Internacional

A realização do IV Fórum Social Mundial (FSM) em Mumbai, na Índia, de 16 a 21 de janeiro de 2004, comprovou a vitalidade da “forma-FSM”, do método do “espaço aberto” que veio sendo gradativamente construído nas três edições de Porto Alegre, nos dois Fóruns Sociais Europeus (Florença e Paris) e no Fórum Social Asiático (em Hyderabad, na Índia, em janeiro de 2003), além de inúmeros outros fóruns. Mas, ao mesmo tempo, o Fórum de Mumbai renovou e ampliou muito o alcance da proposta.

Foi um evento global marcante: 74.126 delegados registrados, dos quais 60.224 indianos e 13.902 estrangeiros, de 117 países, representando 1.635 organizações (838 indianas e 797 estrangeiras). Além disso, foram emitidos 40 mil crachás diários, para pessoas que participavam das atividades por um só dia ou não podiam pagar a inscrição. E deve-se levar em conta a presença de mais 4 mil participantes no Acampamento da Juventude, dos voluntários que trabalharam no evento e dos moradores da cidade nas atividades abertas. Estima-se que tenham participado do encontro entre 135 mil e 150 mil pessoas.

O FSM 2004 teve grande impacto na esquerda da Índia, país enorme e populoso, mas marcado pelo regionalismo, pelo comunalismo e pelas diferenças lingüísticas, religiosas e culturais. Rea­lizou-se em um contexto muito mais plural e exigente do que os anteriores, impulsionado por uma esquerda mais heterogênea, sendo o resultado da atuação unitária de organizações originárias de tradições políticas muito distantes – do gandhismo aos Partidos Comunistas de corte mais tradicionais, de diversas organizações maoístas às ONGs. Essa unidade teve de ser cuidadosamente construída por meio de um largo processo de preparação e mobilização nas diferentes regiões do país. Isso explica por que este fórum foi marcado – dentro do respeito a sua Carta de Princípios – por uma postura menos reticente perante os partidos políticos, eliminando a imagem por vezes levantada de que estes são estranhos ao FSM e à luta mais ampla que lhe dá sentido.

O Fórum de Mumbai soldou definitivamente a agenda de luta contra o neoliberalismo com a da luta contra a militarização e o império: para os delegados presentes, a luta contra a pobreza e a exclusão decorrentes da globalização capitalista é inseparável da luta contra a guerra e o imperialismo. Mas este fórum também integrou à agenda do movimento global questões antes ignoradas ou laterais, como a luta contra a discriminação de castas, que secularmente marginaliza, de forma assombrosa, 200 milhões de indianos e impõe uma reela­boração dos problemas do racismo; e a luta contra os efeitos combinados do comunalismo, patriarcalismo e fundamentalismo religioso – acirrados pelo atual curso militarista das potências imperiais e pelo governo fundamentalista hindu no poder em Nova Délhi.

Realizado, portanto, em um contexto distante da cultura política ocidental, o IV FSM foi um evento extremamente popular, militante e feminista – reforçado pela presença maciça de movimentos populares de base, não só da Índia como de grande parte da Ásia. Tornou-se um espaço para manifestações e convocações à ação política. Mumbai enriqueceu qualitativamente o processo FSM, introduzindo inúmeros elementos que devem, doravante, ser considerados nas iniciativas futuras.

O efeito Mumbai

O Comitê Organizador Indiano, composto de 48 entidades, demorou para decidir a cidade que sediaria o IV FSM, mas sua escolha revelou-se mais que justificada. Mumbai tem uma fraca presença da esquerda e é governada pela extrema direita, mas que impacto teve o convívio com a cidade para os participantes do fórum! Mesmo para quem conhecia a Índia, ficar uma semana nas cercanias do parque de exposições de Nesco Grounds, em Goregaon, na periferia norte da Grande Mumbai – a trinta quilômetros do centro financeiro e turístico da cidade, em Colaba, no sul da península –, foi uma lição vívida dos resultados da globalização sofridos por bilhões de pessoas.

Mumbai é a maior cidade da Índia, com 16,4 milhões de habitantes segundo o último censo, espremidos em uma superfície de menos de 10% da Grande São Paulo (a cidade de Mumbai corresponde apenas a 440 quilômetros quadrados!). A metade da população vive em favelas (em Dharavi 600 mil pessoas se comprimem em 1,5 quilômetro quadrado) e 1 milhão nas ruas. A população do campo, que compreende 75% do 1,027 bilhão de indianos registrados em 2001, aflui maciçamente para a cidade. O ambiente foi totalmente degradado e, a poucas centenas de metros do mar, o ar já está carregado de pó e poluição. A não ser que se utilizem os trens superlotados, o tráfego caótico faz com que um deslocamento do centro à periferia leve em média duas horas.

Mas, ao mesmo tempo, Mumbai é a única metrópole global da Índia. Como escreveu Mila Kahlon, “trata-se, sem dúvida, da cidade mais próspera da Índia, sua capital financeira e empresarial. Mais da metade do imposto de renda nacional provém daí. É também a cidade mais corrompida do país: mais da metade do dinheiro sujo em circulação encontra aí sua fonte. Mumbai conta com mais milionários do que todas as grandes cidades indianas reunidas. Aí são feitas 90% das transações bancárias da Índia, são investidos 80% dos fundos de pensão do país e estão os mercados de capitais... Seu porto movimenta 40% do comércio marítimo indiano... [Aí] um apartamento chique pode custar US$ 2 milhões. A cidade aderiu à especulação, à loteria, às corridas de cavalos e ao críquete... Ela atrai o melhor dos talentos do país, gigantes multinacionais, investidores, artistas e intelectuais. Os fogos de Bollywood são, assim, irresistíveis: Mumbai possui a maior indústria cinematográfica do mundo” (“Une obsession nommée Bombay”, Le Monde Diplomatique, janeiro de 2004).

Mumbai é, assim, um microcosmo da Índia, seguramente a sociedade mais diversa do mundo, fragmentada entre populações de todas as cores, que falam dezoito línguas oficiais, em geral escritas em alfabeto próprio, e 1.600 línguas e dialetos. O fórum teve de adotar o inglês como língua para os grandes eventos (e tradução para cinco outras línguas indianas), em boa medida porque a população de fala indo-européia (híndi, falado por apenas 20% dos indianos, marati, dominante na região de Mumbai, e urdu) não é compreendida pela de fala dravidiana (tâmil, télugo), e vice-versa.

A Índia é majoritariamente hinduísta (82%), mas compreende uma vasta minoria islâmica (12%) e 19 milhões de cristãos, 18 milhões de siques, 7 milhões de budistas, 4 milhões de jainistas e outras crenças. Conflitos comunalistas (particularmente resultantes da perseguição contra os muçulmanos) têm crescido, estimulados pelo nacionalismo hinduísta, que desde 1998 controla o governo central e mantém uma política militarista (e nuclear) frente a Paquistão e China.

Os sucessivos partidos no poder na Índia vêm, na última década, aplicando uma política neoliberal que aumentou a taxa de crescimento da economia, mas também sua financeirização e fragilidade externa. Essa política ampliou ao extremo as desigualdades sociais e a exclusão.

Os organizadores do IV FSM propiciaram aos participantes do evento um contato exemplar com o desenvolvimento desigual e combinado levado ao paroxismo, com fantásticas torres pós-modernas erguidas em gigantescas favelas, com elites cosmopolistas desenraizadas que convivem com uma Índia rural miserável estagnada no século 18, com bilionários e classes médias afluentes que convivem sem culpa com multidões incalculáveis de dalits, que lutam todos os dias para sobreviver. Tal vivência impôs, mesmo para brasileiros, uma redefinição existencial do sentido da miséria e da exclusão promovidos pela globalização neoliberal.

Expansão política e enraizamento social

Os conflitos mais visíveis na sociedade indiana decorrem do complexo sistema de castas associado ao hinduísmo – se um indivíduo cumpre os deveres de sua casta, isso aumenta sua chance de renascer em uma casta superior e em melhores circunstâncias. A situação é particularmente insustentável para mais de 200 milhões de dalits (antes “intocáveis”), integrantes das castas inferiores discriminados em todos os âmbitos da sociedade e fragmentados em dezenas de movimentos distintos (que expressam muitos dos impasses da esquerda indiana). O patriarcalismo marca pesadamente a situação da mulher e a imensa maioria dos casamentos (alguns falam em 95%) são arranjados pela família. E a isso se soma a situação dos adivasis, comunidades tribais que compreendem entre 55 milhões e 60 milhões de pessoas que, depois de um contato milenar com as populações hinduístas e muçulmanas, vêm sendo expropriadas de suas terras ancestrais e pauperizadas.

Foram esses setores sociais que trouxeram seus problemas e suas lutas para o IV FSM – com destaque para os dalits, que eram talvez metade dos indianos presentes. Os problemas mais candentes na vida dessas pessoas, que os delegados de suas organizações compreendiam estar ligados à globalização neoliberal, motivaram boa parte das discussões realizadas nos espaços do Nesco Grounds.

A renovação do processo FSM em Mumbai foi amplificada ainda pela forte presença das delegações asiáticas, do Paquistão ao Japão, de Bangladesh às Filipinas, da Palestina ao Afeganistão. Monges tibetanos exilados marchavam lado a lado com integrantes dos movimentos populares da Tailândia; ativistas contra a guerra de países da Ásia Central ou do mundo muçulmano conviviam com militantes sindicais coreanos.

O caráter popular do IV FSM resultou em grande medida de seu amplo processo de preparação, que envolveu um comitê indiano, representativo de quase todos os movimentos progressistas do país, um comitê asiático de apoio e o comitê organizador. Esse enorme esforço de diálogo e entendimento político se expressou no pluralismo e no grande envolvimento dos movimentos de base no evento de Mumbai. Parte disso se deveu também aos esforços e recursos dedicados à dimensão cultural do evento, concebido não como “entretenimento” ou “espetáculo”, mas essencialmente como manifestação política.

A opção de concentrar as atividades em um único local – um complexo siderúrgico abandonado, criativamente transformado pelos organizadores em uma área de eventos fechada, com uma ambientação adequada – favoreceu o clima de efervescência e vitalidade do IV FSM. Se não tínhamos, como em Porto Alegre, o ar condicionado da PUC, isso não prejudicou em nada o resultado das atividades. A nota crítica fica por conta do Acampamento da Juventude, que, sediado a dez quilômetros, dificultou uma maior integração com o conjunto.

Para boa parte dos delegados presentes em Mumbai, a agenda política internacional tem um centro claro: o combate ao governo Bush, ao imperialismo norte-americano e sua ofensiva militar. Este foi o foco da discussão sobre o Iraque, o Afeganistão, a Coréia e a Palestina, o leque de temas mais visíveis. Evidentemente a luta contra os acordos de livre comércio que se multiplicam na região também encontrou seu espaço, assim como contra a expulsão dos trabalhadores imigrantes da Coréia ou do Japão, pelo controle de armas, por “Fazer do Tibet uma zona de paz!”, pela soberania alimentar e preservação da biodiversidade e dos recursos naturais etc. Mas nada disso diluiu o peso da luta contra a ameaça que representa o governo Bush para o mundo, o que explica a força do apelo da assembléia dos movimentos contra a guerra, realizada no interior do fórum, por uma jornada mundial de luta pelo fim da ocupação do Iraque, em 20 de março.

A expansão do FSM para a zona mais conflituosa e povoada do mundo, onde as contradições da globalização neoliberal e militarizada são mais agudas, apresenta grandes desafios políticos para o futuro do processo. Nessa região não há redes de ONGs e centrais sindicais capazes de pagar viagens internacionais a seus membros, mas não faltam movimentos sociais de caráter marcadamente popular – que, todavia, não seguem os padrões da cultura política ocidental. Se o sucesso de Mumbai mostra o alcance universal da proposta do FSM, impõe uma reconfiguração da forma como vem sendo trabalhada, no processo do fórum, a relação entre o global e o local, a articulação das lutas entre o crescente movimento internacionalista e os movimentos populares nacionais para a maioria da humanidade. Desafio ao qual Porto Alegre 2005 não poderá deixar de responder.

José Corrêa Leite é integrante do Conselho Internacional do FMS e do Conselho de Redação de Teoria e Debate