Economia

É na obra de Francisco de Oliveira e em sua trajetória política e intelectual que se encontra o caminho, ainda a ser plenamente percorrido, do encontro entre a tradição socialista brasileira e os valores republicanos

Este breve ensaio pretende refletir sobre o que é transcendente, de época e limite, no famoso ensaio de Francisco de Oliveira, publicado em 1972 nos Estudos Cebrap. Ligar o formidável desprendimento de inteligência ali investido à reflexão sobre os impasses históricos do republicanismo no país. Relido hoje, mais de 30 anos depois de sua primeira edição, “A economia brasileira: crítica à razão dualista”, cujo esforço de síntese é talvez a última tentativa de pensar o Brasil moderno a partir de um ponto de vista de totalidade, ainda interroga nosso futuro.

Como obra crítica, ela própria expressão de vetores de destruição e construção intelectual, o ensaio situa-se no trânsito de dois momentos da cultura brasileira: um, que tem o nacional-desenvolvimentismo como paradigma dominante, e outro, que se abrirá a uma crise de projetos nacionais até hoje não respondida de forma estável.

Talvez por isso mesmo uma boa estratégia de prospecção seja interrogá-lo a partir de opostos. Refletir sobre sua transcendência a partir de um exame de época. Demarcar seus limites contrastando-os com seus pontos fortes, verdadeira renovação da visão e novas intuições sobre o Brasil que o ensaio permite. Por fim, investigar o que são suas expressões de época frente às interrogações fundamentais com que nos ilumina.

A crise duradoura do republicanismo

O primeiro objetivo de “Crítica à razão dualista” é fundar ou refundar uma leitura marxista da história do Brasil moderno, isto é, entendê-la “no sentido rigoroso da reposição e recriação das condições de expansão do sistema enquanto modo capitalista de produção”. Aqui, o diálogo obviamente é com a tradição formulada por Caio Prado Júnior, de compreensão do Brasil, das formas não clássicas da revolução burguesa. Seu segundo sentido é participar do movimento de destruição/criação das interpretações do Brasil então em curso no Cebrap, tendo como epicentro o nacional-desenvolvimentismo em sua expressão intelectual mais alta, a obra de Celso Furtado. O ensaio está carregado de referências aos intelectuais do Cebrap, com principalidade para Fernando Henrique Cardoso e Francisco Weffort, em sua crítica à chamada tradição populista. Seu terceiro sentido é provocar, por meio de um diálogo com a tradição formada em torno da Cepal – que constitui um dos momentos mais altos da construção da autonomia do pensamento latino-americano e teve no economista argentino Raúl Prebisch seu fundador –, uma renovação do paradigma de leitura do Brasil. Aqui é Celso Furtado o personagem não apenas intelectualmente mas existencialmente envolvido, já que Francisco de Oliveira se formou na usina de idéias e valores da Sudene.

Essas três intenções, por sua vez, estavam inseridas na crise política do pós-64, de nossa construção republicana interrompida, nas palavras de Furtado. Ora, essa crise havia provocado um desequilíbrio, um distúrbio, um enigma para a cultura política brasileira até hoje não adequadamente formulado do ponto de vista republicano.

Expliquemo-nos. A construção republicana em curso, e interrompida em 1964, não tinha um fundamento claro e estabelecido no terreno democrático. Deste ponto de vista, 1964 não foi apenas um episódio duradouro da derrota do republicanismo, mas de desencontro entre suas vertentes na cultura política brasileira.

A tradição socialista (centrada então no PCB) havia recém se colocado a problemática democrática, mesmo assim como expressão de sua crise a partir do relatório Kruschev, divulgado em 1956, que havia denunciado os crimes de Stalin. Os liberais éticos e democráticos haviam perdido suas batalhas mais decisivas na UDN para os conservadores, polarizados pela liderança de Carlos Lacerda. O comunitarismo cristão, que ganhara fôlego no Brasil dos anos 1950 com a influência de Mounier, Maritain e Lebret, viu-se bloqueado pelas ondas fortes do anticomunismo clerical. O nacional-desenvolvimentismo, expresso na continuidade da tradição getulista, não possuía, nas lideranças de Jango e Brizola, nitidez democrática. O que chamamos de cultura popular, fonte de nossa sensibilidade republicana, apenas abria suas portas de comunicação com o mundo da política.

Assim, se eram nítidos os vetores nacional e de inclusão social do projeto republicano em curso em 1964, era turva sua visibilidade democrática, com os vícios do estatismo, da ambigüidade frente aos direitos políticos, do cerceamento da autonomia política e sindical dos trabalhadores, com as limitações intrínsecas daí derivadas à sua capacidade hegemônica.

Crítica à razão dualista” é, nesse sentido, expressão de época da fragmentação da cultura republicana brasileira. Mas seus vínculos com a tradição protegeram o desenvolvimento intelectual de seu autor, que mantém, ao contrário da maior parte de seus companheiros eminentes do Cebrap, uma fidelidade aos valores republicanos. O desaguadouro de “Crítica” foi naturalmente a tradição política classista refundada pelo PT, mas aí mesmo seu autor sempre se recusou a pensá-lo como uma espécie de marco zero da esquerda brasileira, alheio à tradição (ver o brilhante ensaio “E agora PT?” em Novos Estudos Cebrap nº 15, de julho de 1986, no qual critica a noção apologética e ingênua do PT como o marco zero de uma autêntica tradição operária no Brasil).

Já no ensaio Francisco de Oliveira diferenciava a tradição da Cepal dos “sem razão”, os economistas liberais dogmáticos. E reconhecia o “aporte de conhecimentos” do país que aquela tradição havia trazido. Em “A navegação venturosa”, escrito nove anos depois, encontramos o elogio alto ao caráter universal da contribuição de Celso Furtado por ter forjado o conceito de subdesenvolvimento e formulado a problemática da especificidade do desenvolvimento capitalista na periferia. O ensaio termina em nota pessoal, afirmando: “(...) aprendi com Celso Furtado não apenas tudo aquilo que esta introdução assinala, mas sobretudo uma lição de dignidade, austeridade no trato da coisa pública, da res publica, incorruptível decência política que é o privilégio de quem pôde privar de sua liderança e amizade”. Em comentário ao mais recente livro de Furtado, Em Busca de Novo Modelo – Reflexões sobre a Crise Contemporânea (Jornal de Resenhas, 12 de outubro de 2002), Francisco de Oliveira retoma enfaticamente a tese da atualidade da problemática que seria o cerne de sua obra, a construção da Nação em um mundo desde o início internacionalizado, a capacidade de nos afirmarmos sem recusar a modernidade.

“Crítica” permanece, após 30 anos, porque soube inserir-se no enredo e tornar-se parte das tradições intelectuais clássicas de interpretação do Brasil.

As virtudes excessivas

O ensaio é a primeira grande tentativa de ler o Brasil moderno a partir das dinâmicas e tensões da acumulação capitalista, em um diálogo criativo com O Capital de Marx. Nesse sentido, ele se insere no campo marxista formulado por Caio Prado Júnior, que concebeu a formação do Brasil desde o início no contexto da expansão do capitalismo comercial europeu. É com base nessa cosmovisão que Caio Prado reelabora a problemática republicana da Nação inacabada e do passado colonial que nos constitui, a partir de um ângulo das classes sociais e da afirmação dos direitos do trabalho. Essa filiação e continuidade com a obra de Caio Prado não nos deveria cegar diante das três rupturas operadas por Francisco de Oliveira neste campo interpretativo.

Em primeiro lugar, se Caio Prado mobilizou uma visão classista para responder à problemática nacional, em “Crítica” a problemática nacional é quase dissolvida em uma leitura do conflito central das classes sociais, em particular, entre o capital e o trabalho.

Em segundo lugar, ao contrário de Caio Prado e em sintonia com Celso Furtado, Francisco de Oliveira pensa a Revolução de 30, liderada por Vargas, como nossa revolução burguesa não clássica, isto é, sem rompimento com a estrutura agrária anterior e encimada pelo Estado. Se em Caio Prado o Brasil industrial pós-30 é uma espécie de ponto cego da contemporaneidade, explicado pelas permanências do passado, em “Crítica” avulta a explicitação de seu novo dinamismo e novo contexto. A obra con­s­ciente de Vargas aparece mais nitidamente que em Furtado, embora “Crítica” se ressinta ainda da ausência de uma reflexão sobre a cultura do positivismo gaúcho que gerou e explica Vargas.

A obra, no entanto, mobiliza toda a sua inteligência para lidar com o getulismo e o fantasma do populismo, colando o nacional-desenvolvimentismo como sua expressão ideológica. Reconhecendo a construção histórica de Vargas, aceita seu “distributivismo político”, mas não econômico. Esta última recusa é postulada a partir de uma ótica estrita da acumulação, da repartição da mais-valia absoluta e relativa. Mas cremos ser questionável do ponto de vista da renda nacional, da transição de largos contingentes populacionais do “atrasado” para o “moderno”, das relações de trabalho não regulamentadas para outras reguladas pela lei, dos passos iniciais e seletivos, mas decisivos, da construção de nosso Estado do Bem-Estar Social, dados na Era Vargas.

Em terceiro lugar, “Crítica” se insere em uma certa tradição marxista de polêmica entre diferentes postulações acerca do caráter da crise capitalista, se de subconsumo, de realização ou de superprodução. Ora, Caio Prado sempre foi acusado por uma certa ortodoxia marxista de circulacionista, isto é, de ter centrado sua análise na externalidade da realização das mercadorias aqui produzidas, o que configurava nossa matriz colonial de monocultura para exportação. Furtado também aparece como um autor de matriz keynesiana, portanto com a atenção voltada para as dimensões da demanda, para o subconsumo no ciclo capitalista, para as desproporcionalidades estruturais em nossa formação industrial e para o déficit de poupança gerado pelo consumo suntuário de bens típicos dos países do Primeiro Mundo, chamando a atenção para a necessidade de criar uma sinergia entre crescimento e distribuição de renda, via profunda ampliação do mercado interno.

É talvez aqui que se revelem as virtudes excessivas do argumento de Francisco de Oliveira, isto é, seus limites. O ponto de vista da acumulação de capital fornece-lhe novas chaves de leitura dos dilemas brasileiros. Mas, às vezes, a pretensão de querer tudo explicar pela dinâmica e pelas razões da acumulação industrial leva-o à elaboração de um certo funcionalismo estruturante das relações entre o “atrasado” e o “moderno”. Se, como dissemos, a questão nacional aparecia subsumida frente ao conflito nas relações de produção, a própria questão democrática aparece como que intrinsecamente configurada pela radicalidade do conflito entre trabalho e capital. Superexploração e fascismo, lei estrutural da acumulação e regime político, ditadura ou revolução socialista são os pares de um novo dualismo a tecer as possibilidades socialmente inscritas e delimitadoras do futuro.

Compreende-se hoje, porém, a radicalidade das oposições formuladas naquele ano de 1972, quando boa parte da esquerda socialista brasileira tinha recém-provado o áspero e infrutífero caminho do enfrentamento militar à ditadura. Talvez a obra tenha este mérito duradouro na cultura política brasileira: ter fornecido às novas gerações socialistas, já em sua grande maioria desgarradas da hegemonia do PCB, a possibilidade de começar a pensar a relação entre revolução e democracia, entre socialismo e democracia, entre a crítica do desenvolvimento capitalista e suas possibilidades de superação para além de um capitalismo nacional idealizado. Que esta problemática tenha sido inicialmente pensada em chave de leitura das possibilidades históricas tão radicalizadas, talvez seja pura expressão de época.

A permanência do dualismo e sua crítica

A transcendência do ensaio reside mais na permanência de sua problemática que na resposta formulada. Em outros termos, o dualismo e sua razão teriam prevalecido sobre sua crítica. Expliquemo-nos.

É interessante, em primeiro lugar, comparar “Crítica”e Dependência e Desenvolvimento na América Latina, de Fernando Henrique Cardoso e Enzo Faletto. Este último é, em outro prisma, também uma crítica à Cepal, por meio da dissolução de sua problemática central: a impossibilidade de industrialização e desenvolvimento com base em capitais externos, sem afirmação de um caminho autônomo e soberano. Os autores constatam e teorizam a possibilidade, em alguns contextos, de haver industrialização mesmo com dependência externa, hipótese não contemplada na Cepal. Na obra de Cardoso e Faletto, o conceito de dependência toma o lugar do de subdesenvolvimento, entendido como internalização estrutural e sempre renovada de um dualismo entre “atrasado” e “moderno”, a partir da reiteração da dinâmica centro-periferia. Para Fernando Henrique Cardoso, de forma coerente a esta lógica analítica, somos hoje um país injusto mas não subdesenvolvido, ao contrário do diagnóstico de Furtado. Daí sua crença no sentido virtuoso possível da inserção audaz do Brasil em um ciclo de globalização.

Assim, se a reflexão de Cardoso faz parte de um processo de desfiliação intelectual em relação às tradições interpretativas clássicas do Brasil, como anotou o sociólogo Bernardo Sorj em livro recente, a de Francisco de Oliveira não. Ele está atado à tradição pela razão dualista. Aliás, em “Crítica”, o desenvolvimento industrial na Era Vargas e mesmo do período Juscelino faz-se à contracorrente e na adversidade, e não como mera expressão ampliada dos desígnios do centro capitalista mundial.

Sua tese central é de que nossa originalidade estaria no fato de que “a expansão do capitalismo no Brasil se dá introduzindo relações novas no arcaico e reproduzindo relações arcaicas no novo”, configurando uma relação não apenas desigual mas combinada. A noção de um desenvolvimento desigual e combinado inspira-se nos clássicos marxistas russos, Lenin e em particular Trotsky. Paradoxalmente, no entanto, a tese é usada em sentido oposto ao original: lá, para inferir as vantagens revolucionárias do atraso, a fraqueza política da burguesia e o potencial socialista da revolução em seu transcrescimento; aqui, para pensar o potencial de expansão do capitalismo.

Mais que isso, inverte-se a tese de Furtado. As duras leis da acumulação impõem-se aos prognósticos ético-finalísticos da economia política de Furtado, que tem como meta uma sociedade capitalista com autonomia, mais igualitária e democrática. Estamos imersos no Brasil do “milagre econômico”, cujo dinamismo possível, alavancado pelo Estado e pela segmentação do mercado, o paradigma de Furtado não podia prever.

Chegamos, então, ao segundo ponto, a temporalidade média de “Crítica” frente à temporalidade longa da obra de Furtado. O campo analítico-normativo deste último assenta-se no processo de formação do Brasil, historicizando bastante seus impasses. Os ciclos econômicos formadores, a constituição dos complexos regionais, o caráter dinâmico das relações entre “atrasado” e “moderno” são assim compostos historicamente. Na obra, a história torna-se estrutura analítica em uma temporalidade mais curta, de 1930 a 1972. Ora, as décadas de 1980 e 1990 repuseram brutalmente as problemáticas de Furtado: tendência à estagnação, a catástrofe renovada do Nordeste, a cristalização da segmentação social entre “moderno” e “atrasado” exposta na temática exclusão/inclusão, a perda da soberania nacional. Assim, parece que a história de longa duração teria reeditado as problemáticas fundamentais de Furtado, bem como a atualidade de muitas de suas teses centrais.

Uma leitura mais atenta de “Crítica”, no entanto, mostra que sua tese é que as contradições fundamentais do Brasil não foram superadas em 1964. Esta, para o autor, não é uma nova revolução burguesa como a de 1930. Mas uma contra-revolução, cujos horizontes históricos estavam já no início dos anos 1970 saturados de contradições e limites. Neste sentido mais largo e profundo, de pensar os impasses do capitalismo brasileiro frente a um novo surto de modernização conservadora, a obra é solidária às reflexões de Furtado.

Chegamos, enfim, ao terceiro momento da reflexão sobre as razões de sua permanência: sua relação com a dualidade básica da sociedade brasileira.

Em um interessante ensaio de 1970, “Raízes da imaginação política brasileira”, Wanderley Guilherme dos Santos, também empenhado, na disciplina da ciência política, em escavar o paradigma cepalino, formula a noção de que os estilos dicotomizados de percepção do Brasil têm origem na virada do século XIX para o XX, adquirindo uma dominância após os anos 1930. Euclides da Cunha em “Da Independência à República”, de 1900, teria desenhado os dois Brasis: “um urbanizado, litorâneo, desenvolvido, com benefícios da atuação governamental, e outro rural, estagnado etc.” Por essa pesquisa de Wanderley Guilherme dos Santos, a razão dualista tem raízes profundas no imaginário do país, precedendo de largo período a reflexão de Furtado.

De nosso ponto de vista, o dualismo e suas razões vêm de mais longe ainda: a oposição entre “atrasado” e “moderno” é genética no Brasil e assenta suas últimas razões no complexo de oposições entre liberalismo e mundo ibérico, que constituiu o Estado nacional.

Isso tem tudo a ver com os dilemas de nosso republicanismo. Como nos ensina Raymundo Faoro, aqui o liberalismo sempre se apropriou instrumentalmente do que havia de perverso no mundo ibérico, desnaturando a sua face de direitos em prol dos interesses do mercado e das realidades da dominação. Outra não é a instrumentalização do arcaico para fins de acumulação – a inchação do terciário, um certo padrão de expropriação do excedente no campo que requisitava pouco investimento de capital – que a inteligência de “Crítica” nos evidencia. Em sua fenomenologia política, atenta ao caminho das instituições da democracia, essa mesma perversão é colhida no híbrido institucional brasileiro diagnosticado por Wanderley Guilherme dos Santos, na semipoliarquia em que vivemos.

De um ponto de vista mais rigoroso, não há em Furtado uma razão dualista no sentido de uma lógica explicativa para o “moderno” e outra para o “atrasado”. Ambos têm a mesma origem histórica e são mutuamente configurados: o conceito de subdesenvolvimento dá conta exatamente disso. Há assim, em Furtado, uma crítica republicana do dualismo básico da sociedade brasileira e, deste ponto de vista, ele não é um ibérico nem um americanista.

“Crítica” repõe a lógica da relação entre o “moderno” e o “atrasado” a partir do fio da acumulação capitalista. Haveria mais simbiose do que oposição entre suas dinâmicas. Mas o Brasil da obra é também fraturado entre o “atrasado” e o “moderno”.

O que separa, então, o ensaio de Francisco de Oliveira e a obra de Furtado são racionalidades diferentes da crítica ao dualismo. Com “Crítica”, a tradição socialista brasileira reorganiza, acentuando, suas razões de classe perante a problemática republicana, para estabelecer seu lugar na cultura da época, seu espírito de cisão.

Mas o que é, então, a razão dualista na tradição brasileira senão este liberalismo instrumental, oligarquizante em seus valores constitutivos e que renova sem cessar as heranças do patrimonialismo, a apropriação do público pelo privado, a assimetria entre direitos e deveres? Quem conspira publicamente a favor da divisão, do apartheid social, senão os cultores do mercado? Se é assim, a verdadeira crítica da razão dualista é a razão republicana, diante da qual o cívico não está desnaturado pelo predomínio dos novos privatismos nem pela herança dos velhos patrimonialismos.

Resumindo e concluindo: “Crítica” procurou responder à problemática republicana nos termos da tradição so­cialista, vertebrada pelo marxismo. Mas, no ponto de desenvolvimento em que este e esta se encontravam, a republicanização de seus conceitos e uto­pias estava ainda por se fazer, isto é, o acerto de contas necessário e tardio com o ideal normativo da democracia.

Assim, mesmo em seu limite de época, a obra revela sua transcendência ao reposicionar, em tom alto, o marxismo brasileiro diante do impasse republicano. Se estamos certos, é na obra de Francisco de Oliveira e em sua trajetória política e intelectual que se encontra o caminho, ainda a ser plenamente percorrido, do encontro entre a tradição socialista brasileira e os valores republicanos. Pois não haverá universalização da cidadania entre nós sem a afirmação dos direitos do antivalor, como hoje nos formula Francisco de Oliveira. Não haverá nação sem os direitos do trabalho, sem questionar a absurda extensão dos direitos do capital. Não haverá república sem questionar as dimensões fundamentalistas e fraudulentas que adquiriu o direito de propriedade no campo. Não haverá o cívico se a democracia não for capaz de fecundar uma nova época de direitos e de participação democrática na história brasileira.

Juarez Guimarães é professor de ciência política na Universidade Federal de Minas Gerais