Internacional

Clima político em franca degradação favoreceu a formação de missão de paz da ONU no Haiti

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Em 29 de fevereiro de 2004, o Conselho de Segurança da ONU, respondendo à solicitação do presidente Boniface Alexandre, recentemente instalado no lugar de Jean Bertrand Aristide, destituído, autorizava, pela Resolução 1559, o envio ao Haiti de uma força multinacional interina.

Pela mesma resolução, o conselho instituía a substituição, a partir de 1o de junho, dessa força por uma missão internacional de estabilização, cujo mandato e cuja duração seriam definidos posteriormente, num prazo de sessenta dias. A resolução recebia o apoio unânime dos membros do conselho, reunidos sob a presidência da República Popular da China, que, de maneira inusitada, deu seu aval, no seio do Conselho de Segurança, a uma intervenção direta de tropas estrangeiras num Estado membro.

A medida referente ao Haiti tomava assim um caráter especial, já que não correspondia a uma situação clássica capaz de provocar tal ação – embora houvesse sido precedida por uma extensão publicitária em que as TVs do mundo inteiro mostravam imagens pouco usuais de violência repressiva e de ações armadas, particularmente em Gonaives, que faziam temer a guerra civil ou um verdadeiro genocídio. Além disso, ocorria num marco de crise política de longa duração e de uma situação em que, pela segunda vez em dez anos, as Nações Unidas deveriam intervir não para conduzir à paz – já que não se tratava de uma situação de guerra –, mas para garantir a segurança e as condições de funcionamento democrático num Estado membro.

Tratando-se de um país da América Latina e, ainda, de uma velha república independente, essa intervenção não deixa de chamar a atenção dos analistas para suas causas profundas. Sobretudo quando esse dossiê correspondia à OEA, que tinha como tarefa, desde a Cúpula das Américas em Quebec em 2001, dar prosseguimento ao contencioso entre a oposição política e o governo do Haiti. Sobretudo quando o país, neste ano trágico, celebrava seus 200 anos como nação independente.

Crise do Estado

A decisão adotada pelo organismo internacional parecia corresponder ao reconhecimento do “direito de ingerência” preconizado há alguns anos por algumas nações como apropriado para situações excepcionais de crise e de incapacidade do Estado de assumir o poder ou de enfrentar um conflito agudo. Correspondia ao que parecia ser uma situação suscetível de desembocar no caos ou em uma guerra civil virtual. As imagens de vários grupos armados, difundidas em escala internacional, levaram a imprensa ao Haiti para “contemplar” as cenas da “Armada canibal” e outros espetáculos de sangue.

No plano diplomático, a ONU havia sido suficientemente informada pelos antecedentes desse verdadeiro colapso para não se sentir envolvida. Efetivamente, em 1994, havia intervindo no Haiti para substituir as forças dos Estados Unidos, de aproximadamente 20 mil homens, que haviam desembarcado na missão de “restauração da democracia” patrocinada diretamente pelo presidente norte-americano Bill Clinton. As tropas ficaram por volta de dois anos, e desde a crise eleitoral de 2000 – conseqüência das eleições fraudulentas que instalaram uma legislatura e o próprio Aristide no po­der – a OEA e, mais recentemente, a Caricom têm sido parte integrante das negociações e outras intervenções visando normalizar o panorama político. Essas e outras instituições mantinham o secretariado-geral informado das violações dos direitos humanos pelo regime de Porto Príncipe, das dificuldades na busca de um compromisso entre o poder e a oposição e da deterioração da situação em termos de governabilidade, de respeito às regras do Estado de Direito e do agravamento das condições de vida econômica e social da população.

Assim, a degradação acelerada do clima político, no final de 2003, com manifestações populares maciças e a irrupção de certos grupos armados, acabou por favorecer a argumentação de alguns Estados membros, particularmente a França, em prol da eventual participação da ONU em uma missão humanitária ou de manutenção da paz no Haiti. Efetivamente, a violência desatada pelos chimères, homens dos mafiosos a serviço de Aristide, punha na ordem do dia a questão do “direito de ingerência”. Os assassinatos e execuções de toda sorte, em um cenário de aumento da miséria, se referiam ao conceito de “população em perigo”, incitando à ação internacional. Tal decisão emanava da sistemática destruição das instituições que alcançou sua expressão mais significativa com o desmembramento da polícia nacional, totalmente avassalada ou desmoralizada. O Estado se mostrou incapaz de assumir as responsabilidades e exigências da ordem democrática.

O Conselho de Segurança da ONU podia referir-se às ameaças que tal situação implicava para as vidas e os bens no Haiti e para a “segurança da região”. Sobretudo porque um clima de fim de reinado nascia da combinação de eventos importantes: a crescente mobilização da população (partidos políticos, sociedade civil, estudantes etc.) pedindo a saída de Aristide, a presença inesperada de grupos armados no norte do país e na região limítrofe com a República Dominicana, as críticas acerbas da imprensa, o próprio questionamento da legitimidade do governo por certas instâncias internacionais. A população, em um clima excepcionalmente tenso e frente a ameaças e perigos criados pelas próprias condições da queda do bárbaro regime, que pôs em marcha um plano de represálias, teve de assistir, entre alívio, humilhações e indignações, à chegada das tropas estrangeiras que restabeleceriam a ordem.

Tal cenário não era de modo algum uma novidade. Efetivamente, em 1915, diante da violência e do caos que imperavam no Haiti, a infantaria dos Marines dos Estados Unidos havia desembarcado em Porto Príncipe, e o saldo da intervenção foram dezenove anos de ocupação. Tratava-se de “restabelecer a ordem democrática” no Haiti. Isso, em um contexto regional de expansionismo e ingerência. Cinqüenta anos depois, em 1965, em um contexto regional de democratização generalizada e em um ambiente marcado por um regime de força instaurado pelos militares, as tropas dos Estados Unidos, com o patrocínio das Nações Unidas, haviam intervindo com o objetivo de “restaurar a democracia”.

Dez anos mais tarde, o intervencionismo toma a forma de uma ação internacional contra o Estado mafioso, gerador de terrorismo e de anarquia, que ameaçava realizar um banho de sangue sobre uma população pacífica.

Em continuidade, se projeta como fator permanente a vigilância da grande potência sempre atenta e pronta a corrigir qualquer desordem na sua vizinhança. Na ocasião, no entanto, tal preocupação era compartilhada com a França, que, além de qualquer atitude competitiva, manifestava uma clara coincidência de interesses. No fundo, tal coincidência parecia corresponder a um imperativo da globalização. Dado que o Haiti, devido a seu atraso econômico e social, assim como ao arcaísmo de seu sistema político, constituía uma sorte de “dissidência histórica e geográfica” insuportável, segundo a lógica dessa globalização, recursos adequados deveriam ser mobilizados para incorporá-la na normalização dos mercados, da força de trabalho, dos modos de vida e dos valores contemporâneos.

Tal continuidade se refere em definitivo à crise do Estado haitiano, que, durante o último século, não pôde lograr a adequação de sua estrutura, seu funcionamento, seus métodos e seus resultados, às exigências do mundo moderno. No terreno político, econômico, social e cultural, o Estado haitiano parece prolongar, até o dia de hoje, o século 19 latino-americano, marcado pela autocracia, o regime forte que fecha os olhos às exigências das maiorias, em termos de democracia, de justiça, de progresso e de desenvolvimento. Esse Estado, expressão de uma oligarquia precária (de militares, de homens de negócios ou de políticos), apesar das influências de modernismo provenientes do exterior sob a forma de capital ou de modelo, não conseguiu dirigir a sociedade nem estimular as forças motrizes suscetíveis de assegurar seu avanço. Sem legitimidade, sem representação real dos produtores ou dos trabalhadores, sem credibilidade entre os cidadãos, o Estado se mantém débil em sua função de organização da sociedade e forte enquanto opressor, funcionando sobre uma base de extorsões e de violência.

Esse déficit do Estado, de maneira repetitiva, provoca pulsações em meio às categorias sociais mais avançadas de uma oposição ilustrada, mas sem chegar a reverter o vapor e gerar uma direção política que possa impulsionar a democracia, o desenvolvimento e o progresso. Daí, um bloqueio contínuo, um embaraço interminável, uma transição que não acaba. Tal crise de direção, ou, melhor dito, tal crise de hegemonia, não podendo ser resolvida num desenlace violento de relação de forças ou de compromisso, conduz uns e outros à tentação de buscar o apoio de forças estrangeiras para equilibrar e reverter a situação que a dinâmica das forças locais não permite resolver.

Questionamento do poder pessoal

Jean Bertrand Aristide surgiu na cena política em 1990 como líder de grande popularidade, sobretudo em meio aos despossuídos. A revanche dos setores conservadores haitianos tomou a forma de um golpe de Estado. Democraticamente eleito, foi alijado do palácio durante três anos, nos quais viveu em Washington preparando seu regresso, realizado sob os auspícios dos Estados Unidos e da ONU.

Dez anos depois, em 2004, sua popularidade e as mudanças que anunciava se evaporaram. Mas, por outro lado, soube usar todos os atributos da democracia para instaurar um poder antidemocrático baseado no assassinato político, na corrupção, no narcotráfico, na utilização de velhos métodos de mentira, de violência, de simulação e de intimidação.

Tal realidade foi-se impondo cada vez mais ao povo, sobretudo a partir das eleições do ano 2000, que, organizadas de maneira ilegal, suscitaram uma crise pós-eleitoral sem fim... Esta, depois de mais de três anos de questionamento, de resistência e de combate democrático, comportou, em última instância, a derrocada de Aristide.

De fato, regressando do exílio com um amplo apoio da população e sustentação ilimitada da comunidade internacional, o ex-padre de St-Jean Bosco mostrou sua impotência em fazer bom uso dos imensos recursos de que podia dispor. Efetivamente, a comunidade internacional havia ofertado uma soma de aproximadamente US$ 2 bilhões, em empréstimos e doações. Esse montante esperava que os projetos apropriados para ser posto à disposição do governo e da população. A má gestão comprometeu essa possibilidade de recuperar a economia e de garantir o êxito de um projeto que havia suscitado tanta esperança nos meios populares. Ao mesmo tempo, no plano político, em vez de se abrir e atrair outras categorias sociais, o regime retomou sua linha demagógica e populista, recorrendo mais e mais à força.

A continuidade desse poder havia sido assumida por René Préval, que o sucedeu, jogando plenamente no papel de marionete. Cumprindo à risca os desígnios de seu tutor, continuou sua política de violação dos direitos humanos, de nepotismo, e todo um jogo maquiavélico destinado a garantir-lhe o regresso.

O repúdio a esse reino anarcopopulista começou a manifestar-se nesse período (1995-2000). Provinha da Organização do Povo em Luta (OPL), representando a ramificação mais bem organizada do movimento que havia apoiado Aristide. Sua representação parlamentária, com maioria relativa na Câmara dos Deputados (35 de 83) e no Senado (nove de 27), impôs ao duo presidencial Aristide-Préval um primeiro-ministro da oposição, Rosny Smarth. Este teve todas as penas do mundo para funcionar no marco previsto pela Constituição, vendo-se constantemente fustigado pelas jogadas do Executivo presidencial e das “organizações populares”, manipuladas nos corredores do palácio.

O Parlamento empreendeu a freada das violações da ordem republicana e outros desvios próprios do poder absoluto e populista pelo qual começava a funcionar o presidencialismo, respaldando a impunidade e os abusos permanentes contra os cidadãos.

Já nesse nível, as exigências da OPL em favor da institucionalização, da modernidade, do respeito à lei e à Constituição configuravam todo um pólo de atração para o conjunto da população. A capacidade de convocação, de mobilização, e a própria credibilidade do poder caíam. A propaganda governamental se esforçou então em atribuir as ações da oposição às influências provenientes do antigo regime duvalierista ou de setores do exterior.

Em abril de 1997 abortou-se uma tentativa do presidente Préval de impor sua vontade durante as eleições parciais para o Senado, no qual a oposição tinha todas as chances de reforçar sua maioria. As denúncias da OPL contra esse comportamento antidemocrático surtiram efeito, exigindo respeito às regras do jogo, alimentando um vasto movimento reivindicativo dos setores populares, cada vez mais desconfiados e críticos frente às promessas não cumpridas pelo poder. Esses setores, no entanto, freados, intimidados, confundidos pelos métodos do populismo, tardavam a expressar em ações autônomas ou propriamente de apoio a uma oposição então perseguida e caluniada.

Apesar de tudo, a tenacidade dessa oposição, a demissão do primeiro-ministro Smarth e a impossibilidade técnica e política de substituí-lo suscitaram apoio em todo o país, assim como as ações dos parlamentares e outros setores da imprensa e de instituições civis, em favor do respeito ao Estado de Direito. Tal situação levou o presidente Préval a dissolver o Parlamento em dezembro 1998, demonstrando assim a incapacidade de seu regime de poder pessoal coexistir com um Parlamento independente. Mostrou assim mesmo sua negativa em aplicar de fato os prescritos da Constituição, prevendo o funcionamento de um Executivo bicéfalo conforme as necessidades do pluralismo.

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A emergência de uma alternativa

Em 2000, parece ainda mais evidente a impossibilidade do Estado, corroído por todos os vícios, de garantir a gestão do país e, ao mesmo tempo, coabitar com uma oposição democrática. Essa incompatibilidade se fez notória na ocasião da convocação e realização das eleições legislativas e presidenciais. Efetivamente, o conflito pós-eleitoral a que conduziu, expressão de uma crise política e social muito mais profunda, traduzia o arcaísmo das estruturas e das instituições, assim como a natureza das dificuldades inerentes ao não-desenvolvimento. Aprofundou-se à medida que se expressava a vontade enferma do Executivo de impor à nação, às prefeituras, a um parlamento, um presidente, enfim, de monopolizar o Estado a serviço de um só homem.

Os partidos de oposição, que tinham todas as possibilidades de ganhar as eleições legislativas, foram despojados de todos os seus postos ganhos, extorsão que se estendeu ao poder judicial e às diversas instituições do Estado, incluindo a polícia. Também o ambiente de repressão acompanhando as ações de força contra toda oposição favoreceu a determinação e a ação unitária dos partidos políticos de diversas tendências (socialdemocrata, democrático-popular, cristãos comprometidos, conservador moderado), levando-os a reunir-se no seio da Convergência Democrática. Essa coalizão patriótica, questionando a legitimidade do governo e denunciando suas estripulias, minou sua credibilidade no seio da população, estimulando a resistência cidadã.

A comunidade internacional, por sua vez, particularmente a OEA, dando seguimento às contestações cidadãs, teve de promover negociações entre as partes. Negociações laboriosas, durante as quais o secretário-geral e seu adjunto organizaram mais de vinte visitas ao Haiti. No transcurso dessa missão, o Conselho da OEA e a Assembléia Geral da instituição adotaram importantes resoluções, que, embora subscritas pelo governo haitiano, transformaram-se em letra morta, devido à vontade deste de impor seu ponto de vista e descartar todo compromisso.

A dinâmica de contestação e de negociação impulsionada pela Convergência conduziu gradualmente à tomada de consciência e à ação militante de diversos setores da sociedade civil. Estudantes, jornalistas, organizações de direitos humanos, igrejas, associações de mulheres e o setor empresarial se levantaram para pedir respeito aos direitos humanos e aos compromissos consentidos pelo Estado haitiano. Assim, a oposição se consolidou, apesar da vontade das autoridades de afogar toda crítica, de manipular as massas e de amordaçar a imprensa. A cidadania parecia comprometida, e as autoridades mostraram-se cada vez mais conscientes da natureza desse poder e do fato de que utilizavam, além dos mecanismos e recursos públicos, os piores instrumentos da autocracia, assim como potentes redes internacionais ligadas a sua participação no tráfico de drogas.

O Estado mafioso, a apresentar-se em nome do povo e da causa popular, se havia convertido em um instrumento eficaz a partir do não-direito, do enriquecimento ilícito, da impunidade, da simulação de seus objetivos sob um véu populista e constitucionalista. Havia-se dotado de um poder criminal enorme, cada dia mais distante da sociedade e oposto ao progresso e à liberdade. Daí, a dicotomia tornando-se cada vez mais perigosa entre este Estado e a nação. Assim, o aparato estatal a serviço de Aristide, dos barões da droga, dos aproveitadores do regime e de seus aliados haitianos e estrangeiros demonstrava que não existia mais que um objetivo, garantir a impunidade, manter sua dominação e eternizar-se no poder.

Frente a essa realidade, a nação, em um processo difícil de tomada de consciên­cia, de refundação de sua organização social, começava a definir seu projeto de construção das bases materiais correspondentes a sua necessidade de desenvolvimento e de democracia.

O ano 2003 foi de ampliação e impulso sustentados pelos setores progressistas. A Convergência Democrática, que reunia as forças políticas da oposição, imprimiu uma orientação unitária a todos os que trabalhavam em favor da mudança. Constituía, ao mesmo tempo, a parte contrária do governo nas negociações com a comunidade internacional, com vistas a obter um compromisso para sair da crise.

A ação da Convergência foi reforçada e renovada por cidadãos vindos da sociedade civil: milhares de sócios das cooperativas de crédito, despojados de sua poupança por ladrões oficiais, os estudantes, reclamando a autonomia da universidade e o direito de manifestar-se, as igrejas, associando-se às reivindicações da população e reclamando a boa governabilidade e o fim da corrupção. A sociedade civil organizada, sob o nome de Grupo dos 184, empreendeu uma campanha de participação cívica na qual se encontraram os elementos mais dinâmicos das instituições privadas, dos reagrupamentos de universitários, das associações de mulheres, das organizações de defesa de direitos humanos etc. A mobilização desses setores levou o conjunto da população a manifestar-se contra o regime, com o efeito de exasperar a barbárie dos órgãos repressivos contra esses ativistas, particularmente contra os estudantes universitários.

A partir daí o movimento cívico, reagrupando a sociedade civil e grupos políticos, deu lugar a manifestações de rua que reuniam mais de 100 mil pessoas. As bases de consenso social haviam se encontrado para combater a ditadura. O esquema e o conteúdo da transição a um regime democrático e de garantia dos direitos humanos se afirmavam, e com esse vasto movimento de sociedade se desenhavam as linhas de um projeto alternativo de caráter republicano, podendo conduzir à realização de eleições.

No início de 2004, ano de celebração dos 200 anos de nossa independência, tal mobilização e o estado de espírito combativo da população apareceram claramente como a expressão de uma mudança em processo. Provocaram a derrubada do mito da popularidade absoluta de Aristide, demonstrando também a fraca capacidade de convocação do líder e do partido oficial. Esses fenômenos políticos levaram à ruptura de toda a lógica de funcionamento do sistema baseado na repressão, na intimidação, na manipulação e no imobilismo dos cidadãos. Estes, então, desafiavam a brutalidade dos policiais e outros agentes repressores. As instituições de Estado não podiam seguir funcionando, levando à paralisia do aparato de opressão. O povo pedia a saída de Aristide, e essa reivindicação pacífica generalizada exasperava a violência da máquina repressiva. Toda essa luta provocava a desarticulação do sistema.

Era um cenário de derrubada e de implosão de um poder que parecia total e todo-poderoso. Favoreceu, portanto, a entrada em cena de certos setores armados provenientes seja de grupos paramilitares a serviço de Aristide, em dissidência sobretudo na cidade de Gonaives, seja de elementos do antigo exército desfeito em 1995 e refugiados na República Dominicana, que penetraram pela fronteira norte.

No plano internacional, a luta unitária da oposição pacífica e da sociedade civil, particularmente do Grupo dos 184, provocou a ruptura do sistema de alianças subordinado a Aristide com a comunidade internacional. Até essa etapa de resistência do povo e de violência repressiva, ilimitada e criminosa, a maior parte dos países amigos do Haiti, assim como a OEA e a Caricom, continuava a apoiar o governo, a dar-lhe complacência, senão cumplicidade. Referiam-se à sua “legitimidade” enquanto pediam o fim de certas práticas políticas ilegais e o cessar das violações aos direitos humanos.

Com a explosão inesperada do movimento popular e a concertação de tantos setores sociais pedindo a saída de Aristide, a comunidade internacional teve de mudar seu fuzil de ombro. Pela primeira vez, durante a segunda quinzena de fevereiro, personagens importantes dessa comunidade mencionaram a incapacidade do chefe de Estado de garantir a segurança das vidas e dos bens no Haiti e também de garantir a segurança na região do Caribe. Em função desse ambiente, uma companhia privada de segurança dos Estados Unidos, a Steele Foundation, que nos últimos dois anos era responsável pela integridade física de Jean Bertrand Aristide, não recebendo mais as garantias apropriadas das autoridades de Washington, decidiu pôr fim à delicada missão de seus agentes colocados no Palácio nacional.

Gérard Pierre-Charles é cientista social, coordenador-geral do partido Organização do Povo em Luta (OPL) e membro da Convergência Democrática. É candidato ao Prêmio Nobel da Paz

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A intervenção estrangeira

Os dias 1º e 2 de janeiro de 2004 tomaram todo um significado simbólico no processo de constituição do consenso histórico da nação em busca da liberdade e de uma autodefinição conforme suas aspirações, à dignidade humana e ao desenvolvimento econômico e social. Naquela circunstância, o povo haitiano, aferrado, como sabemos, e a que ponto, aos valores de nacionalidade e de uma independência conquistada em condições tão heróicas, em vez de celebrar esse aniversário invadiu as ruas da capital e da província para dizer não à ditadura e pedir a saída do ditador cuja conduta desonrava a nação. A polícia e os grupos paramilitares avançaram contra os manifestantes com uma violência sem igual, deixando um saldo de vários mortos e feridos.

Na ocasião, a Plataforma Democrática, coalizão política em que se reagruparam as categorias sociais e políticas mais diversas, desde os estudantes, as associações patronais, os sindicatos, até as organizações campesinas, ou seja, a oposição política e a sociedade civil, entregou um documento em que se pedia a saída de Jean Bertrand Aristide ao único convidado oficial de alto cargo presente às celebrações, o presidente da África do Sul, Tabo Mbeki.

Em 20 de fevereiro, esse documento servia de base à Plataforma Democrática para reiterar as posições da nação frente às proposições que lhe eram transmitidas por uma delegação internacional de alta hierarquia, composta, entre outros, do subsecretário de Estado norte-americano, Roger Noriega; do ministro canadense de Francofonia, Denis Coder; do ministro das Relações Exteriores das Bahamas; de altos funcionários da OEA, da Caricom e da União Européia. Através dessa delegação, a comunidade internacional renovava seu apoio a que Aristide, chefe de um Estado mafioso, se mantivesse no poder para terminar seu “mandato”, até 7 de fevereiro de 2006, convidando a oposição a subscrever um compromisso que incluía, entre outros, a designação de um primeiro-ministro de consenso. Coisa que a oposição rechaçou.

No fim das contas, confrontados a firmeza da oposição e o desmoronamento do sistema, os sócios internacionais tiveram de reagir no sentido do movimento geral da sociedade. Aristide foi obrigado pela força das coisas a deixar o poder, evidenciando sua derrota política frente ao repúdio do povo.

Assim, o documento da Plataforma Democrática reapareceu, despojado de certos elementos maiores de seu conteúdo. Serviu de referência à nova institucionalidade precária e formal sobre a qual a OEA e a embaixada dos EUA se baseavam desde a saída de Aristide para reconhecer como presidente provisório, segundo o voto da Constituição, o presidente da Corte Suprema, o juiz Boniface Alexandre, e para a instalação de um Conselho de Sábios de sete membros, que deveriam contribuir com a designação de um primeiro-ministro de consenso e de seu governo.

De fato, o Haiti entrava em outra etapa de sua história. Mas o impulso de renovação democrática que queria imprimir o consenso histórico do 1º e 2 janeiro de 2004 à difícil luta do povo para liberar-se do despotismo foi novamente desviado, senão truncado.

Enquanto isso, havia desembarcado no país a força militar multinacional que Aristide solicitara às Nações Unidas e em declarações públicas, expressando assim seu medo de ser arrasado pela onda de contestação generalizada, bem como sua obsessão de manter-se no Palácio sob qualquer circunstância. Essa solicitação oficial foi reiterada pelo presidente Boniface Alexandre. Assim, mediante essa intervenção, deu-se um curto-circuito no processo inusitado em direção ao consenso e à determinação histórica, pelo qual a nação haitiana havia empreendido promover, na unidade dos diversos setores progressistas, uma verdadeira liberação.

Cem dias depois do desembarque da força multinacional enviada pela ONU ao Haiti para evitar a guerra civil ou o banho de sangue, o país entra, paulatinamente, em sua normalidade. O clima de violência extrema levada a cabo pela máfia do poder de Aristide sai deixando graves danos materiais e sobretudo um forte traumatismo espiritual à nação. A paz volta. Os contingentes militares dos EUA, da França, do Canadá e do Chile não puderam proceder a nenhuma ação armada contra os capangas do Palácio ou os “rebeldes em armas”. A população, depois de ter assistido à chegada das tropas, viu-as desfilar com suas máquinas sofisticadas nas ruas. Mas, na verdade, essa presença estrangeira, em sua função de contenção, causava nos haitianos um gosto amargo, um aviltamento.

Embora a segurança parecesse ser a motivação primeira dessa operação, ela não deu lugar a nenhum desarmamento, nem dos ex-operadores da violência estatal nos bairros populares, nem nas regiões do norte, onde os postos de polícia estão ainda controlados pelos antigos militares. Estes não mostram nenhuma capacidade operacional. Sua presença nessa parte do país, onde haviam sido acolhidos favoravelmente, transformou-se numa fonte de violações dos direitos humanos e também de preocupações quanto ao estabelecimento de um clima indispensável à realização das eleições.

Por sinal, estas constituem o principal em jogo no momento. Elas devem permitir o exercício efetivo do voto universal e a plena aplicação da Constituição de 1987, e conduzir o país ao Estado de Direito. Devem desembocar, no fim das contas, num clima que possa favorecer a boa governança, o investimento externo e o desenvolvimento econômico. Elas serão impossíveis se não forem dados passos sensíveis em matéria de segurança e com o desarmamento desses grupos, que podem tornar-se incontroláveis.

De sua parte, os setores progressistas que, no quadro da Convergência Democrática, combateram pela recuperação da legalidade continuam a construir o instrumento unitário que possa concretizar a busca de consenso e de mudança que pede a nação.

A simples presença operativa da força de estabilização da ONU que se encontra no Haiti, poderá ela contribuir de maneira eficaz e duradoura para responder aos desafios do momento? Assim como os outros, fruto da exclusão histórica das maiorias e da terrível degradação social e econômica que se encontra na origem desta crise? Essa questão fundamental suscita elementos de ceticismo que devem ser levados em conta pela ONU, cuja intervenção no Haiti em 1994, para “restaurar a democracia”, acabou definitivamente nesse impasse atual. Ela é particularmente pertinente para o Brasil, que está no comando dessa operação e também assume uma responsabilidade latino-americana quanto a seu sucesso.

Na perspectiva das novas funções do organismo internacional, no contexto deste mundo bipolar, assim como das contradições e desafios que se impõem em termos de sobrevivência para as nações e para a humanidade, é indispensável que, além do objetivo de “garantir a paz”, essa presença estrangeira constitua um aporte real em termos de cooperação internacional à solução dos grandes problemas do Haiti. Uma tal exigência interpela não somente o direito de ingerência, mas o dever de solidariedade das grandes potências. Ela põe à prova a sensibilidade dos países do continente conscientes do que significou a contribuição do Haiti à luta emancipatória dos povos da América Latina, do que custou a esta nação abrir o caminho de igualdade num mundo dominado pelo colonialismo e pelo racismo e também do que custa aos haitianos viver essa experiência de intervenção no contexto de 200 anos de sua independência.

Gérard Pierre-Charles

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