Economia

Embora apresentando alguns resultados positivos, a política econômica não tem baixado os juros a níveis que estimulem os investimentos e a produção, reduzam o desemprego e elevem, ou mantenham estável, a renda dos trabalhadores

O desenvolvimento tornou-se, no mundo globalizado, questão central de sobrevivência das nações. Estas se viram, nos últimos anos, de uma forma ou outra, assoladas por turbulências econômicas mundiais. Muitas, às voltas com inflações perversas, procuraram desenvolver-se com políticas de altos juros, abertura e desregulamentação dos mercados domésticos aos capitais e produtos estrangeiros, atrelamento da moeda local ao dólar e saída do Estado das atividades econômicas, segundo recomendações do FMI.

Esperavam que o fluxo de capitais externos lhes revigorasse a economia, fazendo-as ingressar em novos ciclos de crescimento, criando empregos e conciliando o crescimento econômico com o desenvolvimento social e ambiental. Porém, os capitais buscam, antes de tudo, alta lucratividade, isto nem sempre tendo a ver com esperanças, mas apenas com indicadores econômicos e políticos que garantam a realização de lucros.

Os juros altos, no entanto, funcionaram somente como atratores de capitais de curto prazo. Criaram um ciclo perverso de redução das reservas internacionais, elevação ainda maior das taxas de juros e produção de superávits primários, com base em crescentes cargas tributárias, para garantir taxas compensadoras de juros e demonstrar que os capitais seriam pagos em qualquer situação. A abertura e a desregulamentação do mercado serviram principalmente para que os capitais estrangeiros comprassem ativos já existentes, em vez de instalarem novas unidades produtivas. E o atrelamento ao dólar (por meio de câmbio, seja fixo, seja flutuante) subordinou as moedas nacionais aos descontroles daquela.

Na maioria dos países ocorreu arrocho em grande parte das atividades produtivas, bem como desnacionalização e desmonte dos parques produtivo e tecnológico existentes. Nações que haviam ingressado no desenvolvimento industrial regrediram quase à condição de exportadoras exclusivas de produtos primários. Suas economias entraram no penoso stop and go, repetindo largos momentos de recessão com pequenos soluços de expansão. Os mercados domésticos contraíram-se, e aumentaram as condições de pobreza da população. Para não ir muito longe, basta olhar para a Argentina e o próprio Brasil.

As crises financeiras de 1994, 1997 e 1999 foram demonstrações claras desse desastre. Mas também evidenciaram países como a China e a Índia, que, mesmo mantendo boas relações com o FMI, escaparam do stop and go das crises recessivas. Suas políticas macroeconômicas têm se caracterizado por altas reservas internacionais, controle estrito sobre o fluxo de capitais, em especial dos de curto prazo, controle severo sobre as fontes inflacionárias, utilização do câmbio e das estatais como instrumentos de política industrial e de aumento da competitividade e fortalecimento do mercado doméstico como suporte do processo de desenvolvimento e da ampliação das exportações. Ou seja, políticas que combinaram estabilidade e crescimento, e não estabilidade e recessão.

Alguns problemas brasileiros

Diante desse histórico, não é por acaso que existe angústia, no PT, sobre o quadro brasileiro. Por um lado, há a dicotomia de ser governo e, ao mesmo tempo, constatar contradições entre as políticas do governo Lula e os objetivos históricos das reformas estruturais, reclamadas nos vinte anos de existência do partido. Por outro, tem se intensificado a percepção de que o PT pode ver frustrado seu crescimento nas eleições de 2004, se os resultados econômicos continuarem contraditórios.

Isso se reflete nos reclamos de crescimento da produção, dos empregos e da renda. Embora as políticas econômicas tenham feito a inflação e o câmbio alcançarem uma estabilização relativa e obtido resultados positivos na balança comercial e nas contas correntes, elas criaram efeitos ambíguos. Associada a juros exorbitantes, a estabilização tem funcionado para atrair capitais de curto prazo e deixar os banqueiros deliciados. Mas não tem baixado os juros a níveis que estimulem os investimentos e a produção, reduzam o desemprego e elevem ou, ao menos, mantenham estável a renda dos trabalhadores.

As diretrizes macroeconômicas partiram dos pressupostos dos governos anteriores. Isto é, de que os desequilíbrios orçamentários eram os responsáveis pelos problemas e crises econômicas do país. Os choques externos poderiam ser evitados, pois, com maior rigidez no ajuste fiscal e maior credibilidade nas relações com o FMI. Tais diretrizes foram aceitas por muitos, mesmo com reservas, por comportarem um forte viés de tática política frente ao sistema financeiro, de modo a evitar retaliações ou embaraços desnecessários ao novo governo. A continuação seria apenas necessária à transição suave a um novo modelo.

O custo, porém, foi muito elevado. A superação do surto inflacionário e a valorização do real frente ao dólar foram alcançadas por meio de uma brutal combinação de corte de gastos públicos, arrocho do crédito, juros elevados e contenção salarial, que conduziu vários setores à recessão e agravou o quadro social deteriorado. Além disso, o problema agora reside em que a equipe econômica parece convencida de que deve manter a mesma política no futuro e de que esta será capaz de resolver o problema do crescimento.

Ela continua pressupondo que uma redução dos juros, acompanhada de financiamentos e investimentos públicos e privados e da elevação de salários e rendas, pressionaria o consumo interno e a inflação, constituindo um perigo. Por isso, suas esperanças se voltam para um crescimento embalado na atração de capitais externos, confiantes na estabilidade obtida. O acordo com o FMI forneceria o aval a esses investimentos, e também a blindagem para resistir a futuros choques externos. Como decorrência, ela anunciou a solidez dos fundamentos econômicos e proclamou que, agora, o crescimento dependerá apenas do empresariado. A retomada das atividades industriais seria a comprovação dessas verdades.

No entanto, apesar desses argumentos otimistas, é difícil acreditar que os fundamentos econômicos apontem para uma curva ascendente firme da economia. Os investimentos diretos continuam reduzidos. Excetuando os setores voltados para o mercado externo, os demais não parecem convencidos da capacidade brasileira de crescer. Se a estabilidade monetária é uma condição necessária, ela está longe de ser suficiente para o crescimento, mantidos as altas taxas de juros, a elevada carga tributária, os minguados investimentos públicos e as incertezas quanto às taxas de câmbio. O empresariado só se empenhará se tiver certeza de que o retorno de seus investimentos será superior aos custos financeiros.

Além disso, o Brasil permanece extremamente vulnerável às condições externas. A dívida externa ainda é muito grande, nossas exportações são pequenas em relação aos compromissos, e a valorização do real aumenta o risco dos investimentos. O Brasil pagará cerca de 40 bilhões de dólares em 2004. Apesar do acordo com o FMI, as reservas estão aquém de uma blindagem segura. E o país corre o risco de um desastre se os Estados Unidos, presos a déficits e a endividamentos privados colossais, elevarem sua taxa de juros para atrair capitais e crescer, mesmo que tal crescimento não passe de bolha momentânea.

É preciso considerar, ainda, que o euro golpeou a unipolaridade monetária do dólar. O fluxo de capitais para a moeda européia está crescendo e pode tornar-se gigantesco, se a diversificação de ativos dos produtores de petróleo e dos países emergentes da Ásia se acentuar. Isso, eventualmente, causará distúrbios financeiros mundiais significativos, com reflexos imponderáveis nas economias nacionais desprovidas de grandes reservas.

É também preocupante que a produção e a exportação agrícolas brasileiras tenham aumentado, melhorando o superávit comercial e as contas externas, mas não tenham desempenhado nenhum papel na elevação do emprego. E que, apesar dos esforços do governo, não tenha havido redução do desemprego nem recuperação da renda da massa da população trabalhadora.

Em outras palavras, olhando o quadro como um todo, não parece haver compatibilidade entre o otimismo da equipe econômica e a realidade econômica mundial. Também não existe compatibilidade entre a situação macroeconômica brasileira e o crescimento da produção. E, nos setores que escaparam da recessão, não parece haver compatibilidade entre o crescimento da produção e o crescimento do emprego e da renda.

Mesmo na ausência de um choque externo, o Brasil ainda terá de obter o equivalente a 25% ou 30% do PIB, para crescer. Sem investir esse montante, pelo menos nos gargalos da infra-estrutura, na expansão do parque produtivo e em ciências, tecnologias e educação, não será possível um novo ciclo de crescimento e, menos ainda, um processo articulado de desenvolvimento. Este é incompatível com uma política macroeconômica de juros altos, carga tributária elevada, câmbio flutuante, redução lenta do endividamento interno atrelado ao câmbio e reservas cambiais reduzidas.

Diante disso, é duvidoso aceitar a transformação da tática de continuidade em estratégia. Não temos aí apenas um problema de ordem econômica. Temos problemas econômicos, sociais e políticos intimamente associados. Não por acaso, isso se traduz no fato de que boa parte da base social do PT e do governo (as camadas trabalhadoras e populares) e dos aliados (os setores empresariais ligados às atividades produtivas) sente que está sendo penalizada de diferentes formas, enquanto os adversários (o sistema financeiro e as grandes corporações) estão sendo agraciados. Os lucros dos bancos corroboram.

Temos, pois, um nó na questão do desenvolvimento, certamente a questão fundamental da atualidade. Sem desatá-lo, sem demonstrar capacidade em elevar a produção e, ao mesmo tempo, criar novas oportunidades de trabalho e redistribuir renda, o governo Lula e o PT correm o risco de acabar como o governo FHC e o PSDB, com as eleições municipais sinalizando seu declínio.

Algumas sugestões

Talvez devêssemos tentar desatar tal nó começando pelas contradições entre as políticas macroeconômicas e microeconômicas. Por exemplo, pelos investimentos públicos. Eles são ou não necessários ao crescimento? Em que montante? Como o Estado brasileiro atenderá a tal necessidade, diante da obrigação de continuar gerando superávits primários para garantir o pagamento das dívidas? Ficará subordinado aos condicionantes, como fez o Plano Plurianual (PPA), ou buscará alternativas?

Se o Estado ficar amarrado pelos superávits primários, certamente o espetáculo do crescimento não passará de desejo. Então, talvez a decisão-chave consista em definir se os condicionantes da política macroeconômica continuarão ou se, ao contrário, se adequarão ao desenvolvimento. Isso é particularmente evidente no problema do câmbio e das estatais. Por que ambos não podem ser tratados como instrumentos de política industrial e de competitividade? Por que a Índia e a China podem fazê-lo, sem que isso cause inflação ou iniba o fluxo de investimentos externos e seu crescimento anual a taxas superiores a 6%, e o Brasil não?

Argumenta-se que a mudança nessas políticas resultará no fim da estabilidade monetária e no isolamento do Brasil em relação aos fluxos de capitais. Isso não é necessariamente verdadeiro. É possível separar a estabilidade monetária dos problemas do endividamento. Pode-se manter a estabilidade e, ao mesmo tempo, tratar a dívida de uma forma que permita ao Brasil investir. Nesse sentido, é preciso agir politicamente, o que não inclui, do ponto de vista da postura do Estado brasileiro, o rompimento com o FMI ou a ruptura das negociações com a Alca. Mas incluirá, necessariamente, o controle dos capitais de curto prazo e a discussão dos marcos regulatórios dos investimentos diretos.

Por um lado, será preciso incentivar esses investimentos e garantir sua rentabilidade. Por outro, deve-se exigir a instalação de novas unidades produtivas e a transferência de novas tecnologias ou de linhas de produção intensivas em trabalho. Embora a correlação de forças ainda seja relativamente desfavorável, o Estado brasileiro tem força política para barganhar essas mudanças. Com isso, pode superar as amarras dos superávits primários, ser mais agressivo na redução dos juros e da carga tributária e criar as condições para aumentar os investimentos públicos e privados.

No entanto, embora tais condições possam nos tirar da crise de estagnação e ampliar o comércio internacional do país, elas não serão suficientes para construir um mercado doméstico forte. No Brasil existem setores com elevada produtividade e alto grau de competitividade interna e externa, a exemplo dos minérios, do petróleo, da soja e de alguns outros que vêm abrindo novos mercados externos, mas eles não têm se esforçado para aumentar a proporção, em seus produtos finais, de bens de maior valor agregado nem de bens intermediários fabricados aqui.

O exemplo da soja, que se transformou numa das principais exportações brasileiras, é emblemático. Como está estruturada a cadeia produtiva da soja? Qual o peso dos subprodutos industrializados de alto valor, como proteínas, biodiesel e outros, no valor total da cadeia? Até que ponto a monocultora de produção e exportação de grãos, farelo e óleo bruto é benéfica ao desenvolvimento do país? Não se pode desdenhar o papel positivo que, como a soja hoje, o açúcar, a borracha e o café desempenharam antes. Nem esquecer a tragédia que provocaram, seja por haverem afogado outras culturas, seja porque as elites foram imediatistas, contentaram-se com a riqueza fácil, não se mantiveram atentas à oferta e à demanda reais e, principalmente, não cuidaram da industrialização.

Este é um problema que diz respeito a todas as empresas competitivas, grandes e médias. Sem adensar suas cadeias produtivas dentro do nosso país, elas não reforçarão o mercado interno, que manterá alta dependência externa e não lhes poderá dar suporte para consolidar sua inserção nos mercados internacionais. Assim, embora o Brasil possua uma estrutura produtiva, composta de setores corporativos e médios, capaz de crescer tendo por base os mercados internacionais e os segmentos de média e alta renda do mercado doméstico, desde que sejam afastados os entraves macroeconômicos a seu crescimento, essa estrutura apresenta lacunas sérias em suas cadeias produtivas, que precisam de solução.

Mas isso não é tudo. O crescimento desses setores competitivos só pode ser realizado reduzindo o emprego de mão-de-obra. Eles alcançaram aquele patamar em que seu crescimento está necessariamente associado à eliminação de postos de trabalho. Hoje respondem por cerca de 80% do valor da produção nacional, mas absorvem apenas 20% da mão-de-obra empregada, e tendem a reduzir essa participação. Os outros 80% da força de trabalho encontram-se nas micro e pequenas empresas, que não têm condições de realizar uma expansão continuada de sua produção e de sua força de trabalho.

Esse é um paradoxo da atual competição empresarial, relacionado com a intensificação da produtividade por meio do maior emprego das ciências e novas tecnologias e menor emprego da força de trabalho. Em tais condições, o governo Lula pode até superar os gargalos macroeconômicos e induzir o crescimento, sem que isso tenha um efeito real na redução do desemprego, na distribuição da renda e na erradicação da fome e da pobreza, apesar dos programas sociais. E pode tornar ainda mais patético o descompasso dos esforços para elevar a educação e melhorar a saúde, em confronto com a estreiteza do mercado de trabalho e o encolhimento da renda dos trabalhadores e dos que sobrevivem no mercado informal.

Além disso, não haverá horizonte para a construção de um mercado doméstico de massa, mantendo tal crescimento dependente dos mercados internacionais e, portanto, sem sustentabilidade. Nesse contexto, a articulação entre crescimento econômico, aumento do emprego, melhoria da distribuição de renda e redução da pobreza e da fome não é uma questão exclusivamente social, ou de justiça social. É uma questão fincada na economia, já que a construção de um mercado doméstico forte, que sirva de base para o desenvolvimento sustentado do país, depende da combinação entre o crescimento dos setores competitivos e o crescimento maciço e estimulado dos milhões de microempreendimentos da chamada economia popular, tanto formal quanto informal.

Algumas políticas do governo Lula apontam nesse rumo. Este é o aspecto realmente novo na expectativa de transição para um novo modelo. Entretanto, em geral, falta-lhes escala e massa. Elas não levam a microeconomia a ganhar uma massa crítica que lhe dê visibilidade e peso na economia brasileira. Também falta a muitos operadores oficiais o conhecimento das experiências de resistência e sobrevivência dos micro e pequenos produtores rurais e urbanos, das cadeias produtivas reais que eles fazem funcionar e dos mercados que atendem. Desse modo, ou procuram reinventar a roda, ou não conseguem enxergar seu potencial de crescimento.

De uma forma ou outra, tais setores são os únicos capazes de transformar grandes contingentes de trabalhadores desempregados e marginalizados em trabalhadores efetivos, permitindo uma distribuição mais eqüitativa da renda, a erradicação da fome e da miséria e a construção de um mercado doméstico de massas. Do ponto de vista econômico, isso é estratégico para o Brasil superar sua crise. Do ponto de vista social e político, pode representar a recomposição da força social das camadas populares, em particular das classes trabalhadoras, reforçando a base social e política de sustentação do governo Lula, desatando o nó do desenvolvimento e criando as condições para colocar a perspectiva do socialismo sobre bases reais.

Wladimir Pomar é membro do Conselho de Redação de Teoria e Debate