Nacional

Assentado na suposição do progressivo anacronismo da Nação como entidade, o governo brasileiro renuncia à produção do saber como afirmação nacional. É um corolário da doutrina liberal dominante a privatização do ensino superior, concebido como atividade mercantil

Não se pode fazer uma correta apreciação dos problemas que enfrenta o sistema universitário público no Brasil sem se levar em conta a natureza específica dessa instituição e as transformações por que vem passando a sociedade mundial nessas últimas décadas.

A universidade é uma instituição milenar. Nascida no século XII em Paris, pela interação de mestres, e em Bolonha, pela aglutinação de estudantes, a universidade acumulou, até o final do século XIX, crescente prestígio social. A instituição condensava a guarda, reprodução e alguma produção do saber. E, desde seu surgimento, foi visível, tanto para a Igreja quanto para o rei, que o conhecimento ilumina, operacionaliza, amplifica e legitima o poder. Isso não se dá, no entanto, sem uma forte tensão interna: sendo um espaço conservador, a universidade – por ser um lugar diferenciado do cotidiano e por reunir uma massa crítica de mestres e discípulos – permitia, ao mesmo tempo, a liberdade relativa para o espírito humano, contendo em embrião o impulso à rebeldia. Ao oxigenar o debate, a ambiência universitária alavanca e repercute o debate doutrinário. Por temer seu conservadorismo, a Revolução Francesa fechou a Sorbonne; para fortalecer-se, a República teve de reinstalá-la, agregando-lhe o binômio academia e grande escola. O ideal republicano do ensino universal, como condição essencial ao exercício da cidadania, teria no seu ápice este binômio. A universidade não estaria mais a serviço do rei ou da Igreja, passaria a ser da Nação.

A aparente contradição entre seu caráter conservador e sua função renovadora expressa-se a cada época no tipo de formação que proporciona. Assim, a confraria universitária no medievo formou e aperfeiçoou notadamente letrados e teólogos; com a desagregação do ancien régime e o surgimento do Estado absolutista, passou a plasmar os dignitários da Igreja, os advogados e mandarins do rei e alguns poucos profissionais. Com o desenvolvimento das forças produtivas, a universidade assume na plenitude a responsabilidade pelo elenco de profissionais de nível superior, como estágio final do processo educacional.

A universidade, portanto, desempenha um papel social indispensável na reprodução da vida social, não podendo, de forma alguma, ser reduzida à mera produtora de recursos humanos. A universidade não é uma linha de produção; para a República, é o cidadão necessário à reprodução da sociedade; o aluno não é coisa, é sujeito co-constitutivo da universidade. O corpo de profissionais dela egresso permite à sociedade nacional acessar o patrimônio técnico-científico da humanidade, criticar as produções culturais, desvelar a qualidade dos objetos disponíveis e a natureza dos fenômenos, situando a sociedade nacional de forma atualizada na fronteira do conhecimento sobre eles. Estas capacitações, em conjunto, permitem ao país articular-se com as potencialidades da civilização de modo não alienado, como simples consumidor das produções materiais e simbólicas das nações líderes. A sociedade nacional necessita, para seu normal funcionamento, de profissionais superiores, com a melhor formação plena. Além do domínio do seu saber específico, o profissional deve estar imbuído de sua responsabilidade cidadã e social.

A produção do saber pela universidade potencializa as forças produtivas e criativas da sociedade e reforça sua presença no contexto mundial. A sociedade, ao amplificar o horizonte de suas aspirações, explicita sinais para que a universidade assuma com maturidade funções criativas. Em um nível prosaico e instrumental, a assimilação e a adaptação do conhecimento disponível às especificidades quer de problemas, quer de recursos é ingrediente de crescente significação ao longo do desenvolvimento nacional. Na ambiência universitária, contudo, a pauta de perguntas não se restringe e projeta-se além desta instrumentação. A criação do conhecimento relevante não pode-se circunscrever apenas à problemática imediata. É essencial, na universidade, o tempo de liberdade para a prospecção pioneira e para construir futuros. Em um duplo movimento, ela apóia a ampliação da base material de uma cultura (pelo instrumental) e expande as expectativas e sonhos do homem social (prospecção pioneira). O sonho e a utopia são os ingredientes básicos da esperança, da mobilização social em busca de um futuro.

A universidade, ao coletar os valores culturais produzidos pela sociedade, processa sua avaliação e sistematização crítica e promove sua difusão. Ao fazê-lo, contribui para a construção da identidade da Nação. Simultaneamente, é aberta, por definição, à convivência e ao intercâmbio mundial. A produção do saber científico é o melhor cartão de visitas de uma Nação. Um país, ao fazê-lo, diz ao mundo que existe, e contribui, ao expor sua cultura, para a diversidade e o aperfeiçoamento do espírito humano. A Nação tem, na universidade, seu atestado de co-participação paritária na produção do saber e da cultura mundiais. Este credenciamento é essencial à dignidade e à auto-estima nacionais.

O prestígio por ela acumulado até o século XIX vem, no entanto, sendo posto em tela de juízo, pois, como casa de alta cultura, sai de foco e, como território, perde visibilidade. São os ícones da cultura de massa as figuras mais festejadas do século XX: Nenhuma equipe de pesquisa científica chegou a um décimo de prestígio dos Beatles; os locais em que estão instaladas as universidades são conhecidos apenas por uma fração dos freqüentadores de um estádio esportivo; Superman e Mickey ganham qualquer concurso de popularidade.

Na universidade pratica-se a ginástica de modelagem da musculatura do saber. O processo baseia-se em colocar perguntas, construir respostas, voltar a perguntar, testando e recolocando continuamente o objeto como problema. A acumulação de conhecimento deriva do aperfeiçoamento do exercício da reconstituição crítica da trajetória da interrogação e do empenho e rigor neste caminhar. As limitações ingênuas do iluminismo enciclopédico há muito foram superadas pelo debate epistemológico, porém a microeletrônica e a informática propiciaram o surgimento de uma nova versão da enciclopédia. Editada em tempo real, a internet, como rede de intercâmbio de informações e opiniões, permite a contínua atualização dos verbetes, superando as limitações da enciclopédia impressa. Com a tecnologia anterior, os verbetes envelheciam e era necessária a geriatria do texto; com a internet, a nova enciclopédia está sendo escrita e reescrita a cada momento. Talvez a maior inovação desta enciclopédia seja o esvaecimento do autor da enciclopédia, do pesquisador especializado qualquer pessoa, ao ter um site, é co-autor da enciclopédia mundial.

São inumeráveis as vantagens desta edição eletrônica: facilita a pesquisa, restabelece o hábito da correspondência etc. No entanto, o desavisado, com freqüência, confunde o saber “navegar” e acessar o imediatamente disponível com o conhecer obtenível pelo longo aprendizado. De forma subliminar, o crente neste equívoco tende a banalizar o saber. E, com isso, a universidade, ao invés de ser exaltada pelo conteúdo de sua atividade como fábrica do futuro, é colocada sob a suspeita de instituição anacrônica, pela prática do longo e rigoroso aprendizado. E este é o primeiro problema e o primeiro desafio com que se defronta hoje a instituição universitária, não só no Brasil como no resto do mundo. Urbe et orbi.

Mas seus problemas não param por aí. Há uma especificidade brasileira que tem que ser discutida e resolvida, para que possamos participar criativamente do debate mundial sobre os destinos da universidade. Entretanto, para captar essa especificidade, é necessário lembrar a trajetória do ensino superior no Brasil. A universidade só surgiu no país com o século XX já avançado. Foi postergada sua instalação, desde a Independência até o entre-guerras mundial. Os fundadores do Estado Nacional brasileiro vieram da Universidade de Coimbra: José Bonifácio, que havia sido, a seu tempo, o maior cientista egresso da Universidade de Coimbra, formulou um ambicioso projeto de universidade para o Brasil – ficou no papel. A República relutou em instalá-la e, mesmo quando foi formalmente criada, foi lenta e imperfeita sua evolução. Houve uma contida multiplicação de escolas e carreiras. Apenas nos anos 70, quando o governo militar desenhou o projeto do Brasil potência, priorizou-se a pesquisa de ciência e tecnologia no espaço universitário. A pós-graduação nasceu do projeto autoritário, mas a própria ambiência universitária dissolveu o estigma de origem. A universidade brasileira foi uma das trincheiras principais da resistência democrática. Uma criatura universitária, a SBPC (Sociedade Brasileira pelo Progresso da Ciência), reuniu e fundiu, nos anos 70, o ideal nacional de autonomia científica com o esforço pela democracia e justiça social.

Nos anos 80, na década de restauração do estado de direito no Brasil, apesar das dificuldades macroeconômicas, houve esforço por preservar a universidade como peça central de uma ativa política científica e tecnológica. Nos anos 90, no entanto, foi colocado entre parênteses o projeto de desenvolvimento científico e tecnológico.

Nesta última década, a estabilidade dos preços foi acompanhada de uma escalada de restrições fiscais. A atrofia do Estado convergiu para estagnação do sonho da universidade de pesquisa. A combinação da crença na inexorabilidade e unidirecionalidade da “globalização”, com a confiança depositada no dogma da perfectibilidade do mercado, capeou o abandono do projeto planejado de desenvolvimento. A estabilidade repousa criticamente na taxa cambial; mantê-la estabilizada implica aceitar uma política de juros elevados, que paralisa um investimento privado e esmaga o gasto público. Juros elevados para sustentar a fidelidade de capitais especulativos voláteis impõem como prioridade absoluta remunerar níveis crescentes de endividamento público estéril. A estagnação resultante caminha junto à progressiva inundação ideológica e submissão geopolítica aos ditames do centro do mundo, que controla o processo de refinanciamento ampliado do país. A desnacionalização foi um processo acentuado na última década. A redução da proteção aduaneira levou à desmontagem de elos das cadeias produtivas e à redução do grau de integração industrial do Brasil. E, com o lento crescimento da economia, o emprego no setor industrial encolheu.

No mesmo período, um conjunto de reformas atrofiou e amesquinhou o Estado nacional, reduzindo seu raio de manobra e despojando-o de instrumentos político-econômicos de ação direta e discricionária. A obsessão com a estabilidade prescindiu de pensar o futuro, quer como prognóstico, quer como afirmação de vontade. Ninguém pode, portanto, surpreender-se com a baixa prioridade atual da universidade pública federal. Carreiras ligadas ao crescimento e transformação perdem hierarquia, num processo que mingua empregos de qualidade. O ensino é, cada vez mais, submetido à lógica dos sinais de mercado; com a educação transformada em mercadoria, é reduzido seu papel à formação de “recursos humanos”. A economicidade da educação e os requerimentos do mercado de trabalho privilegiam carreiras curtas. Promove-se como opção a formação de operadores bem adestrados nas técnicas do momento, dispensados sem conhecer seus fundamentos. São toleradas a hipertrofia do manual e a importação, por convênio, de CD-Roms e procedimentos de centros exportadores de tecnologias educativas. À universidade periférica, além da tarefa de massificar a formação de recursos humanos, caberia, como função residual a prestação de serviços segundo a mesma lógica imediata de mercado.

Assentado na suposição do progressivo anacronismo da Nação como entidade, o governo renuncia à produção do saber como afirmação nacional. É um corolário da doutrina liberal dominante a privatização do ensino superior, concebido como atividade mercantil. Para a periferia, é sublinhada a tese de ser possível a construção do sistema educacional sem priorizar o ensino superior. A universidade pública é submetida a cortes fiscais. Na ausência de novos concursos, os jovens com vocação para o magistério superior se estiolam ou se transferem para o ensino privado. Não há a reposição dos quadros na universidade pública. É instada a inventar formas de obtenção de recursos. A baixa remuneração do magistério desvia sua dedicação à pesquisa pura.

A crise da universidade pública brasileira, se tem uma face que radica nas próprias transformações que a sociedade mundial vem passando nas últimas décadas, tem seu núcleo de problemas na ausência de um projeto verdadeiramente nacional, decorrente de uma década de governos orientados pela aceitação das doutrinas neoliberais. A luta por sua superação, portanto, deve ser vista como parte de um projeto maior em que a própria reconstrução da Nação ocupará o papel de destaque.

Carlos Lessa é decano do Centro de Ciências Jurídicas e Econômicas da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ)