Nacional

Vivemos uma realidade paradoxal. Se, de um lado, as leis definem os direitos do cidadão, do outro, eles são denegados no plano da trama social e os indivíduos não são considerados como portadores de direitos

O Brasil possui uma política integrada e prioritária de proteção e promoção dos direitos humanos desde 1995. Na época, o Ministério da Justiça foi incumbido de coordenar a elaboração de um programa de direitos humanos, em consonância com as recomendações da Declaração e Programa de Ação de Viena (1993). O Programa Nacional de Direitos Humanos (PNDH) foi lançado em 13 de maio de 1996 e atualizado em 13 de maio de 2002, dando origem ao PNDH II. O fato é que o Programa Nacional de Direitos Humanos representou um marco na democracia brasileira e um avanço do Estado de Direito, uma vez que sistematizou as demandas da sociedade brasileira e apontou alternativas para a solução de problemas estruturais. O PNDH é, portanto, um importante instrumento para a formulação de políticas públicas orientadas para a garantia e promoção dos direitos humanos.

Desde a criação da Secretaria Nacional dos Direitos Humanos, em 1997, é possível identificar no país um constante esforço para o fortalecimento de ações voltadas ao respeito dos direitos da pessoa humana. Entretanto, foi em janeiro de 2003 que o Estado brasileiro testemunhou uma das maiores conquistas na área. No primeiro ato administrativo como presidente da República, em 1º de janeiro de 2003, Luiz Inácio Lula da Silva criou a Secretaria Especial dos Direitos Humanos, vinculada diretamente à Presidência da República. Esse ato descortinou os princípios que iriam orientar as ações do novo governo para a área, revelando que a luta pelos direitos humanos integra a agenda de prioridades do atual governo.

As últimas décadas no Brasil foram marcadas por inúmeras conquistas no que diz respeito aos direitos de cidadania. Na década de 1980, os movimentos sociais se organizaram e os sindicatos ocuparam um importante lugar nas lutas travadas pela redemocratização e por uma sociedade mais justa e igualitária. Foram alcançadas importantes conquistas, expressas principalmente na promulgação da Constituição de 1988, que ampliou e tornou claros os direitos do cidadão no espaço público.

Além disso, o Brasil ratificou a maioria dos principais instrumentos globais e regionais de proteção dos direitos humanos. Após a adoção e a proclamação pela Assembléia Geral das Nações Unidas da Declaração Universal dos Direitos Humanos, em 10 de dezembro de 1948, foram ratificados pelo Estado brasileiro: o Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos; o Pacto Internacional de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais; a Convenção de Prevenção e Repressão do Crime de Genocídio; a Convenção Internacional sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial; a Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher; a Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher; a Convenção das Nações Unidas contra a Tortura e outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos ou Degradantes; a Convenção sobre os Direitos da Criança; os Protocolos Adicionais à Convenção Interamericana para Prevenir e Punir a Tortura; a Convenção Americana sobre Direitos Humanos; o Protocolo Adicional à Convenção Americana sobre Direitos Humanos em Matéria de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais; a Abolição da Pena de Morte; entre outros.

A maioria dos direitos fundamentais – tanto civis e políticos quanto econômicos, sociais e culturais – são explicitamente garantidos pela Constituição Federal e por legislações específicas, como o Direito à Saúde e o Direito à Moradia. Apesar de em alguns casos específicos haver necessidade de aprimoramento dos instrumentos legais disponíveis, especialmente no sentido da complementação com normatizações operacionais, os marcos legais do país reconhecem os direitos humanos. Assim, é possível considerar que o Brasil está dotado de recursos fundamentais para a promoção e proteção dos direitos humanos.

No campo dos direitos civis e políticos, mecanismos efetivos têm avançado para garantir a realização dos direitos fundamentais elencados em nossa Constituição. O país vive um período sem precedentes na história nacional de consolidação do processo democrático e de fortalecimento institucional. Mas, certamente, ainda persistem desafios que precisam ser enfrentados para alcançarmos a cristalização desejada de nossa democracia. No que se refere aos direitos sociais, econômicos e culturais, precisamos ousar dar passos mais ambiciosos, contemplando sempre a noção de interdependência e universalidade dos direitos.

Desafio

Em que pesem todos esses avanços, a sociedade brasileira vem experimentando índices alarmantes de desigualdade social e sendo vítima das mais diferentes violações de direitos. Assim, vivemos uma realidade paradoxal. Se, de um lado, as leis definem os direitos do cidadão, do outro, eles são denegados no plano da trama social e os indivíduos não são considerados como portadores de direitos. E é nesse paradoxo que reside nosso desafio: fazer com que os direitos humanos sejam uma realidade efetivamente experimentada por todos os brasileiros deste país. E, seguramente, já começamos a traçar nossos passos nessa direção. Obviamente, não é o caso de soluções mágicas, pois o atual cenário é resultado de uma história de quinhentos anos, marcada pela exclusão e injustiça social.

Ao assumir o enfrentamento desse desafio, partimos do princípio de que os direitos humanos, como um conteúdo político, reclamam sua presença central nas políticas públicas. Daí a fundamental participação do Estado para a efetivação dos direitos humanos.

Tal compreensão, portanto, exige que a SEDH assuma a importante posição de articulação entre as três esferas governamentais e entre elas e a sociedade civil. Dessa forma, ações de articulação, mobilização e indução assumem o primeiro plano da SEDH. E, sendo assim, a grande contribuição que pode emergir do trabalho da Secretaria Especial dos Direitos Humanos é fazer com que a luta pela garantia dos direitos da pessoa humana esteja presente na pauta do governo e também da sociedade civil brasileira de maneira que seja possível construir uma Nação mais justa e solidária.

Implementar um sistema de defesa, garantia e promoção dos direitos humanos dos 170 milhões de brasileiros é a meta principal do trabalho. Nosso objetivo é que a prática cotidiana seja marcada pelo respeito dos direitos da pessoa humana. Para isso, é fundamental articular ações e projetos entre a sociedade civil, órgãos e esferas de governo.

Articulação e diálogo

Uma ação que é fruto dessa compreensão e deixa claro o papel que buscamos assumir nesse processo é a realização da IX Conferência Nacional de Direitos Humanos. Considerada o maior evento sobre o tema no país, a Conferência sempre foi convocada pela Câmara dos Deputados. Este ano, pela primeira vez na história, é convocada pelo Poder Executivo Federal, cabendo à Secretaria Especial dos Direitos Humanos a coordenação de todo o processo, em parceria com a sociedade civil organizada e o Parlamento. E o caráter de ineditismo do encontro deste ano não termina aí. Desta vez a Conferência terá caráter deliberativo e seus resultados terão maior impacto na formulação e implementação das políticas públicas.

A IX Conferência, portanto, reflete os princípios éticos e políticos que norteiam a atuação da Secretaria Especial dos Direitos Humanos. Afinal, o compromisso que temos é de agir de forma integrada e articulada com os diferentes níveis e esferas de governo e com a sociedade, para que seja possível realizar as condições históricas de efetivação dos direitos de cidadania.

Essa concepção acerca de nossa função permeia todas as ações desenvolvidas na SEDH. É o caso, portanto, das ações voltadas para crianças e adolescentes, que têm o objetivo de efetivar as medidas estabelecidas no Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA). Somos o guardião do ECA e nossas estratégias de ação são a articulação, a integração e a efetivação de compromissos.

Nesse sentido, estamos preparando o Sistema Nacional de Implementação de Medidas Socioeducativas, que vai definir as diretrizes do atendimento aos adolescentes infratores, partindo da concepção de que é preciso reintegrar esses jovens à sociedade. Com base nesse instrumento, os entes federativos vão (re)pactuar os compromissos para que os preceitos do Estatuto da Criança e do Adolescente sejam aplicados na prática e possam alterar a realidade dos cerca de 40 mil jovens que atualmente cumprem alguma medida socioeducativa.

O enfrentamento à exploração sexual infanto-juvenil também ocupa o centro de nossas atenções e temos realizado ações para combatê-la. Dados da Organização Internacional do Trabalho estimam a existência de 1 milhão de crianças exploradas sexualmente em todo o mundo. No Brasil, as estimativas apontam 100 mil meninos e meninas nessa situação. Os números assustam e revelam a situação cruel. De um lado, a sociedade brasileira está mobilizada e reclama uma realidade diferente e, do outro, o governo assume a responsabilidade de implementar ações de combate e prevenção.

A Secretaria Especial dos Direitos Humanos passou a coordenar este ano a Comissão Intersetorial de Enfrentamento à Exploração Sexual Infanto-Juvenil. Composta de representantes do governo federal, do Parlamento, de organizações da sociedade civil e de organismos internacionais, a comissão é a instância responsável pela formulação e implantação de políticas públicas para enfrentar o problema e tem se debruçado com afinco sobre a questão.

Primeiro degrau da cidadania

A Secretaria Especial também tem concentrado esforços para fazer valer o princípio básico para o exercício da cidadania: todos os brasileiros e brasileiras têm direito a um nome e sobrenome. Esse direito, no entanto, vem sendo denegado a milhares de brasileiros, que simplesmente não existem nas estatísticas oficiais e acabam vivendo às margens da vida cívica de nosso país. Hoje, 21% das crianças que nascem por ano no Brasil saem do hospital sem o registro civil. Não podemos admitir que logo nos primeiros instantes de vida um cidadão brasileiro tenha desrespeitado um de seus direitos fundamentais. Estima-se que cerca de 3 milhões de pessoas não existam civilmente.

Queremos dar um basta a essa dramática situação. Estamos fazendo um grande mutirão, uma ação inédita de integração entre poder público – nas diferentes instâncias e níveis – e sociedade civil. No ano passado, foi realizado o Dia Nacional de Mobilização pelo Registro de Nascimento, em 25 de outubro. A realidade de exclusão de milhares de brasileiros foi revelada à sociedade. O debate ocupou a agenda pública e sensibilizou os mais diferentes atores sociais e políticos. Realizamos mutirões de emissão de certidão de nascimento, com o importante envolvimento da maioria dos cartórios do país.

No início de maio, elaboramos o Plano Nacional de Erradicação do Subregistro de Nascimento. Representantes dos poderes executivos estaduais e federal, dos cartórios, do Poder Judiciário e do Ministério Público formataram ações articuladas para garantir a certidão de nascimento a todos os brasileiros e fortalecer o sistema brasileiro de registro civil. O processo tem sido exitoso e o envolvimento de todos esses atores é fundamental para que possamos romper com esse ciclo geracional de exclusão.

Entre outras inúmeras ações, o governo dá continuidade ao cumprimento do Plano Nacional de Erradicação do Trabalho Escravo, lançado em março de 2003 pelo presidente Lula. Em menos de um ano foram libertados 4.315 trabalhadores mantidos em regime de escravidão e trabalho degradante, quase o dobro de todo o ano de 2002 (2.306). Em seguida, esses trabalhadores receberam R$ 5.888.379,50 em verbas rescisórias, além da documentação para se cadastrarem no Sistema Nacional de Emprego (Sine), o qual os habilitou a receber o seguro-desemprego, que passou a ser pago neste ano para os libertos.

Assim, fica claro que a luta pelo respeito dos direitos da pessoa humana é um compromisso assumido pelo governo Lula com os 170 milhões de brasileiros. Compreendida como a Casa da Cidadania, a Secretaria Especial dos Direitos Humanos segue vigilante e atuante para que todo e qualquer brasileiro e brasileira tenha seus direitos garantidos. É dessa forma que vamos construir, juntos, um país mais justo e solidário e ainda melhor para viver.

Nilmário Miranda é ministro da Secretaria Especial dos Direitos Humanos da Presidência da República.