Cultura

Embora não tenha elaborado uma teoria política nova nem construído um projeto consistente para seu pretendido socialismo com liberdade, Bobbio formulou perguntas que todos os socialistas sobreviventes à queda do Muro de Berlim devem cuidar de responder de modo convincente.

Em janeiro deste ano morreu Norberto Bobbio. Tinha 94 anos e deixou vastíssima produção intelectual, criada e recriada, sem pausas, ao longo de quase setenta anos de atividade, seja como professor universitário, seja como ensaísta ou articulista de imprensa. Ou ainda como militante de uma causa pouco assumida pelas esquerdas no século 20: a busca de um socialismo concebido como exercício da liberdade, imaginável mediante alguma síntese – ou compromisso – entre determinados cânones da tradição teórica liberal e os vigorosos fundamentos conceituais presentes no marxismo.

Bobbio tornou-se bastante conhecido no ambiente acadêmico brasileiro por força de seus trabalhos sobre a democracia, direitos humanos e Filosofia do Direito. Este último foi o primeiro campo de elaboração bobbiana a ser introduzido no Brasil, a partir de 1966. Mais tarde tivemos a publicação de Qual Socialismo?, de 1976, reunindo escritos de sua segunda grande polêmica com os marxistas do Partido Comunista da Itália, em torno do tenso vínculo existente entre socialismo e democracia. Seguiram-se muitos outros, como A Era dos Direitos e O Futuro da Democracia, livro em que deu acabamento a suas reflexões seminais, fundadoras, a respeito da democracia como conjunto de regras do jogo institucional, que não é menos importante, nem dispensável à afirmação de seu conteúdo substantivo.

Nos anos 1990 foram lançados dois fascinantes livros de memórias e de reflexão sobre a velhice – De Senectute e Diário de um Século –, além de Direita e Esquerda – Razões e Significados de uma Distinção Política, que a direita italiana considerou uma tábua de salvação que Bobbio atirava aos marxistas, mergulhados então na perplexidade causada pelo colapso comunista.

É hora de tornar Norberto Bobbio mais conhecido no ambiente não-acadêmico brasileiro. Sobretudo na ampla e diversificada esquerda partidária, sindical e “social” que se estende do PT ao PCdoB e PSTU, da CUT ao MST, passando por amplo leque de siglas e concepções em dinâmico entrechoque.

Até agora tem sido mais freqüente lermos referências a Bobbio em artigos de Celso Lafer ou Bresser Pereira, quando não Miguel Reale (pai), Marco Maciel ou Cláudio Lembo. Numa das reuniões do Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social, em 2003, a citação desse autor veio dos lábios de Viviane Senna. Na área do PT, é certo que Tarso Genro, Marco Aurélio Garcia, o próprio presidente Genoino e outros expoentes partidários costumam incorporar opiniões de Bobbio a seus discursos e textos. Carlos Nelson Coutinho e Leandro Konder, intelectuais marxistas filiados ao partido até 2003, atuaram como importantes divulgadores ou tradutores, ao lado de Marco Aurélio Nogueira, entre outros.

O que significa essa universalidade de adeptos? Que Bobbio é um autor elástico o suficiente para agradar a gregos e troianos? Cada leitor pode buscar sua resposta estabelecendo contato direto com o próprio pensador. Uma pista útil é levar em conta que a coerência não é uma virtude que se pratica pela via cômoda de passar a vida inteira repetindo exatamente as mesmas frases e os mesmos raciocínios.

Há na obra de Bobbio certo culto ao paradoxo. Não o assusta afrontar o senso comum erigido em torno de qualquer construção teórica.

Racionalista ao extremo e praticante da dúvida metódica a ponto de ser chamado Delle Carte por um amigo, usa e abusa do expediente de desmontar cada enunciado em pauta, submetendo seus fatores primos ao crivo de análises puxadas de seu poderoso computador mental, distribuídas pelas pastas de uma miscelânea de inspiradores: Hobbes, Locke, Rousseau, Kant, Hegel, Weber, Croce, Cattaneo, Pareto, Kelsen, sem falar de Marx, de quem sempre manteve cerimoniosa distância, guardada com sensível respeito. Terminado o trabalho de análise, em seu sentido mais literal de quebrar um enunciado em várias partes, as construções em exame são então reorganizadas por Bobbio, quase sempre sob a conclusão de que as diferentes leituras em contraste podem ser reunidas numa só, contraditória, paradoxal, mas portadora de vigor conceitual superior. Na esteira de Sócrates, gosta de enriquecer o debate pela via das perguntas formuladas ao interlocutor ou leitor. Dessa forma, abundam seus títulos interrogativos: Qual socialismo? Por que democracia? Qual liberdade? Democracia socialista? Uma guerra justa? E num seminário acabou recebendo o merecido troco: Qual Bobbio?

A verdade é que, no caso de um pensador que não se inibia em defender explicitamente a força teórica do ecletismo, caso raro no universo do pensamento político – “não tenho nenhuma hesitação em usar essa palavra, que significa ‘olhar um problema por todos os lados’ e é um modo de pensar que tem um reflexo prático em meu moderantismo político, outra palavra que não me envergonho de pronunciar, desde que entendida não negativamente como oposta a radicalismo, mas positivamente como oposta a extremismo” –, a coerência deve ser buscada com faro mais aguçado e com profundeza de análise.

O grande Perry Anderson teve dificuldade em consegui-lo, assustado com as confusas sombras projetadas na formação teórica de Bobbio, em que elitistas como Pareto e Mosca marcaram presença, ao lado do idealismo militante de Benedetto Croce e do perigoso positivismo jurídico defendido por Hans Kelsen.

O homem é o homem e suas circunstâncias, já se disse. Bobbio é fruto de uma Itália tão paradoxal que levou o mesmo Anderson a exclamar: “Buquê de híbridos”. Naquele país, Piero Gobetti, fenômeno de precoce intelectual assassinado em 1926 pelos esquadristas fascistas, aos 25 anos, fundador da revista Rivoluzione Liberale, em que Gramsci contribuía, chegou a qualificar o Lênin da Revolução de 1917 como maior expoente atual do liberalismo. Ali, Carlo Rosselli, também assassinado no exílio em Paris por bandidos fascistas enviados por Mussolini, em 1937, fundiu socialismo e liberalismo através de um contundente discurso antimarxista, sob o argumento de que um projeto histórico tão grandioso como o socialismo não podia beber água de uma única fonte filosófica. Nessa mesma Itália, Guido Calogero e Aldo Capitini lançaram o liberal-socialismo, invertendo a ordem do binômio de Rosselli, expresso no livro Socialismo Liberale, visto por eles como desigual na forma de criticar os dois termos, com benefícios para o pólo liberal.

Na Itália, enfim, produziu-se o contexto histórico peculiar que muitos de nós conhecemos, na juventude, através daquelas deliciosas páginas literárias relatando a convivência contraditória, antagônica e ao mesmo tempo afetuosa entre o vigário Don Camillo, minipresença asfixiante do Vaticano na vida da pequena aldeia, e o prefeito Peppone, do Partido Comunista, rival, mas cordial com o padre a ponto de desmistificar inteiramente o anátema que a Igreja Católica lançava contra o inimigo ateu.

Engajado na resistência clandestina ao fascismo e à ocupação nazista, Bobbio enfrentou duas breves experiências de prisão e militou ombro a ombro com os marxistas do PCI, nascendo nessa época uma convivência que durou até sua morte – trabalhou pela vitória de Romano Prodi e de Massimo D’Alema, da Coligação Ulivo –, convivência pautada pelo diálogo constante, por polêmicas duras e por elevado nível de questionamentos, que nunca desciam ao patamar do desrespeito ou da desqualificação.

Num texto em que dialogava diretamente com o legendário líder comunista Palmiro Togliatti, o sincero respeito de Bobbio pelo marxismo foi expresso com palavras inequívocas: “Estou convencido de que se não tivéssemos aprendido com o marxismo a ver a história do ponto de vista dos oprimidos, adquirindo assim uma nova e imensa perspectiva sobre o mundo humano, não nos teríamos salvado. Ou teríamos buscado refúgio no isolamento da vida interior, ou nos teríamos colocado a serviço dos velhos patrões”.

A partir de 1951, sustentou um ciclo de polêmica sistemática com teóricos do PCI em torno dos temas da cultura e da liberdade, através de ensaios que seriam reunidos no livro Política e Cultura, de 1955. Nos anos 1970, o segundo ciclo desse duelo concentrou-se na tensão existente entre o projeto socialista e a idéia democrática, resultando no já referido Qual Socialismo?. Ali formulou seu famoso dilema: “Nos Estados capitalistas, o método democrático, mesmo nas suas melhores aplicações, fecha a estrada para o socialismo; nos Estados socialistas, a concentração de poderes a partir de uma direção unificada da economia torna extremamente difícil a introdução do método democrático”. Em poucas palavras: até hoje, ou democracia sem socialismo, ou socialismo sem democracia.

Bobbio nunca se entusiasmou muito com Gramsci – grande cult nosso, no PT –, no entanto sempre se refere a ele e a suas elaborações teóricas com estupenda honestidade intelectual. Não formulou uma teoria política nova nem conseguiu construir um projeto consistente para seu pretendido socialismo com liberdade. Mas formulou perguntas que todos os socialistas sobreviventes ao desmoronamento do Muro de Berlim devem cuidar de responder de modo convincente, como condição para que Marx e o marxismo possam efetivamente ressuscitar, mais uma vez, desta que ele próprio apontou como sendo a quarta ou quinta mortes já imputadas a tal corrente de pensamento.

Seguem-se passagens selecionadas de Bobbio sobre o tema “política da cultura” e sobre o papel dos intelectuais. O leitor notará que alguns desses excertos dialogam vivamente com o Brasil de 2003 e 2004, o Brasil do governo Lula.

Política da cultura

A política da cultura inspira-se em um determinado modo de entender a relação entre política e cultura, e, portanto, a função dos intelectuais, pois tem um modo específico de entender a política e de delimitar a esfera da política (falo da política ordinária) e respectivamente da cultura, que tem, deve ter, a sua própria política, afastando de si o intelectual que imagina que a política a ser por ele desenvolvida como intelectual resolve-se imediatamente naquela que ele julga poder desenvolver como cidadão.

A política não é tudo. Quem acredita que a política é tudo, como crê o homem do tudo ou nada, já está no caminho daquela politização ou estatização integral da vida em que consiste o Estado totalitário. Dão conta disso hoje em dia até mesmo grande parte daqueles movimentos de juventude que haviam acreditado poder resolver toda a dimensão humana na dimensão política. Só quem acredita que a política não é tudo chega a se convencer de que a cultura desenvolve uma ação a longo prazo que também é política, mas de uma política diversa1.

Engajamento do homem de cultura

A tarefa dos homens de cultura é, hoje, mais do que nunca, a de semear as dúvidas, não de colher certezas. De certezas – revestidas com o fausto do mito ou edificadas com a pedra dura do dogma – estão cheias, regurgitantes, as crônicas da pseudocultura dos improvisadores, dos diletantes, dos propagandistas interessados.

Cultura significa comedimento, ponderação, circunspeção: avaliar todos os argumentos antes de se pronunciar, averiguar todos os testemunhos antes de decidir, e não se pronunciar nem decidir nunca à guisa de oráculo do qual dependa, de modo irrevogável, uma escolha peremptória e definitiva. (...)

Dir-se-á que o homem de cultura não pode se afastar, que também ele deve se engajar, isto é, escolher um dos dois lados da alternativa. Mas o homem de cultura tem o seu próprio modo de não se afastar. (...) Tem o seu modo de se engajar: agir em defesa das condições mesmas dos pressupostos da cultura. Se quisermos, ele possui o seu próprio modo de decidir porque, tenhamos em conta, ele não pode decidir-se senão pelos direitos da dúvida contra as pretensões do dogmatismo, pelos deveres da crítica contra as seduções do entusiasmo, pelo desenvolvimento da razão contra o império da fé cega, pela veracidade da ciência contra os enganos da propaganda. (...)

Mais além do dever de entrar na luta, existe para o homem de cultura o direito de não aceitar os termos da luta tal qual estão colocados, de discuti-los, de submetê-los à crítica da razão. Além do dever da colaboração, existe o direito de averiguar.

Antonio Gramsci, em um dos seus Cadernos do Cárcere – homem engajado, ferreamente e integralmente engajado (...) –, escrevia: “Compreender e avaliar realisticamente as posições e as razões do adversário (...) significa justamente estar livre da prisão das ideologias (no sentido deteriorado, de cego fanatismo ideológico), ou seja, colocar-se de um ponto de vista crítico, o único fecundo na pesquisa científica”2.

Autonomia da cultura

Em favor da autonomia relativa da cultura podem ser apresentados alguns argumentos. O primeiro diz respeito aos próprios sujeitos da atividade cultural, precisamente aos intelectuais. O que quer que se diga deles, os intelectuais constituem até agora, em nossas sociedades caracterizadas pela divisão do trabalho, um grupo com características bem definidas de pessoas que se reconhecem entre si mesmo quando se insultam, e que falam umas com as outras mesmo quando presumem ou pretendem falar com o público. Têm problemas comuns que as diferenciam. (...)

Não excluo que o intelectual como indivíduo à parte, com suas características e com seus privilégios, esteja destinado a desaparecer, em uma sociedade em que percam força as formas mais aberrantes de divisão do trabalho e todos saibam escrever e escrever de modo claro.(...)

O segundo argumento em favor da autonomia relativa da cultura pode ser extraído de um confronto (...) entre o mundo das idéias e o mundo das ações políticas, em uma condição de liberdade de opinião, e portanto de consenso e de dissenso. O primeiro é muito mais variado, articulado, complexo, diferenciado, problemático do que o segundo. A explicação para essa diferença é muito simples: a tarefa do intelectual é a de agitar idéias, levantar problemas, elaborar programas ou apenas teorias gerais; a tarefa do político é a de tomar decisões.

Toda decisão implica escolha entre possibilidades diversas, e toda escolha é necessariamente uma limitação, é ao mesmo tempo uma afirmação e uma negação. A tarefa do criador (ou manipulador) de idéias é a de persuadir ou dissuadir, de encorajar ou desencorajar, de exprimir juízos, de dar conselhos, de fazer propostas, de induzir as pessoas às quais se dirige a adquirirem uma opinião sobre as coisas.

O político tem a tarefa de extrair desse universo de estímulos diversos, às vezes opostos e contraditórios, uma linha de ação. A prática tem suas razões que a teoria pode não conhecer. Mesmo a teoria mais perfeita, completa e coerente, para se transformar em uma decisão, deve ser adaptada às circunstâncias3.

O intelectual e a política

Um documento de intelectuais socialistas, a que eu próprio aderi, publicado no Avanti! de 21 de outubro de 1979 (...) repropõe o problema sempre vivo porque insolúvel (...) da relação entre intelectuais e políticos, ou, mais propriamente, entre intelectuais e partidos. O problema é tanto mais atual quanto, como já foi notado, no próprio seio do Partido Comunista Italiano, que se transformou no porta-voz da doutrina do intelectual orgânico, alguns notáveis nomes de cultura vêm manifestando livremente opiniões diferentes das opiniões oficiais no que se refere, por exemplo, à organização interna do partido, ou seja, em relação ao chamado centralismo democrático, à dureza demonstrada pelo partido em condenar indiscriminadamente todas as facções da esquerda extra-parlamentar.

Conquanto uns procurem habitualmente lançar a culpa do dissídio nos outros, o dissídio está na própria natureza das tarefas e das responsabilidades de cada uma das partes, e é a expressão, nada mais, nada menos, do plano diverso em que se colocam a teoria e a prática, o pensamento e a ação. É verdade que não existe ação política séria que não seja orientada por uma idéia diretriz, mas também é verdade que não existe uma construção teórica que possa ser imediatamente aplicada na prática. Já Plutarco tinha consciência disso, ao escrever na Vida de Péricles: “Em minha opinião, a vida de um filósofo dedicado à especulação e a de um homem político não são a mesma coisa. O filósofo move a sua mente para nobres fins, sem necessidade de instrumentos ou materiais externos para fazê-lo; por sua vez, o homem político deve colocar a própria vida em contato com as baixas exigências do homem comum”4.

Intelectual mediador

Jamais me distanciei do tipo ideal do intelectual mediador, cujo método de ação é o diálogo racional, no qual os dois interlocutores discutem, apresentando, um ao outro, argumentos raciocinados, e cuja virtude essencial é a tolerância. (...)

Entre intelectuais e políticos existe um hiato difícil de eliminar, só em tempos excepcionais está destinado a diminuir ou desaparecer. Esse hiato me induziu a não me iludir com a função imediatamente política dos primeiros, tanto no que diz respeito às suas recriminações e denúncias como no que diz respeito às suas propostas ou aos seus projetos de uma sociedade justa. Não sei se à guisa de consolação ou como máxima de experiência em que desejo acreditar e na qual vejo com alegria que alguns outros também acreditam, retorna sempre a idéia de que política da cultura e política dos políticos são esferas que devem ser mantidas bem distintas; mesmo que se reconheça que o homem de cultura faz política, ele o faz no longo prazo, tão longo que os lances mais imediatos não deveriam perturbá-lo nem desviá-lo de sua estradas5.

Manifestos de intelectuais

O tema é de interesse comum, pois cada um de nós é procurado, quase todo dia, por este ou aquele comitê para autorizar o aparecimento público de sua assinatura em um manifesto, e encontra-se quase sempre cercado por sentimentos contrastantes. De um lado, o temor de que a abstenção possa ser interpretada como desinteresse, como uma cômoda evasão, como amor pelo quieto viver, ou pior, como traição aos ideais supremos nos quais um homem de cultura deveria inspirar a própria obra; de outro, uma certa sensação de desconforto derivada ora da impressão de ter cedido, assinando, a uma pressão externa ou, seja como for, a uma interpretação forçada dos fatos, ora da convicção de que, diante da gravidade de uma dada situação, a tomada de posição na forma de uma declaração que poucos lerão é perfeitamente inútil, ou pior, pode servir a objetivos práticos diversos daqueles proclamados. (...)

Não há dúvida de que, na relação entre homens de cultura e homens políticos instaurada pelo manifesto, o prestígio intelectual e moral dos primeiros é considerado como uma condição primária para o alcance do objetivo. A idéia mesma de um manifesto de intelectuais às autoridades políticas parte do pressuposto de que aquilo que os intelectuais pensam e dizem tem um valor exemplar e, como tal, diretivo. Os intelectuais como guias morais da nação, ou mesmo da humanidade. Deve-se reconhecer francamente que esse pressuposto nem sempre é compartilhado por aqueles que estão na outra parte, por razões ou pretextos sobre os quais valeria a pena refletir. Indico dois deles, que considero principais: a) a carência de informação precisa sobre o fato ou fatos contestados. A exatidão das notícias sobre as quais se apóia o protesto deve ser absolutamente irrefutável: freqüentemente não o é. O prestígio do interrogante diminui bastante quando se suspeita que ele foi mal informado ou aceitou passivamente as notícias transmitidas por quem era parte interessada, sem se preocupar em comprovar criticamente as fontes ou as razões da outra parte; b) a suspeita de ausência de imparcialidade. Este é um ponto decisivo. O intelectual que assina um manifesto assume a qualidade e a função de um juiz, que decreta o que é justo e o que é injusto. A imparcialidade é a suprema virtude do juiz. Com bastante freqüência os manifestos foram acusados de ser endereçados contra apenas uma das partes, o que os levou a ser considerados não documentos de uma autônoma política da cultura, mas documentos de uma submissão da cultura à política ordinária. (...)

O último ponto diz respeito às conseqüências: a influência pela ameaça. Sob esse aspecto, a ineficácia dos manifestos é quase total. Que danos pode esperar o Estado da inobservância das prescrições ou das sugestões contidas no protesto? Uma das maiores fontes de debilidade dos manifestos é que habitualmente o protesto não é acompanhado de uma ameaça de sanção, como poderia ser, por exemplo, a desobediência civil. Mas há uma razão de debilidade ainda maior: que a sanção ameaçada, seja ela qual for, dificilmente poderia ser posta em execução, e mesmo que executada não produziria no Estado um dano tão relevante a ponto de constituir uma pressão irresistível. (...)

Das observações feitas até aqui, não gostaria que se extraísse uma conclusão negativa com respeito ao engajamento político dos intelectuais como tais. É, precisamente, o contrário. Meu discurso não é negativo, mas crítico. É um convite não à renúncia, mas à decisão com base na razão. Acredito firmemente em uma política da cultura, isto é, em uma política dos intelectuais como tais, distinta da política ordinária. Mas não creio que ela seja uma política fácil, a ser praticada todos os dias, em todas as ocasiões, sem uma consciência amadurecida do plano diverso em que os fins da cultura se põem com respeito aos fins da política. Freqüentemente os manifestos são atos de política ordinária, e como atos de política ordinária têm o grande defeito de não levar em conta o desequilíbrio das forças. São atos de política ordinária, eis tudo, equivocada6.

Paulo Vannuchi é vice-presidente executivo do Instituto Cidadania, mestre em Ciência Política pela USP com a dissertação "Democracia, Liberalismo, Socialismo e a Contribuição de Norberto Bobbio".