Política

Uma avaliação do legado do brizolismo e do futuro do trabalhismo remete a uma série de referenciais históricos de sua trajetória política no plano regional e nacional

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“Se não chegou à Presidência da República, Brizola reeditou, ao menos, o martírio trabalhista, pelas perseguições que sofreu e pelos temores que despertou em parcelas das elites política e econômica.”
(J. Trajano Sento-sé – Brizolismo: estetização da política e carisma, Rio de Janeiro, Editora FGV, 1999, p.347)

“Quem quiser que se engane. Pois não existirá força alguma na terra capaz de impedir que o povo brasileiro realize seu destino como Nação livre e independente.”

(Discurso de Brizola ao retornar do exílio diante do túmulo de Getúlio Vargas em São Borja, 7/9/1979)

Uma avaliação do legado do brizolismo e do futuro do trabalhismo remete a uma série de referenciais históricos de sua trajetória política no plano regional e nacional. No Rio Grande do Sul encontram-se alguns dos ingredientes essenciais para a compreensão de sua biografia, e essas raízes foram marcantes para sua atuação política, que se nacionalizou como a de Getúlio Vargas no passado. Com o exílio, Leonel Brizola teve a oportunidade de incorporar novos referenciais, contando, sobretudo, com o capital político da socialdemocracia européia para retornar à política num Brasil diferente do que tinha deixado em 1964.

Raízes positivistas

Embora não tenha sido contemporâneo da geração positivista do castilhismo e do borgismo1, Brizola foi um típico produto dessa herança de seus antecessores, e não um típico caudilho latino-americano. Sua biografia política sempre esteve associada à valorização da instituição – partido político –, antes e depois do exílio, o que é parte da cultura republicana regional em que o “coronel-burocrata” apoiava seu poder na estrutura do Partido Republicano Rio-Grandense para enfrentar a hegemonia econômica e política dos herdeiros dos federalistas de Silveira Martins. Não teve uma visão instrumental dos partidos como Vargas, que no Estado Novo governou sem partido e na redemocratização, em 1945, fundou o PSD e o PTB. Vargas sempre esteve acima dos partidos. A fidelidade de Brizola ao PTB foi permanente e, quando perdeu a sigla, lançou-se na construção de seu novo partido: o PDT.

A relação de Brizola com o positivismo institucionalizado começou através de sua trajetória no ensino técnico. Filho de pequenos agricultores, nascido no interior de Carazinho (RS) em 1922, Brizola iniciou os estudos primários em São Bento, continuou-os em Passo Fundo e, de volta a Carazinho, concluiu-os no colégio da Igreja Metodista em 1933. Foi em Porto Alegre, porém, que encontrou o ambiente que seria marcante para sua visão de mundo. Ao cursar o Instituto Agrícola de Viamão, que fazia parte da Universidade Técnica2, aproximou-se de professores positivistas, dentre os quais Mozart Pereira Soares. Formado como técnico rural, tornou-se funcionário do Departamento de Parques e Jardins da Prefeitura de Porto Alegre e, ali, um dos responsáveis pelo planejamento e arborização da várzea do principal espaço verde da cidade: o Parque Farroupilha.

Essas experiências o levarão, em 1945, encorajado por seu tutor, a estudar na Escola de Engenharia da Universidade do Rio Grande do Sul, fundada em 1896 pelos positivistas, cujo curso completaria em 1949, depois de ter concluído o supletivo no Ginásio Júlio de Castilhos, também da universidade. Certamente esse ambiente positivista o conduziu à Escola de Engenharia, e não à Faculdade de Direito, celeiro tradicional da classe política pelo qual haviam passado Getúlio Vargas e João Goulart. Na realidade, à época, “os republicanos no poder garantiram parte dos empreendimentos da escola” e “não havia distinção entre a política de ensino da Escola de Engenharia e o projeto do Partido Republicano Rio-Grandense, propugnador do positivismo no estado”3.

Essas três marcas – a valorização do partido político, a formação técnica e de engenheiro e a importância da educação – foram traços permanentes em sua biografia política. Não foi aleatório o fato de ter estado entre os fundadores do Partido Trabalhista Brasileiro (PTB) no Rio Grande do Sul, associando-se, como líder estudantil, às diferentes correntes formadoras do partido4. Seu batismo político foi ao lado de Alberto Pasqualini, o principal teórico do trabalhismo, na campanha para o governo do estado. Da mesma forma, sua primeira experiência governamental foi como secretário de Obras Públicas no governo de Ernesto Dornelles (1951-1954), dentro de seu perfil profissional de engenheiro civil, título a que jamais abdicou: engenheiro Leonel de Moura Brizola. Outro traço permanente de sua biografia, tanto no governo do Rio Grande do Sul quanto no do Rio de Janeiro (neste associado a seu vice-governador, o antropólogo e educador Darcy Ribeiro), foi sua obsessiva valorização da educação, que se traduziu em ambiciosos investimentos na área da expansão de prédios escolares (escolas municipais, “brizoletas” e CIEPs).

Carreira de rápida ascensão

Depois de ter ingressado no PTB, em 1945, Brizola, junto com os sindicalistas, demarcou a posição do novo partido na defesa do “povão” frente ao PSD, fundado também por Vargas para recrutar a classe política oriunda do Estado Novo. Se no plano nacional a aliança PSD-PTB assegurou sua hegemonia nas eleições presidenciais, no Rio Grande do Sul o PTB e o PSD formaram o pólo da luta política regional durante a República Populista5.

Brizola elegeu-se, em 1947, deputado estadual pela legenda do PTB, apesar da derrota de Pasqualini para o pessedista Walter Jobim ao governo do estado. Em 1950, com a vitória de Vargas nas eleições presidenciais, foi reeleito deputado estadual, assumindo a liderança da bancada trabalhista. Candidato pela primeira vez à prefeitura de Porto Alegre, sofreu, porém, seu primeiro revés eleitoral, perdendo por 1% dos votos para o candidato pessedista, Ildo Meneghetti. Posteriormente, o PTB venceu as eleições para governador com Ernesto Dornelles, e Brizola assumiu, em 1952, a Secretaria de Obras Públicas, revelando-se “um administrador dinâmico e empreendedor” passando a ter “uma presença hegemônica no secretariado”6.

A crise política acirrou-se com a campanha de Lacerda contra Vargas e denúncias de corrupção através da corrosiva metáfora do “mar de lama”7. Essa oposição passional escondia outro objetivo: atingir a política nacionalista e social de Vargas (o monopólio estatal da Petrobras e o aumento do salário mínimo). O atentado contra Lacerda, do qual foi vítima o major Vaz, provocou a crise político-militar8 que culminaria no suicídio de Vargas, em 24 de agosto. O teor da Carta Testamento desencadeou mobilizações antiamericanas e seria um referencial político e ideológico permanente para Brizola. Eleito deputado federal em 1954, Brizola começou a confrontar-se com Lacerda, que propunha a transferência das eleições presidenciais que seriam vencidas por Juscelino, tendo como vice João Goulart.

A carreira de Brizola prossegue seu curso ascendente ao eleger-se prefeito de Porto Alegre, em 1955, com ampla margem de votos (55%) sobre o candidato da coligação conservadora (PSD/UDN/PL), que fez menos de um terço dos votos. Sua gestão foi inovadora e populista: deu prioridade às “reivindicações das classes trabalhadoras da cidade, como o saneamento básico, a criação de escolas primárias e a melhoria dos transportes coletivos” principalmente nas vilas populares9. Sua popularidade como prefeito de Porto Alegre foi o trampolim político para a conquista do governo do estado, em 1958.

A vitória de Brizola nas eleições para governador, com 55,2% dos votos diante de seu adversário, o pessedista Peracchi Barcellos (41,2%), resultou da astúcia política. Face à tradicional polarização das eleições, Brizola precisava ampliar sua base política, e fez novamente aliança com os integralistas do PRP10. Sua estratégia era atrair um parceiro conservador e penetrar nas zonas de colonização italiana e alemã hostis ao PTB11. O acordo pragmático-eleitoral surpreendeu à primeira vista pela distância ideológica entre os partidos e pelos conflitos decorrentes do atentado contra Vargas em 193812. Embora a aliança tática tenha durado menos que a metade do mandato por divergências políticas, o PTB ampliou sua base eleitoral na região colonial.

O fato importante, porém, é que o desempenho do jovem governador mudou o padrão dos governos anteriores, inclusive dos trabalhistas, dividindo-se em duas fases: a primeira, do “Decálogo Educação e Desenvolvimento”, de 1959 a agosto de 1961; e a segunda, com o Movimento da Legalidade, até o final do mandato, em fins de 1963.

No primeiro período, a avaliação de que a economia regional encaminhava-se para uma crise econômica13 e seu compromisso com as populações marginalizadas levaram-no a adotar políticas para enfrentar esses desafios. Deu forte ênfase ao desenvolvimento econômico através do papel indutor do Estado ao instituir o Conselho de Desenvolvimento do Estado e o pioneiro Gabinete de Ação e Planejamento (GAP), diretamente ligado ao governador e coordenado pelo economista cepalino Cláudio Accurso. Seu “Decálogo” cobria as áreas estratégicas de um plano de governo abrangente14. Criou órgãos de coordenação: o Conselho de Desenvolvimento do Extremo Sul (Codesul), o Banco Regional de Desenvolvimento Econômico (BRDE); e a Caixa Econômica Estadual. E associou o Estado com o capital privado em vários empreendimentos: a empresa mista Aços Finos Piratini; a Companhia Rio-Grandense de Telecomunicações com participação majoritária do Estado; a abertura de subscrição pública para a Construções Eletromecânicas (CESA); e o estímulo à implantação de empresas fornecedoras de tecnologia para a fabricação de tratores e implementos agrícolas. Apoiou a implantação da Refinaria Alberto Pasqualini da Petrobras e a construção de termelétricas, como a de Charqueadas.

À astúcia política sucedem suas ações no campo social. Instituiu a Secretaria do Trabalho e Habitação e adotou como prioridade à educação: valorização dos professores, expansão da rede escolar por meio das “brizoletas”, construção de escolas de todos os níveis (6.311)15; expansão da matrícula (689.209) e de novos professores (42.153). O governo teve, também, atuação pioneira no campo da reforma agrária: apoiou o Movimento dos Agricultores sem Terra (Master) e promoveu as primeiras desapropriações (Banhado do Colégio e Fazenda Sarandi), distribuindo terras e oferecendo assistência técnica, o que provocou confrontos com a poderosa Federação das Associações Rurais (Farsul).

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A radicalização cresceu por sua ação nacionalista “encampando” empresas estrangeiras, mas intensificou-se com o ritmo de mobilização popular com o Movimento da Legalidade. A intervenção de Brizola nos setores de energia e comunicação teve repercussão nacional e internacional. Em 1959, já encampara a filial da Bond and Share, mas em 1961 foi a vez da Companhia Telefônica Rio-Grandense (subsidiária da ITT)16. Os dois fatos geraram reações e protestos da Embaixada americana e desembocaram, mais tarde, em complexas negociações internacionais. Mas foi o Movimento da Legalidade, em favor da posse do vice-presidente João Goulart com a renúncia de Jânio, que projetou nacionalmente Brizola. Assumiu, como governador de um estado do extremo sul, a causa da posse de forma pública e destemida, enfrentando o veto militar por meio da Rede da Legalidade, que envolvia mais de uma centena de emissoras do Rio Grande do Sul, de Santa Catarina e do Paraná. O movimento mobilizou amplos setores civis e militares dispostos a repetir a façanha da Revolução de 1930. Diante da ordem do ministro da Guerra para pôr fim ao movimento, o comandante do III Exército foi ao Palácio Piratini não para prender Brizola, mas para manifestar sua adesão. Foi destituído de suas funções, mas comunicou aos superiores hierárquicos que se o novo comandante viesse assumir seu lugar em Porto Alegre seria preso. O desenlace do movimento, no ponto alto de sua tensão político-militar, só encontrou saída na negociação conduzida por Tancredo Neves: os militares aceitariam que Jango assumisse como presidente num sistema parlamentarista. A frustração de Brizola diante do acordo o levará a uma maior radicalização ideológica e, em novembro de 1961, foi um dos articuladores da Frente Nacional de Libertação, que congregava as forças políticas antiimperialistas.

Da liderança esquerdista à provocação aos militares

Com a posse de Jango em 7 de setembro, Brizola explicitou sua discordância com a adoção do parlamentarismo por considerar que violava a Constituição. A instabilidade do parlamentarismo revelou-se, desde logo, com a renúncia do primeiro-ministro, Tancredo Neves, em junho de 1962; a inviabilidade política de San Tiago Dantas e Auro de Moura Andrade; e as dificuldades do novo chanceler Brochado da Rocha. Este tentou, sem sucesso, aprovar um projeto de lei que antecipava a data do plebiscito sobre o sistema de governo, mas renunciou, em setembro, sob a pressão do governador Lacerda. Sua renúncia provocou uma greve geral organizada pela CGT com o apoio dos setores militares nacionalistas. O Congresso cedeu, enfim, às pressões e estabeleceu a data do plebiscito para 6 de janeiro de 1963, quando a opção pelo retorno ao presidencialismo venceu amplamente, restabelecendo os poderes de Jango.

Por sua vez Brizola, para não ser obrigado a se desincompatibilizar do governo gaúcho, decidiu concorrer a deputado federal pela Guanabara com o apoio da Aliança Trabalhista Socialista, formada pelo PTB e pelo PSB, e recebeu, então, a maior votação obtida por um deputado no Congresso Nacional17. Tornou-se o vice-líder do PTB na Câmara e assumiu nacionalmente a posição de “líder preeminente da esquerda radical”, pressionando o governo para que aprofundasse as “reformas de base”. Em 1962 liderou a formação da Frente de Mobilização Popular (FMP) integrada pela CGT, UNE, Frente Parlamentar Nacionalista (FPN) e por setores militares nacionalistas18.

As divergências entre Brizola e Jango foram se acumulando com a acusação de que este estaria conciliando com setores conservadores e imperialistas. E se aprofundaram com as negociações entre o governo brasileiro e a American and Foreign Power Co. (Amforp) para a compra de bens americanos no Brasil por um valor considerado exorbitante pelos setores nacionalistas mais radicais. Brizola avisou que a conclusão do acordo produziria a ruptura das forças nacionalistas de esquerda com o governo federal e acusou os ministros da Guerra, da Fazenda e da Indústria e Comércio de “traidores dos interesses nacionais”.

Sua radicalização foi se intensificando para atingir o limite da provocação política. Em comício, em Natal, afirmou ser necessário “colocar mais fogo na fogueira e aumentar a pressão contra o Congresso para conseguir a aprovação das reformas indispensáveis à vida brasileira” e, aludindo ao general Murici, comandante local, acusou-o de “gorila e golpista”. Em meio a essa radicalização crescente San Tiago Dantas fez um pronunciamento em que lançou a tese das duas esquerdas: a “positiva” e a “negativa”. Identificando-se com a primeira, acusou Brizola de, por seu extremismo, assumir atitudes “negativas” para o desenvolvimento econômico e político do país. Fracassado o Plano Trienal, a reforma ministerial concede a presença de um representante da esquerda radical para a pasta da Educação, o deputado Paulo de Tarso dos Santos.

Diante da decisão do STF de manter a inelegibilidade dos sargentos para cargos legislativos, estes se sublevaram em Brasília. A rebelião foi dominada, mas o comandante do II Exército, Peri Bevilacqua, pôs mais lenha na fogueira, condenando a rebelião e atacando as organizações sindicais ligadas à CGT. Em resposta, esta, a FPN e a UNE repudiaram as declarações do general e defenderam o direito de eleição dos sargentos. Brizola estava entre os signatários do documento. A crise se aprofundou em outubro quando Jango solicitou a decretação de estado de sítio para poder intervir na Guanabara, mas a Frente de Mobilização Popular, convocada por Brizola, repudiou-o, embora apoiasse as medidas contra Lacerda.

Cabe uma referência às relações do PCB com Brizola face à reconversão democrática da cúpula do partido. Essa mudança está associada ao processo político que decorre do suicídio de Vargas. Diante do “impacto da reação popular ao agosto de 54, quando fazia cerrada oposição a Vargas, o partido assume a participação política pelos canais representativos e empunha a bandeira da democracia formal”. No entanto, a atitude do PCB com relação a Brizola é ambígua: embora Prestes considerasse Brizola desde 1962 “a principal liderança popular de então”, os especialistas mostram que “há uma notável divergência entre as posições crescentemente agressivas de Brizola e a assunção da democracia por parte da direção do PCB. Tal divergência se acentua no processo de radicalização que redunda no golpe”19.

Com a renúncia do ministro da Educação, em outubro, a FMP rompeu com a política de conciliação do governo, denunciando sua hesitação em implementar uma política popular. Brizola, por sua vez, lançou, através de rede nacional de emissoras de rádio, os “Grupos dos Onze” para lutar pela implantação das reformas de base e a “libertação do Brasil da espoliação internacional”20. Todo esse processo radicalizado, inclusive pelas divisões internas da esquerda, desembocou no comício de 13 de março para pressionar o Congresso a aprovar as reformas de base. Na ocasião, na presença do presidente da República, Brizola questionou em seu discurso: “Se os poderes da República não decidem, por que não transferimos essa decisão para o povo, que é a fonte de todo o poder?” O desenlace desse processo de radicalização provocativa – como se não houvesse risco de intervenção dos militares diante do propalado “esquema militar” de sustentação ao governo – será o golpe militar de 1964 e 21 anos de ditadura.

O exílio uruguaio e a reconversão socialdemocrata

Durante os dois primeiros anos Brizola articulou conspirações contra a ditadura militar. Essas ações insurrecionais desconectadas fracassaram por diferentes razões. O governo militar sempre pressionou o governo uruguaio para expulsar Brizola. Este decide confiná-lo, de 1965 até 1971, na cidade balneária de Atlântida. A partir de 1967, a avaliação de Brizola era de que o regime militar estava consolidado e abandona, então, as ações armadas, inclusive as ligações com Cuba, embora ainda rompa politicamente com Jango, denunciando as articulações da Frente Ampla com Lacerda e JK.

A fase politicamente mais importante do exílio começou com sua expulsão pelo governo uruguaio, em setembro de 1977, sob a alegação de que violara as normas de asilo. Sua ida para Nova York foi legitimada pelo governo de Carter em nome de uma política de direitos humanos. Essa mudança foi marcante para a evolução política de Brizola e sua visibilidade internacional: “Reconciliou-se com o governo dos Estados Unidos, reconhecendo erros recíprocos do passado e declarando-se socialdemocrata e ocidentalista, como um político qualquer da civilizada Europa do Centro-Norte”21.

Sua mudança para Lisboa no início de 1978 aproximou-o do primeiro-ministro socialista Mário Soares e viabilizou sua circulação nas reuniões da Internacional Socialista. O radical Brizola transformava-se, pouco a pouco, num respeitável socialdemocrata europeu que se preparava para retornar a seu país com um novo projeto político. Brizola promoveu, em Lisboa, uma primeira reunião de trabalhistas e socialistas brasileiros de diversas origens ideológicas (trabalhistas, socialistas, cristãos e marxistas sem partido) e oriundos do México, da Argélia e da Europa para discutir a formação de um novo PTB à luz da nova realidade internacional. A partir de sua ida para o Hemisfério Norte, Brizola desenvolve contatos com exilados brasileiros em várias partes do mundo. Estabelece em Portugal uma espécie de base para encontros com personalidades políticas internacionais, viaja para França, Suécia e Alemanha: “Como resultado desses contatos, Brizola acaba por ser convidado a tomar assento, como representante do Brasil, na Internacional Socialista, inicialmente como observador e depois como membro efetivo daquela instituição”, da qual participavam Brandt, Mitterrand, Soares, Gonzáles, Palme. Tal reconhecimento político reforçou em Brizola “sua posição de democrata vocacionado para questões sociais, sem comprometimento, por outro lado, com o marxismo ou com as teses revolucionárias”22.

Em abril de 1979 Brizola encaminhou o requerimento do registro do partido acompanhado de manifesto e programa. Em junho de 1979 realizou-se o Encontro de Trabalhistas do Brasil com Trabalhistas no Exílio com o objetivo de discutir a reorganização do PTB. Brizola defendeu que “o novo trabalhismo brasileiro contempla a propriedade privada condicionando seu uso às exigências do bem-estar social, a intervenção do Estado na economia como poder normativo e uma nova proposta sindical baseada na liberdade e autonomia sindicais”. Tudo isso convergindo para a “sociedade socialista democrática” e que no Brasil “o caminho do socialismo passa pelo PTB”. Apesar das disputas sobre o perfil ideológico do novo partido, segundo um dos atores do processo, “o encontro de Lisboa demarca uma visão. Incorpora-se a idéia de socialismo democrático que Brizola conseguiu ainda transformar em trabalhismo. O trabalhismo como versão e caminho brasileiro para o socialismo”23.

A volta

Com a anistia, Brizola retornou ao Brasil pela tríplice fronteira da Foz do Iguaçu (PR), em 6 de setembro de 1979. Na data da Independência discursou em São Borja diante do túmulo de Getúlio e seguiu para o Rio de Janeiro, onde foi recepcionado por seus seguidores. A escolha da antiga capital federal como centro de sua atividade política tem um sentido ambíguo: resgata, por um lado, sua própria biografia política associada à consagradora votação que recebeu como deputado federal antes do golpe militar; e representa, por outro, uma opção nostálgica de rememorar um espaço político que perdeu sua centralidade do passado24.

Esses fatos buscaram restabelecer os elos políticos com a memória de um passado interrompida brutalmente pelo golpe militar, trazendo em seu novo ideário a herança fragilizada da socialdemocracia em crise25. Era o reencontro de um personagem que trazia a memória reelaborada pela longa experiência do exílio para um país que havia também mudado profundamente. As sociedades brasileira, chilena e argentina, sob as ditaduras, com graus diferenciados de repressão e censura, sofreram os efeitos desagregadores dos regimes autoritários e buscaram novos caminhos nos espaços conquistados ou concedidos por suas transições políticas.

No caso brasileiro, a “dictablanda” 26, que permitiu o funcionamento restrito mas efetivo de algumas práticas políticas proibidas nos vizinhos do Cone Sul (eleições, partidos e Congresso), criou espaços para a ação da Igreja, com um discurso progressista e comprometida com os direitos humanos e sociais; a reorganização do sindicalismo através de novos espaços de luta, especialmente no ABC paulista; o rearranjo partidário e o surgimento de novos partidos, em particular o processo que deu origem ao PT, articulando novos setores sociais e aglutinando tendências político-ideológicas dispersas, sob a liderança de Lula. Mas, como em política os espaços vazios são ocupados, Brizola encontrou para seu projeto partidário vários obstáculos no campo da própria esquerda: de um lado, os setores que se encontravam abrigados no MDB, ligados ou não ao PCB, que se mantiveram no PMDB e viam no “brizolismo o fantasma do passado que precisavam exorcizar do cenário político brasileiro”; de outro, os setores que se abrigaram no PT (ou em partidos mais radicais), que reunia boa parte da sociedade civil e dos intelectuais e via no “brizolismo a encarnação do passado com o qual pretendiam romper”27.

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Com a extinção do bipartidarismo, Brizola retomou a reorganização do PTB, lançando-o oficialmente em Cruz Alta (RS) em 15 de dezembro. Em maio de 1980 o TSE votou a concessão da legenda em favor do grupo trabalhista de Ivete Vargas. Diante do impacto da decisão, Brizola a denuncia como manobra “golberiana” e em maio realiza no Rio o Encontro Nacional dos Trabalhistas, ocasião em que foi sugerido o nome de Partido do Trabalhismo Democrático (PTD). Na assembléia dos fundadores, porém, ficou decidido que a legenda seria Partido Democrático Trabalhista (PDT).

O projeto político de Brizola, apoiando-se, como no passado, numa estrutura partidária, estava claramente direcionado para um alvo maior: a Presidência da República. A questão que se colocou desde logo era: qual seria o alcance político nacional do brizolismo? A imagem do esquerdista radicalizado e do organizador de ações guerrilheiras ficou no passado e surgia agora a figura do novo líder adaptado às exigências da redemocratização em curso que trazia como capital as experiências acumuladas, a maturidade política e o reconhecimento internacional. Era indiscutivelmente, no vazio das lideranças nacionais exiladas, o mais qualificado a aspirar ao papel de estadista. No entanto, os limites nacionais do brizolismo, com uma implantação regionalizada, acabaram frustrando suas ambições.

Novamente escolhe o cenário político do Rio de Janeiro para reconstituir sua força político-eleitoral e estabelecer as bases para seu objetivo maior. Sua candidatura, em 1982, à sucessão de Chagas Freitas foi aceita “para oferecer uma alternativa verdadeiramente democrática ao povo fluminense”, considerando-se “o único representante da oposição autêntica, sem cumplicidades”. Eleito, realiza um governo em que retoma as velhas prioridades do passado: com Darcy Ribeiro implanta os CIEPs, destinados à educação em tempo integral das crianças das áreas periféricas. Mas, no debate nacional, reluta em retomar o tema da “reforma agrária”, porque o considera carregado de conteúdo ideológico, e não consegue fazer avançar o sindicalismo baseado na autonomia sindical. Aproveitando a visibilidade e o bom desempenho de seu primeiro governo, candidata-se em 1989 à Presidência da República. Este foi o momento em que esteve mais próximo de seu objetivo, mas foi derrotado por Lula na disputa pelo segundo turno com Collor.

A partir dessa derrota, começam a declinar suas possibilidades devido às limitações nacionais da implantação do PDT, do personalismo do seu presidente e dos conflitos internos do partido. Retorna em 1990 ao governo do Rio de Janeiro, cujo desempenho foi menos reconhecido pela população carioca, mas lança-se à Presidência em 1994, obtendo 3,18% dos votos, e, em 1998, diante da inviabilidade eleitoral de sua candidatura, volta à astúcia: decide associar-se como candidato a vice na chapa encabeçada por Lula. Fica claro, ao final dessas sucessivas tentativas frustradas, o real limite de seu projeto político diante de novas forças oposicionistas em ascensão.

Epílogo

Morreu solitário o líder em declínio. A herança do brizolismo corre o risco de se desagregar pelos conflitos internos entre os potenciais herdeiros políticos. Esse foi também o destino do segundo peronismo. Encerra-se agora, de fato, o ciclo do varguismo com o desaparecimento do último líder com visibilidade nacional. Enquanto estava vivo sua capacidade de recuperação política surpreendia a todos: “Diversas vezes a morte do brizolismo foi anunciada”, mas “como que magicamente Brizola retornou, após cada uma dessas ocasiões, retomando o tom combativo e polêmico que sempre foi a sua marca”. Não se pode deixar de reconhecer num olhar retrospectivo que “a história da Nação confunde-se com a tradição trabalhista (daí a Carta Testamento de Vargas e a obra de Pasqualini funcionarem como documentos fundadores). Tradição de um passado irrealizado, mas que, de qualquer modo merece ser evocado, pois seu fracasso deveu-se a forças poderosíssimas”28.

Brizola já havia compreendido, com o declínio eleitoral pós-eleição presidencial de 1989, que seu projeto nacional estava se esgotando. Jogou sua última carta aliando-se ao PT, convencido de que o PDT havia cumprido seu ciclo e seria sucedido pelo PT. Diante do túmulo de Getúlio, Brizola passou pública e simbolicamente o bastão a Lula29.

Após a eleição presidencial de 2002 – em que apoiou Lula no segundo turno tal como o fizera em 1989 –, iniciou uma campanha de críticas ao governo eleito cobrando ações coerentes dentro de sua perspectiva política. Impotente diante dos fatos, optou pela solidão amargurada, aprofundando seu isolamento político. Mas ao que tudo indica estava ainda negociando o último atalho que restava ao guerreiro cansado: a disputa da prefeitura do Rio em 2004. Ao sair da cena inesperadamente para entrar na História, o destino permitiu que o impacto de seu enterro, como no suicídio de Getúlio, provocasse uma retribuição simbólica a um grande líder da história republicana. A morte real e solitária o poupou talvez da dolorosa morte política que ele não mereceria por sua trajetória de lutas e de coerência política.

A “teoria dos ciclos partidários”30, fruto da intuição de Brizola sobre o esgotamento do partido que consumiu suas melhores energias políticas, já era uma morte anunciada. Se o brizolismo estava em crise, esta se aprofundará com o desaparecimento do personagem político Brizola, que, por sua perspicaz capacidade crítica – com erros e acertos –, sempre foi uma referência respeitada por gregos e troianos, e certamente a cena política brasileira se empobrecerá.

Hélgio Trindade é professor titular de ciência política, ex-reitor da Universidade Federal do Rio Grande do Sul e presidente da Comissão Nacional de Avaliação da Educação Superior (Conaes/MEC)

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