Internacional

Como alguém que padece de amnésia, os EUA amanheceram no dia 11 de setembro em meio a uma guerra, simplesmente para dar-se conta de que ela estava transcorrendo há anos

(publicado em Rebelión)

Desde o dia do ataque às torres gêmeas, políticos e comentaristas norte-americanos repetem o mantra de que no país a vida continua como sempre. O estilo de vida americano, insistem, não será interrompido. Uma estranha afirmação quando toda a evidência indica o contrário.

Esse é o momento, no jogo da guerra, no qual desumanizamos nossos inimigos. Eles são totalmente incompreensíveis, seus atos são inimagináveis, suas motivações não fazem sentido. São "homens loucos" e seus Estados são "malfeitores". Não é hora de ser mais compreensivos só para mostrar uma inteligência superior. Essas são as regras do jogo da guerra.

Sem dúvida as pessoas sensíveis objetarão essa caracterização: a guerra não é um jogo. Trata-se de vidas reais despedaçadas, de filhos, filhas, mães e pais perdidos, cada um com uma história de dignidade.

O ato de terror daquela terça-feira foi a realidade em sua expressão mais crua, um ato que fez com que, de repente, todos os demais atos parecessem frívolos. É verdade: a guerra não é um jogo. E talvez, depois de 11 de setembro, nunca mais seja tratada como tal. Talvez esse dia venha a marcar o fim de uma era vergonhosa de guerras de videogame.

Houve um claro contraste entre assistir a cobertura daquela terça-feira e a última vez em que eu havia estado grudada na televisão vendo uma guerra ao vivo pela CNN. O campo de batalha do invasor espacial da Guerra do Golfo não tinha quase nada em comum com o que vimos em Nova York. Naquele então, em vez de edifícios reais que explodiam, uma e outra vez, víamos somente bombardeios que fixavam suas miras em alvos de concreto; estavam aí e depois não estavam mais. Quem aqueles polígonos abstratos albergavam? Nunca soubemos. A partir da Guerra do Golfo, a política exterior norte-americana tem-se baseado numa só ficção brutal: os militares norte-americanos podem intervir em conflitos no mundo todo – Iraque, Kosovo, Israel – sem sofrer baixas norte-americanas.

É um país que chegou a acreditar no máximo oxímoro: uma guerra segura. A lógica da guerra segura se baseia, é claro, na habilidade tecnológica do combate exclusivamente aéreo. Mas fundamenta-se também na profunda convicção de que ninguém se atreveria a se meter com os EUA – a única superpotência que resta – em seu próprio terreno. Essa convicção havia permitido – até 11 de setembro – que os norte-americanos vivessem sem serem abalados – e até mesmo desinteressados – pelos conflitos internacionais dos quais são protagonistas.

Os norte-americanos não recebem uma cobertura diária da CNN dos contínuos bombardeios ao Iraque. Nem chegam a eles histórias sobre os devastadores efeitos das sanções econômicas sobre a infância desse país.

Após o bombardeio de 1998 de uma fábrica farmacêutica no Sudão (erroneamente tomada por uma instalação de armas químicas), não houve informação sobre as conseqüências do fato desse país não poder produzir mais vacinas.

E quando a Otan bombardeou alvos civis em Kosovo – incluindo mercados, hospitais, comboios de refugiados, trens de passageiros e uma estação de televisão –, a NBC não realizou entrevistas na rua com os sobreviventes perguntando quão impressionados eles estavam pela destruição indiscriminada.

Os EUA tornaram-se experts na arte de satanizar e desumanizar os atos de guerra cometidos em outros lugares. Internamente, a guerra já não é uma obsessão nacional, é um negócio que se deixa nas mãos dos experts. Eis um dos muitos paradoxos desse país: apesar de ser o motor da globalização, a nação americana nunca esteve tão voltada para dentro como agora, nunca foi menos mundial. O ataque de 11 de setembro, além de ser horrendo, seja qual for a descrição que se faça, traz um horror acrescentado: o de que, para muitos norte-americanos, ele parece ter chegado completamente do nada. As guerras raramente chegam como um choque total ao país que é atacado, mas é justo dizer que esta o fez. A CNN pediu a Mike Walter, repórter do USA Today, que resumisse as reações na rua. O que ele disse foi: "Meu Deus, meu Deus, meu Deus, eu simplesmente não posso acreditar".

A idéia de que poder-se-ia estar preparado para tal terror inumano é absurda. Porém, visto pelas redes televisivas norte-americanas, o ataque parecia vir menos de outro país que de outro planeta. Os eventos pareciam ser transmitidos não por jornalistas mas por uma nova espécie de celebridades que fazem inúmeras aparições em filmes da Time Warner sobre os ataques terroristas apocalípticos nos EUA, agora incongruentemente transmitindo algo verdadeiro. E na noite da própria terça-feira, por um estranho instante, o logotipo da CNN de "Estados Unidos sob ataque" desapareceu e em seu lugar apareceu um outro logotipo que dizia "Lutando contra a gordura".

Os EUA são um país que acreditava estar não só em paz, como também garantido contra a guerra, uma percepção de si mesmo que seria toda uma surpresa para a maioria dos iraquianos, palestinos e colombianos.

Como alguém que padece de amnésia, os EUA amanheceram em meio a uma guerra, simplesmente para dar-se conta de que ela estava transcorrendo há anos. O país merecia ser atacado? Claro que não. Esse argumento é feio e perigoso. Mas há uma pergunta diferente que deve ser formulada: A política exterior norte-americana não criou as condições nas quais tal lógica retorcida pudesse florescer, uma guerra não tanto contra o imperialismo norte-americano, mas sim contra a impenetrabilidade norte-americana?

A era da guerra de videogame na qual os EUA sempre têm o controle produziu uma ira enceguecedora em muitas partes do mundo, produto da persistente assimetria do sofrimento. É esse o contexto no qual os pervertidos buscadores de vingança têm uma só demanda: que os norte-americanos compartilhem a sua dor.

Desde o dia do ataque, políticos e comentaristas norte-americanos repetem o mantra de que no país a vida continua como sempre. O estilo de vida americano, insistem, não será interrompido. Uma estranha afirmação quando toda a evidência indica o contrário. A guerra, para usar uma frase dos velhos dias da Guerra do Golfo, é a mãe de todas as interrupções. Assim deveria ser. A ilusão da guerra sem baixas foi derrubada para sempre.

Uma mensagem está piscando em nossa tela de vídeo coletiva: Game Over.

Tradução Celina Lagrutta

Naomi Klein é jornalista, autora de No logo.