidade mais próxima, onde vão gerir os assuntos da aldeia. Aí a tecnologia se impõe e eles começam a pensar muito parecido ao jovem da cidade. Toda a mídia – a televisão em particular – atinge essa população, que tende a ficar igual na maneira de pensar, de vestir, de agir, nos objetivos que se coloca.

O antropólogo sempre reclama disso, porque quando ele chega na aldeia encontra as mesmas reivindicações, as mesmas angústias da juventude da cidade. Há uma homogeneização centrada na mercadoria. Todos se rendem a ela, e não há limite para se parar de desejar mercadorias. É sufocante, porque você vê se formar aos poucos uma geração que tem como principal preocupação o consumo, inclusive buscando se igualar às elites médias ou altas. Não há nada de culturalmente cria­tivo – nem arte, nem música.

Esse processo atinge todos?
Esse processo é contraditório. Restam, em primeiro lugar, os velhos, que vão perdendo a liderança. São substituí­dos pelos novos líderes, que sabem falar português, que têm grande participação política. Os velhos são alijados e ficam, na melhor das hipóteses, com as coisas que para os jovens parecem um pouco fora de lugar: os mitos, as tradições, as grandes festas. E as mulheres que, como não têm um contato muito continuado com o exterior, guardam um pouco mais a tradição.

Mas entre os jovens é só isso que existe?
Não, porque por mais que o discurso fosse o da igualdade, a prática mostra que não é possível ser muito igual. Em conseqüência, há um interessante fenômeno, no período mais recente, de politização da nova geração. Em estados como Acre, Pará e Amazonas, há vários grupos indígenas cujos líderes são de partidos como o PCdoB e o PT. O exercício da política se dá por meio das associações fundadas para representar o grupo. As associações são o núcleo de interlocução com o Estado, com as agências financiadoras ou com qualquer outra entidade. Tradicionalmente, para entrar em uma área indígena era preciso pedir autorização ao Ministério da Justiça, à Funai. Hoje as entidades do governo é que solicitam autorização. Quem decide se convém à comunidade a entrada é a associação. As associações gerem os negócios modernos da comunidade.

Por outro lado, a terra permanece sendo dos índios enquanto eles forem índios. Os jovens já perceberam que ser índio é a chave que permite ter terras. Sempre há invasões, mas a contestação sistemática tende a diminuir. Latifundiários e grileiros temem quando se inicia um processo para demonstrar que a terra é indígena, pois sabem que acabarão perdendo. Então, as novas gerações percebem – em contradição com aquele desejo de consumir, de se tornar igual – que é importante ser índio, cultuar tradições, reafirmar as origens.

Ser índio se transforma portanto em um objetivo político, porque assegura uma série de coisas. E isso encontra eco entre os velhos e as mulheres. Poderíamos dizer que as crianças são socializadas basicamente pelas mulheres, na primeira infância, de uma forma mais tradicionalista. Quando chegam numa certa idade, são motivadas pelo consumo, vão para as cidades, conhecem os computadores, as televisões; depois, ao entrar nas associações, reconhecem o valor das tradições. Hoje assistimos a essa reação de reafirmação. Há casos de alguns grupos, no Nordeste, que acabaram esquecendo a língua. Eles foram, então, fazer um estágio em grupos que têm língua semelhante para aprenderem-na como uma segunda língua, e por meio desse processo recuperarem a sua própria. Poderia dizer que temos hoje uma nova geração de índios.

Essas jovens lideranças vivem, então, entre dois universos?
Esses dois universos enriquecem a existência dessa população mais jovem. Ela conheceu o universo das reivindicações políticas, buscando mais recursos e melhorias para suas comunidades e portanto transita bem nas grandes cidades, tendo ideologias bem definidas, mais à esquerda ou mais à direita – também há a direita principalmente através das correntes cristãs evangélicas. Então, por força de uma percepção política mais aguçada, o ser índio constitui-se num elemento fundamental. Eles perceberam que não funcionava a idéia de torná-los iguais e optaram por ser diferentes; assim é mais fácil encontrar um espaço na sociedade. Sendo igual, o indígena cai na vala comum, acaba virando trabalhador rural etc.

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Os índios seriam “pós-modernos”?
Acho que nesse sentido sim. A tônica do movimento mais de vanguarda indígena é essa. Evidentemente que se todos nós sucumbimos ao fascínio da mercadoria, por que eles não iriam sucumbir? O interessante é que eles têm esses anseios como nós e, ao mesmo tempo, retornam a algo que ajuda a impedir a desintegração da comunidade. São as questões vinculadas aos mitos, fundamentais para aumentar o prestígio do povo, da sua cultura, enfim das características próprias da comunidade. Porque o mito, ao relatar as origens, dá legitimidade. Então o mito, que tinha sido esquecido pelos mais jovens, é reaprendido, preservado, porque ao lado da língua e da terra garante a legitimidade do ser índio. Ele é fundamental para a reconstituição de uma identidade cultural. Este é o ponto positivo. No mais, esses 500 anos só deixaram sofrimento e desorganização social: tristeza, perda de terras, altos índices de mortalidade, fome. Onde existe um grupo indígena perto de área estratégica do ponto de vista de terra ou minério, tudo se desmorona. Muitos povos já se extinguiram ou vivem uma vida miserável. Mas, por força da própria reação indígena, com ajuda de muitos agentes políticos da sociedade branca, houve realmente um ga­nho fantástico nesses últimos 20 anos.

Você está falando de um movimento indígena sofisticado, com conhecimento da sociedade mais ampla, que desenvolve estratégias políticas conscientes e que recupera suas tradições como um recurso. Fale um pouco mais desse movimento...
Esse movimento é constituído por dezenas de associações: os povos da Amazônia, os povos do Xingu etc. Mas é uma unidade em equilíbrio instável. Os povos indígenas de modo geral não conseguem assimilar certos conceitos – nesse sentido eles são pós-modernos – como, por exemplo, o de representação.

Como eleger um representante que é de outra tribo? Eles acreditam na democracia direta, aquela em que se reúne todo mundo na praça e se faz a eleição. Nas associações locais, de cada aldeia ou de cada povo, também há disputas pelos postos de maior poder e prestígio. É um processo mais instável até do que o equilíbrio da ONU, porque na ONU você tem a hegemonia dos EUA. No caso das associações indígenas, os blocos se compõem e recompõem. A unidade é possível e de forma compacta quando se trata de problemas que atingem todos, como certas questões de terras, de hidrelétricas.

Cada povo mantém sua identidade e as delegações para representar toda uma área são sempre instáveis. Há, dessa forma, necessidade de constantes consultas, o que nem sempre é possível. Mas houve um grande amadurecimento político. Evidentemente, quando eles começam a ter uma participação política em cargos eletivos, dependendo do partido, às vezes isso traz complicações; esses representantes começam a entrar nos esquemas de clientelismo e corrupção. Felizmente, na Amazônia, onde está a maior população, os movimentos e organizações estão mais à esquerda. No Sul do país, os Kaigangue – que mesmo submetidos a um tratamento duríssimo conseguiram recuperar um pouco das suas terras – estão se organizando, impedindo esse contato indiscriminado com o mundo branco.

Qual é a origem desse processo?
Esse movimento começou na década de 70 e explodiu em vários lugares ao mesmo tempo. Houve um grande seminário no Mato Grosso do Sul, do qual participaram Darcy Ribeiro, Fernando Altenfelder e lideranças do estado. Nessa reunião, chegamos a discutir com alguns desses líderes a necessidade deles formarem uma união nacional. Alguns estudantes indígenas que estavam em Brasília, após terem a bolsa de estudos cortada, tiveram que voltar para a aldeia. Eles também começaram a articular a formação de uma entidade que defendesse o direito dos indígenas.

De outro lado, a Igreja começou a reunir líderes, como parte da Pastoral Indígena, para discutir problemas comuns em assembléias; ocorriam muitas em São Paulo. De repente, os índios tomaram o caminho de exercício político. Hoje temos a União das Nações Indígenas, que é muito contestada em vários lugares, e associações localizadas. Na Amazônia, por exemplo, temos algumas mais fortes: Associação dos Povos da Amazônia, Associação dos Povos do Rio Negro, Associação Terra Indígena do Xingu. São dezenas e dezenas de associações importantes. Elas trabalham regionalmente e se encontram quando o assunto é mais grave. A Associação Terra Indígena do Xingu, por exemplo, tem escolas em que os próprios índios começaram a ensinar as crianças, e agora estão tendo cursos regulares. Os professores indígenas e as escolas estão se aprimorando.

Esta é uma tendência mais geral?
É a tendência que eu conheço melhor, não sei se é a mais geral. Mas sei que, por exemplo, em Rio Negro e no Acre, as associações são fortíssimas, têm diálogo com os governos estaduais. Na Amazônia, de modo geral, ficam as frentes mais progressistas, compostas por religiosos, médicos, indigenistas e populações indígenas. No fundo, eles conseguiram com esforço criativo se apropriar de certos conhecimentos que nós geramos, certas formas de organização que adotamos ou inventamos. Ao mesmo tempo que se quer manter a autonomia, percebe-se que a integração é importante, principalmente para a obtenção de mais recursos financeiros – nacionais ou internacionais. De um modo geral, o clima nesses grupos mais de vanguarda é de não desejar se tornar branco; eles querem ser índios.

Mas tendo um contato sistemático com a cultura branca! Nesses tempos de mídia globalizada, o acesso é total...
Total. Ao mesmo tempo, como entram em contato com a sociedade regio­nal, eles sofrem discriminações. O racismo que atinge as relações entre brancos e negros também os atinge. O Brasil é um país racista disfarçado, mas racista. Na sociedade regional eles são colocados “no seu devido lugar”. Isso reforça o interesse pela associação política.

Quantos povos indígenas existem hoje no Brasil?
São mais de 200 povos, em 2000 aldeias, falando mais de 170 línguas.

Quais são as condições de vida das populações indígenas hoje? Fala-se de alguns povos que “enriqueceram”...
É, mas é complicado. Há, por exem­­plo, os povos de Rondônia que tiveram um período de “riqueza”, quando começaram a vender madeira. Só que, no momento em que há a cooptação de líderes e a corrupção, se esboça nesses líderes que se deixaram envolver a preocupação com a trajetória individual. E mesmo que estes às vezes se tornem mais opulentos, a comunidade sempre fica às moscas. De maneira geral, são populações muito pobres. Todos os povos indígenas lutam para sobreviver. Evidentemente aqueles que têm maior extensão de terra têm mais facilidades. É preciso lutar para obter saúde, porque são zonas de doenças endêmicas sérias. Educação, mal ou bem estão conseguindo. Mas o que pesa mais hoje dentro dessas comunidades é a não satisfação das necessidades que foram criadas.

Pela sociedade mercantil?
É grave a necessidade de dinheiro para comprar instrumentos de trabalho. Por exemplo, na região de Bodoquena uma prefeitura fez um poço artesiano, pois a região, apesar de ser na boca do Pantanal, sofre secas terríveis. Só que a prefeitura não mandou dinheiro para o diesel, para o motorzinho ficar funcionando. Então, à medida que avança a tecnologia, avança também a dependência de recursos financeiros. Necessitam de roupa, pois não querem ir pelados para a cidade. Enfim, vai havendo necessidade de terem alguma atividade remunerada. A agricultura praticamente não dá dinheiro para nada. Então, são comunidades pobres, algumas miseráveis.

Ainda existem povos que não têm contato com os brancos?
Há, no oeste do Amazonas. Algum tempo atrás a estimativa era que existisse ainda uma dúzia de povos sem contato. O que é um problema, porque o ideal para esses povos seria isolá-los, deixar que vivam sua vida. Não podemos fazer muita coisa por eles. Mas se houver um cerco de fazendeiros, de exploradores de riquezas da floresta, eles acabam sitiados. O esforço da Funai é de começar a estabelecer contato, embora haja divergências dentro da própria instituição sobre isso. Quando há o contato, começa-se a desorganizar a sua economia, com a introdução do dinheiro e dos instrumentos de trabalho. Cria-se a dependência do tratamento de saúde, porque eles passam a ter doenças infecciosas e nós é que temos antibióticos.

Qual o balanço da política do governo nas últimas décadas em relação aos povos indígenas?
A Funai é um misto de alguns funcionários extremamente zelosos e idea­listas e de uma estrutura inoperante. Mas a Funai não é a principal responsável. Nenhum governo deu prioridade à idéia de garantir a sobrevivência dando proteção às populações indígenas. O Estado brasileiro sempre foi antiindígena: porque queria a terra; porque seus aliados queriam a terra; porque queria fazer grandes projetos, como as Alcoas e Alcans da vida; ou porque acha que é muito desperdício proteger populações que estão ainda numa economia de subsistência.

Os serviços que cuidam do índio sempre têm pouca verba. Vemos o senador Romero Jucá, que já foi presidente da Funai, envolvido em transações obscuras com madeira em terras indígenas. O Brasil sempre foi antiindígena. Então, acho que a eclosão desses movimentos é uma renovação e talvez até nos permita alimentar expectativas.

Qual é a perspectiva do Brasil a partir da existência dessas culturas tão diferentes da nossa?
O Estado brasileiro tem que assumir que é multirracial. Ele tem muitos povos. Talvez daqui a mais 500 anos o Brasil já tenha reconhecido que é um país que comporta povos de diferentes origens, tradições, ideários, povos de origem africana, indígena, européia, cada um com suas especificidades. É necessário formar uma confederação de povos. Isso é o que deveria ser o Brasil, em que pese o desejo de unificação da elite. Eu não vejo outra saída, porque homogeneizar não funcionou e não vai funcionar. E a vivacidade desse país reside, não digo na preservação, mas na abertura de espaço para que floresçam essas diferenças. Uma sociedade em que a diferença não se transforme em desigualdade, mas seja um elemento enriquecedor da comunicação e da criatividade.

José Corrêa Leite é editor do jornal Em Tempo e membro do Conselho de Redação de Teoria e Debate.

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