Internacional

Os EUA tenderão a ser isolados cada vez mais na comunidade das nações, embora retendo o poder de mergulhar essa comunidade na desordem

Após sua bem-sucedida invasão do Iraque, os Estados Unidos parecem estar no auge de seu poderio. Compreende-se por que tantos têm a sensação de que os EUA são supremos e onipotentes. Na verdade, isso é exatamente o que Washington quer que o mundo pense.

Não há dúvida de que os EUA são muito poderosos militarmente. Há, porém, uma série de razões para crer que se superexpandiram. De fato, o principal resultado estratégico da ocupação do Iraque é a piora dessa condição de superexpansão.

Superexpansão refere-se a um descompasso entre objetivos e meios, com meios referindo-se aos recursos não somente militares como também políticos e ideológicos. Sob os neoconservadores reinantes, o objetivo de Washington é obter um predomínio militar avassalador sobre qualquer rival ou coalizão de rivais. Essa busca por uma dominação global ainda maior, no entanto, gera inevitável oposição, e é nessa resistência que vemos as raízes da superexpansão. A superexpansão é relativa – uma potência superexpandida pode de fato estar em pior condição mesmo com significativo aumento de seu poderio militar se a resistência a seu poder aumentar em grau ainda maior.

Esse ponto pode soar surreal depois do maciço poder de fogo que testemunhamos na televisão noite após noite. Mas considere o que se segue e pergunte-se se não são sinais de superexpansão:

-O fracasso na tentativa de consolidar um regime pró-EUA no Afeganistão fora de Cabul;

-A inabilidade de um aliado-chave, Israel, para esmagar, ainda que com apoio irrestrito de Washington, o levante do povo palestino;

-O inflamar do sentimento árabe e muçulmano no Oriente Médio e no Sul e Sudeste da Ásia, resultando em enormes ganhos ideológicos para os fundamentalistas islâmicos – o que Osama bin Laden buscava conseguir em primeiro lugar;

-O colapso da “Aliança Atlântica” da Guerra Fria e a emergência de uma aliança compensatória nova, tendo a Alemanha e a França em seu centro;

-A construção de um poderoso movimento global da sociedade civil contra o unilateralismo, o militarismo e a hegemonia econômica dos Estados Unidos, cuja expressão significativa mais recente foi o movimento contra a guerra;

-A perda de legitimidade da política externa e da presença militar global de Washington, com sua liderança global agora vista, mesmo entre aliados, como dominação imperial;

-O surgimento de um forte movimento antiamericano na Coréia do Sul, o ponto mais avançado da presença militar norte-americana no Leste da Ásia;

-A chegada ao poder de movimentos antineoliberais e anti-EUA até mesmo no quintal de Washington – Brasil, Venezuela e Equador –, enquanto a administração Bush se preocupa com o Oriente Médio;

-O crescente impacto negativo do militarismo sobre a economia, com o gasto militar norte-americano tornando-se mais dependente de financiamento do déficit, e o financiamento do déficit cada vez mais dependente de financiamento de fontes externas, criando mais tensões e pressões em uma economia já nas garras da deflação.

Poucos dias depois de sua vitória militar sobre uma potência de quarta categoria, já testemunhávamos o atoleiro político em que os norte-americanos se meteram no Iraque, já que correntes políticas fundamentalistas islâmicas entre a maioria xiita parecem ser os herdeiros políticos do deposto Saddam Hussein. Se o objetivo de Washington é uma ordem pró-EUA estável no Oriente Médio, não é isso que se avista. O mais provável é uma maior instabilidade que tentará Washington a empregar maior poderio militar e um número maior de efetivos, levando a uma espiral de violência da qual não há saída fácil.

Há quase três milênios, outro império defrontava com o mesmo problema da superexpansão, cuja solução lhe permitiu durar 700 anos. A solução romana não foi nem apenas nem principalmente militar em seu caráter. Os romanos perceberam que um importante componente da dominação imperial bem-sucedida era o consenso, entre os dominados, da “justeza” da ordem romana. Como nota o sociólogo Michael Mann em seu clássico Sources of Social Power, a extensão da cidadania romana a grupos dirigentes e a povos não-escravos através do império foi o avanço político que conquistou a adesão das massas entre as nações dominadas. Cidadania política combinada à visão do império provendo paz e prosperidade a todos para criar aquele elemento moral intangível, embora essencial, chamado legitimidade.

Desnecessário dizer que a extensão de cidadania não tem nenhum papel na ordem imperial norte-americana. Na verdade, a cidadania americana é zelosamente reservada a uma minoria muito pequena da população mundial, território cuja entrada é estritamente controlada. Populações subordinadas não devem ser integradas, mas mantidas sob controle ou pela força ou ameaça de uso da força, ou por um sistema de regras e instituições globais e regionais – a Organização Mundial do Comércio, o sistema de Bretton Woods, a OTAN –, cada vez mais manipuladas sem pudor para servir aos interesses do centro imperial.

Embora a extensão de cidadania universal jamais tenha sido uma ferramenta no arsenal imperial norte-americano, durante a luta contra o comunismo no período pós-Segunda Guerra Mundial Washington conseguiu engendrar uma fórmula política para legitimar sua expansão global. Os dois elementos dessa fórmula foram o multilateralismo como sistema de governança global e a democracia liberal.

No período imediatamente posterior ao fim da Guerra Fria, havia, de fato, uma expectativa generalizada por uma versão atualizada da Pax Romana. Havia esperança em círculos liberais de que os EUA usariam seu status de única superpotência para dar sustentação a uma ordem multilateral que institucionalizaria sua hegemonia e asseguraria uma paz augusta global. Esse era o caminho da globalização econômica e da governança multilateral. Esse foi o caminho eliminado pelo unilateralismo de George W. Bush.

Como Frances Fitzgerald observou em Fire in the Lake, a promessa de estender a democracia liberal constituiu ideal muito forte a acompanhar as armas norte-americanas durante a Guerra Fria. Hoje, no entanto, a democracia liberal do tipo Washington ou Westminster tem problemas em todo o mundo em desenvolvimento, onde foi reduzida à função de fachada para governos oligárquicos, como nas Filipinas, no Paquistão pré-Musharraf e em toda a América Latina. A bem da verdade, a democracia liberal na América tornou-se tanto menos democrática quanto menos liberal. Certamente poucos no mundo em desenvolvimento vêem como modelo um sistema movido e corrompido pelo dinheiro das corporações.

A recuperação da visão moral necessária para criar consenso em torno da hegemonia dos EUA será extremamente difícil. De fato, o pensamento em Washington atualmente é de que o modo mais efetivo de construir consenso é a ameaça do uso da força. Ademais, a despeito de sua conversa sobre impor a democracia no mundo árabe, o principal objetivo de influentes escritores neoconservadores como Robert Kaplan, Robert Kagan e Charles Krauthammer é transparente: a manipulação de mecanismos democráticos liberais para criar uma competição pluralista que destrua a unidade árabe. Levar a democracia aos árabes não é nem mesmo um pensamento a posteriori tal como um slogan proferido em tom de gozação.

A equipe de Bush não está interessada em criar uma nova Pax Romana. O que eles querem é uma Pax Americana em que a maioria das populações subordinadas como os árabes seja mantida sob controle através de saudável respeito ao letal poder norte-americano, enquanto a lealdade de outros grupos como o governo filipino é comprada com a promessa de dinheiro.

O presente do Afeganistão tem grande probabilidade de ser o futuro do Iraque – isto é, uma inabilidade para consolidar uma ordem política estável, e menos ainda uma ordem verdadeiramente representativa e democrática.

A combinação de políticas de repressão interna e o fracasso em ir em socorro dos palestinos e iraquianos deverá colocar os regimes árabes aliados dos EUA – dos quais os mais importantes são os governos da Arábia Saudita, da Jordânia e do Egito – em posição ainda mais precária com respeito às massas árabes. Um fortalecimento do Islã político é um resultado provável, assim como é provável que grupos islâmicos subam ao poder ou sejam sérios candidatos ao poder em muitos desses países. Ironicamente, uma abertura democrática dos sistemas políticos desses países – que, segundo alguns, Washington desejaria – deverá levar a esse resultado, mesmo no Iraque, onde a corrente radical da política islâmica xiita é dominante. O mesmo impulso a grupos islâmicos deverá ocorrer no resto do mundo muçulmano, particularmente em dois lugares considerados estratégicos pelos EUA: Paquistão e Indonésia.

Como a segurança de Washington, a segurança de Israel, cujo aprimoramento vem sendo objetivo primordial de neoconservadores como Paul Wolfowitz e William Kristol, ficará ainda mais comprometida. Esse ponto, bem como a frustração ainda maior pela incapacidade de criar uma base política estável para a hegemonia americana por meio de mecanismos democráticos formais, levará os EUA a contemplar uma escolha pouco palatável: retirar-se ou impor um autêntico governo colonial. Os EUA tentarão, porém, não encarar essa escolha enquanto for possível e continuarão a despejar dinheiro e recursos em arranjos políticos inviáveis.

Ao mesmo tempo, variantes locais do novo movimento global da sociedade civil pela paz e contra a globalização conduzida pelas corporações alcançarão o poder ou ameaçarão chegar ao poder em outras partes do mundo, em espe­cial na América Latina. Os exemplos de Brasil, Equador e Venezuela tornar-se-ão mais atraentes à medida que a política econômica neoliberal ficar ainda mais desacreditada no contexto de uma estagnação econômica prolongada em nível nacional, regional e global.

Com os EUA sendo vistos cada vez mais como uma ameaça universal e com interesses econômicos em crescente desacordo com os de Washington, França, Alemanha, Rússia e China consolidarão a coalizão que contrabalançou o poder norte-americano durante a crise do Iraque. Alguns países em desenvolvimento de maior peso, tais como o Brasil, a Índia e a Coréia do Sul, poderão juntar-se a essa formação. Essa coalizão compensatória deverá ter caráter permanente, ainda que seus membros possam mudar.

Uma conseqüência dessa aliança diplomática será uma coordenação mais próxima em questões militares. Mais, a formação de uma força de defesa européia distinta da Otan é provável. Outra conseqüência será o aumento dos gastos militares com os estoques de armas e a pesquisa e desenvolvimento de armas por parte dos membros dessa coalizão restauradora do equilíbrio de forças, quer em separado, quer cooperando uns com os outros. Outra ainda será uma maior cooperação econômica e tecnológica visando criar a infra-estrutura econômica para uma competição militar protraída. Ironicamente, a cruzada de Washington pelo monopólio das armas de destruição em massa levará a maiores investimentos no desenvolvimento de tais armas em grandes países rivais, sem interromper seu desenvolvimento por países menores e atores não-Estados.

Estagnação econômica global e unilateralismo norte-americano promoverão maior enfraquecimento do FMI e da OMC e um fortalecimento de tendências ao protecionismo e regionalismo. Arranjos econômicos regionais, combinando preferências comerciais, controles de capital e cooperação tecnológica, tornar-se-ão ainda mais atraentes em oposição tanto a arranjos de livre comércio multilaterais quanto a acordos de comércio bilaterais com os EUA e a União Européia. Guerras comerciais serão mais freqüentes e mais desestabilizadoras.

Um ator será central em tudo isso: a China. Enquanto a economia americana se vê atolada na estagnação e Washington superexpandido militar e politicamente, a China crescerá com relativa força. Os unilateralistas ficarão cada vez mais preocupados com essa força crescente e acirrarão a competição política e ideológica com Pequim. Ao mesmo tempo, suas opções continuarão limitadas dado o aumento dos interesses financeiros de Wall Street na China, da dependência das corporações norte-americanas dos investimentos naquele país e da confiança dos consumidores norte-americanos nas importações da China, que vão desde mercadorias de baixa tecnologia até bens de alta tecnologia. Washington não encontrará resposta fácil ao desafio representado pela China.

Finalmente – e ironicamente, dados os acontecimentos recentes –, a ONU começará vida nova assim que os países perceberem que sua habilidade de conceder ou retirar legitimidade continua a ser uma importante ferramenta na realpolitik internacional. O papel da ONU como mecanismo para isolar os EUA será aprimorado e é provável que Washington responda com mais vitupérios e ameaças de cortar sua cota, embora não possa boicotar a organização.

Como a Alemanha nazista e a Itália fascista antes da Segunda Guerra Mundial, os EUA tenderão a ser isolados cada vez mais na comunidade das nações, embora retendo o imenso poder de mergulhar essa comunidade na desordem.

Uma coisa é certa: se os romanos vivessem hoje, a única conclusão a que chegariam é que isso não é modo de gerenciar um império.

Walden Bello é diretor-executivo da Focus on the Global South e professor de sociologia e administração pública da Universidade das Filipinas

Tradução: Robert Stuart