Sociedade

No Instituto Cidadania desenvolveu-se o mais abrangente programa de estudos e discussões já realizado no país com vistas a uma política nacional de juventude

[nextpage title="p1" ]

Há fortes evidências de que, em seu tortuoso processo de afirmação da democracia, o Brasil tenha finalmente chegado, em 2004, ao ponto de acúmulo que permite abordar a temática juventude com nítido salto de qualidade.

O mérito por esse patamar novo deve ser atribuído a inúmeros atores sociais: demandas diversificadas dos próprios movimentos de juventude; trabalho perseverante de organizações - nacionais e internacionais - que se dedicam a essa área; iniciativas de gestão pública introduzidas em determinadas esferas do Estado a partir dos anos 1990; reflexões e pesquisas desenvolvidas por uma legião de estudiosos voltados ao terna. Muitos outros responsáveis poderiam ser citados.

Regina Novaes, uma dessas pesquisadoras reconhecidas, gosta de falar numa sucessão de temas da vez. Nas últimas décadas, observou-se a emergência das questões da mulher, da luta do negro, dos novos sujeitos históricos, dos direitos da criança. Teria chegado a hora da juventude.

Com efeito, já nos anos 1970, o desafio político central contido no enfrentamento do regime militar envolvia um largo feixe de eixos. Núcleos densos como o exercício do voto, liberdade de organização partidária e garantia de direitos sindicais eram os alvos estratégicos das mobilizações na sociedade civil. Mas estas também miravam outras metas essenciais na configuração da democracia, corno a igualdade nas relações de gênero e a superação da herança maldita do sistema escravista, materializada na opressão racial.

Nas duas décadas seguintes, algumas vezes em evolução simultânea, o país foi descobrindo ou reforçando novas agendas transformadoras nesse itinerário de construção democrática: responsabilidade social perante o meio ambiente, reforma agrária, direitos das crianças, diversidade sexual, combate à corrupção e exigências da ética na política, diga-se de passagem, bandeira a ser retomada com extrema urgência. E se poderia lembrar várias outras pautas direcionadas, amplo senso, à extensão dos direitos de cidadania.

Nessa seqüência histórica, vêm crescendo nos últimos anos, em vigor e ritmo, o interesse, os estudos, os debates, as iniciativas e as mobilizações envolvendo um contingente especial de brasileiros, que soma 34 milhões de pessoas, conforme o recorte das Nações Unidas arbitrando a faixa entre 15 e 24 anos para demarcar a juventude. Especial porque marcado por contraditórios aspectos de singularidade e diversidade, e também porque nele se concentram potencial e energias que o Brasil ainda não soube liberar.

O Projeto Juventude
No Instituto Cidadania, ainda antes de Lula se tomar presidente da República, existia a intenção de abordar esse assunto com profundidade e consistência, à semelhança do que fora feito com os temas moradia, segurança pública e segurança alimentar (Fome Zero), contribuindo para promover a questão ao status de tema político de primeira grandeza. Eleito, ao se desvincular do centro de elaboração política que fundou e coordenou desde 1990, Lula recomendou que fosse esse o próximo alvo central de trabalho do instituto. A orientação foi cumprida com resultados bastante promissores.

De junho de 2003 a agosto de 2004, desenvolveu-se o mais abrangente e dinâmico programa de estudos e discussões já realizado no Brasil com vistas a propor e fundamentar a necessidade de uma verdadeira política nacional de juventude, que se inscreva como marco entre as mudanças estruturais que a sociedade brasileira, por meio do voto, encomendou a Lula e ao PT em 2002.

Batizado como Projeto Juventude, esse trabalho incluiu a realização da mais extensa pesquisa nacional quantitativa já feita sobre o assunto, envolvendo 3.500 entrevistas domiciliares em todo o território nacional, com mais de 150 questões. Desdobrou-se em estudos de pesquisa qualitativa e envolveu também dez seminários em diferentes estados, vinte oficinas e encontros para discutir aspectos específicos da condição juvenil, além de um seminário internacional com representantes de dezessete países.

Num cômputo geral, quase 4 mil pessoas foram incorporadas diretamente nesse debate nacional, incluindo pelo menos 106 entidades, movimentos e ONGs da sociedade civil, cerca de setenta representantes de órgãos gestores relacionados com a juventude - de ministros a coordenadores municipais -, dezenas de parlamentares dos três níveis federados e 32 especialistas do meio universitário ou de organismos das Nações Unidas como a Unesco e o Pnud.

Além disso, por meio de um site que chegou a receber 10 mil visitas mensais, promoveram-se debates e consultas interativas, organizando-se também um acervo documental (Base de Dados) que cataloga perto de mil títulos sobre a juventude, entre teses acadêmicas, livros, artigos, pesquisas e textos legais.

Processo rico
Os números são expressivos, mas ainda não descrevem a riqueza maior do processo. Do primeiro brainstorm, em junho de 2003, ao momento de entrega dos resultados ao presidente Lula, um ano depois, a constatação de controvérsias em cada esquina do trajeto, bem como da complexidade e pluralidade inerentes ao tema, em vez de afastar os divergentes atores sociais envolvidos no trabalho, serviu como ímã de atração mútua na busca de um campo de consenso amplo, que se mostrou viável sem anular os distintos enfoques filosóficos, políticos ou ideológicos.

Nas mesas de planejamento do programa e em todos os painéis de debate, seguiu-se a metodologia que o Instituto Cidadania vem aperfeiçoando há anos,de reunir, confrontar opiniões e conceber sínteses entre pontas opostas do espectro econômico e social brasileiro. No Projeto Juventude estiveram, lado a lado, em conflituosa convivência democrática, a CUT, o MST e a UNE, além de militantes e representantes oficiais de partidos de esquerda como o PT e o PCdoB.

Mas com idêntica capacidade de argumentar e influir, igualmente interessados no diálogo e na elaboração conjunta, compareceram também ONGs de extração empresarial, siglas tradicionais como Sesc, Sebrae e CIEE e lideranças políticas pertencentes ao campo atual de oposição ao governo Lula. Sem falar da ampla rede de movimentos inovadores e mais recentes de participação juvenil com acento na vida cultural, como o hip-hop ou o afroreggae. Acordo entre todos: é possível buscar sinergia e atuação unificada em torno de um determinado conjunto de formulações.

No começo, o silêncio de alguns convidados mal escondia suas naturais desconfianças. Afinal de contas, não são rotineiros os procedimentos em que segmentos afastados na simbologia direita-esquerda se sentam à mesma mesa e coordenam, juntos, um programa extenso de discussão e elaboração. Mais precisamente, não havia ninguém realmente de direita no programa, mas estavam representadas, de fato, entidades e siglas que são vetores de posicionamentos, metodologias e culturas políticas muito diversificadas.

Quais as desconfianças implícitas? Jogada do PT para envolver movimentos, empresas, gestores públicos de juventude e ONGs no fortalecimento de interesses partidários; armação de uma corrente do PT contra outras; falsa consulta pluralista para no final afunilar como conclusão um script previamente formulado; invasão pelo Instituto Cidadania de um campo de trabalho já meritoriamente ocupado por outras instituições. E muitas mais.

As controvérsias

Logo na primeira reunião para consultar duas dezenas de atores coletivos sobre a viabilidade da idéia de iniciar o Projeto Juventude, Weber Lopes Góes, do Núcleo Cultural Força Ativa, Zona Leste de São Paulo, jogou na mesa uma preocupação central: em qual juventude se estava pensando? Na pequena minoria que a UNE representa, que estuda na universidade? Ou na juventude que está na periferia pobre das grandes cidades? Os dirigentes da UNE presentes contra-argumentaram, também de maneira convincente, discorrendo sobre o papel histórico da entidade. Mas, em síntese, já estava recolocada ali, pela enésima vez, uma dúvida dos que trabalham esse tema no Brasil há muitos anos: políticas universais de juventude, ou políticas de juventude assentadas nos recortes de renda? É cabível falar em juventude brasileira ou melhor usar o plural, juventudes?

Numa reunião seguinte, ainda na fase de formulação genérica do que deveria ser o projeto, o cara-pintada Lindbergh Farias, deputado federal agora eleito prefeito de Nova Iguaçu, introduziu com forte ênfase a necessidade de sugerir ao Brasil a convocação civilista da juventude para campanhas militantes de combate à fome e erradicação do analfabetismo, aproveitando o momento especial vivido pelo país com o governo Lula.

Em contraponto, foram expostas imediatamente as ressalvas de especialistas e militantes da área, condenando certa tradição da esquerda de olhar a juventude unicamente como depositária de um potencial revolucionário a serviço da pátria, ao mesmo tempo em que se descuida de compreendê-la como sujeito portador de direitos não reconhecidos pelo Estado e pela sociedade.

Depois chegaram as primeiras preocupações de entidades diretamente ligadas à defesa dos direitos da criança: lançar agora uma agenda nacional voltada à juventude não resultaria em retirar recursos e atenção de um segmento tão fundamental como é a infância no Brasil? A resposta foi rápida: não poderia haver concorrência entre as duas questões. Simplesmente, tratava-se de assegurar à juventude espaços de discussão e políticas públicas correspondentes ao que o tema criança já vem assegurando por força de lutas vitoriosas como aquelas que resultaram na conquista do Estatuto da Criança e do Adolescente.

As polêmicas se multiplicavam. Qual o papel das ONGs nisso tudo? Não pretenderiam elas ocupar atribuições próprias do Estado, como parte de um maquiavélico plano neoliberal para torná-lo mínimo? E que história era essa de responsabilidade social das empresas, propagandeada por um dos importantes interlocutores no Projeto Juventude, o Instituto Ethos? Não seria mais uma artimanha sofisticada para reforçar mecanismos de multiplicação dos lucros privados?

Aos poucos, ficou satisfatoriamente concertado entre os que assumiram o desafio pluralista contido no Projeto Juventude que dúzias de controvérsias como essa podiam e deviam ser debatidas amplamente nos meses seguintes, mas aceitou-se a aposta de que seria possível firmar um consenso básico apontando as linhas gerais de um novo - talvez o primeiro - encontro histórico da Nação brasileira com sua juventude.

O que foi produzido

O produto final do Projeto Juventude, de fácil acesso direto por meio do site www.projetojuventude.org.br, distribuiu-se por várias publicações, destacando-se com síntese o chamado Documento de Conclusão, de 120 páginas, que teve uma versão inicial para debate e complementações, e depois uma edição consolidada, da qual se extraiu também um resumo para divulgação maciça.

Enquanto o Documento de Conclusão está vazado no padrão próprio das propostas de políticas públicas, que evita digressões teóricas ou polêmicas conceituais, vários outros volumes do chamado produto final cumprem tal finalidade a contento.

Assim, a Editora Fundação Perseu Abramo já lançou o primeiro de três livros a serem distribuídos pelas livrarias do país, Juventude e Sociedade - Trabalho, Educação, Cultura e Participação, reunindo treze ensaios de estudiosos convidados a discorrer sobre diferentes facetas do caleidoscópico assunto.

Está no prelo um segundo livro, a ser lançado no Fórum Social Mundial de 2005, em Porto Alegre, no qual outro time de especialistas se debruça na leitura e interpretação do gigantesco conjunto de dados colhidos na pesquisa quantitativa nacional, enfocando separadamente os resultados sobre educação, trabalho e renda, desigualdades regionais e raciais, violência, cultura, religião e vários outros.

Completando a trilogia de livros, terá prefácio de Marilena Chaui a sistematização editada das mais de cem narrativas sobre participação juvenil colhidas em todos os estados brasileiros durante o Projeto Juventude. Jovens quilombolas, militantes do MST, ativistas estudantis, índios, trabalhadores metalúrgicos, torcedores organizados de futebol, egressos de sentenças socio-educacionais, participantes do chamado empreendedorismo jovem, dezenas de outros retratos das juventudes brasileiras são compostos a partir de relatos sobre como se iniciaram as diferentes modalidades de participação, o que elas representaram na vida de cada um, qual sua importância e seus objetivos sociais.

Para divulgação mais limitada, direcionada especialmente a centros de estudo, universidades, gestores públicos de juventude e entidades de maior abrangência nacional, preparou-se uma encadernação completa - restrita porque de elevado custo financeiro - contendo o registro extraído de fitas gravadas de todos os seminários e oficinas, bem como das plenárias em que quarenta ou cinqüenta representantes das siglas já referidas discutiram quinzenalmente todos os passos do Projeto Juventude.

Essa mesma coleção traz o volumoso conjunto de tabelas, mais de seiscentas, produzidas na pesquisa quantitativa nacional, o relatório das pesquisas qualitativas, a cópia de todo o material veiculado pelo site e o catálogo organizado da documentação que foi recolhida como Base de Dados.

Depois de apresentado ao presidente da República, o trabalho já foi entregue, em mãos, aos governadores de Minas Gerais, Goiás, Espírito Santo e Mato Grosso do Sul, aos presidentes do Senado e da Câmara dos Deputados, à Comissão de Políticas de Juventude dessa Casa, a vários prefeitos e aos membros do Diretório Nacional do PT. Em sua versão inicial, o Documento de Conclusão foi enviado às prefeituras de 1.096 municípios, à direção da CUT e aos principais sindicatos, a cerca de duzentas entidades e ONGs, a 247 grandes empresas, a todos os integrantes do Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social e a 838 endereços petistas, entre parlamentares e diretórios.

[/nextpage]

[nextpage title="p2" ]

 

Principais idéias

Esse texto compõe-se de três blocos. O primeiro contém um diagnóstico amplo sobre a juventude brasileira, com acento nos aspectos educação, trabalho e renda, exclusão e violência, família, cultura e participação. Registra os avanços recentes obtidos na área, mas critica a inexistência de um fio interligando as dispersas iniciativas presentes em diferentes ministérios, órgãos estaduais e municipais, ONGs e entidades da sociedade civil. Condena o cenário de fragmentação hoje predominante, bem como a falta de integração e conhecimento recíproco entre vários programas, que provoca concorrências estéreis e competições geradoras de desperdício. Numa palavra: o documento enfatiza como lacuna central a inexistência de uma verdadeira política nacional "de-para-com" a juventude, para aproveitar uma construção freqüente nos debates realizados e utilizada pela Unesco.

No segundo bloco, são sugeridas diretrizes gerais para o enfrentamento tia questão, mostrando a necessidade de enfocar a juventude como desafio estratégico de Estado. Ou seja, propõe-se a formulação de objetivos e metas de longo prazo, costurando políticas que sobrevivam à natural alternância de partidos no poder e se alinhem com prioridades como o Fome Zero, o Bolsa-Família e o Brasil Alfabetizado na constituição dos fundamentos basilares do novo modelo econômico e social que o país começa a erguer com o governo Lula.

Ao Estado, em seus três níveis federados, competem responsabilidades centrais na formulação e indução dessa política nacional de juventude. Mas adverte-se que só por meio de amplas parcerias e do dinâmico envolvimento da sociedade civil será possível atingiras ousadas metas propugnadas no documento.

Nas políticas públicas de Estado, a idéia da transversal idade é um eixo básico. Juventude não pode ser um assunto - como ocorre até agora - isoladamente da Educação, ou Trabalho (Primeiro Emprego etc.), ou Desenvolvimento Social, não obstante a enorme importância desses três ministérios perante a questão. Mas diversas outras esferas mantêm vínculos potenciais evidentes com o mesmo tema: cultura, esportes, saúde, meio ambiente, defesa, desenvolvimento agrário, entre outras.

Desenho institucional

Daí a necessidade de construir, em cada nível do Poder Executivo, mecanismos institucionais com desenho adequado à condução política e gerencial da nova política de juventude. O documento não detalha suas formulações até o nível de escolher entre ministério, secretaria, secretaria especial, coordenadoria ou assessoria, como formato preferido. Mas insiste na sua constituição, recomendando que tal estrutura, qualquer que seja seu nome e status, se vincule o mais diretamente possível à chefia do Executivo em questão. Se a delegação direta e formal da autoridade maior não ficar claramente explicitada nesse organismo, a tendência natural será cada área de governo se sentir liberada de compromisso frente à questão, anulando-se as chances da pretendida transversalidade.

Qualquer que seja a opção pertinente ao organismo institucional de condução da política de juventude - nacional, estadual, municipal -, é indispensável a constituição dos conselhos correspondentes de juventude em cada esfera, para assegurar ampla representatividade e participação plena dos jovens em todas as etapas de discussão, tomada de decisão, gestão e fiscalização das políticas e dos programas em curso.

Nesse desenho de estratégias gerais, o documento realça que, ao lado de educação e trabalho, cultura e participação formam os vértices de um quadrilátero em que pode ser imaginado todo o desenho da pluralidade de áreas relacionadas com a temática juventude. Cultura expressa, nesse caso, um nó medular na visada inversão de hegemonia dominante. Participação é a palavra-chave da idéia democrática que, de longe, é o mais fundamental dos elementos integrantes do projeto político vitorioso nas eleições de 2002.

Participação se traduz, aqui, na insistência até à exaustão no reconhecimento de que os jovens devem exercer função protagonista na discussão, deliberação e condução de todas as políticas de juventude, sejam as públicas de Estado, sejam as conduzidas no âmbito da sociedade civil. Ainda que exista o risco de a palavra protagonismo converter-se num desses chavões que as pessoas repetem sem saber o que significam, não se pode abrir mão do imperativo de ver os próprios jovens opinando, decidindo e fazendo com as próprias mãos, quando se pensa em incorporá-los com vigor num verdadeiro projeto de reconstrução nacional. Ser protagonista é ocupar o primeiro lugar na cena, ser ator central, e não mero figurante ou coadjuvante.

Isso não significa, obviamente, que os jovens devam ser vistos como semideuses ou heróis imunes às contradições que dominam todos os seres humanos numa sociedade que é e continuará sendo sempre marcada por contradições. Cabe aqui a mesma prudência observada na recomendação de que a guerra é assunto importante demais para ser deixada exclusivamente nas mãos dos generais. Juventude é questão decisiva demais para que se possa deixar unicamente nas mãos dos jovens todas as decisões pertinentes. Por isso, o desafio exige um pacto intergeracional que, entre outros benefícios, impeça a desnecessária repetição de experiências danosas do passado.

Programa abrangente

Para que a inauguração de uma inédita política nacional de juventude seja palpável e perceptível para o país, o documento recomenda a necessidade conceber um programa nacional de grandes proporções, que atinja em determinados anos alguns milhões de jovens brasileiros, interligando as dimensões educação, trabalho, desenvolvimento social e outras num desenho único, que incorpore necessariamente atividades comunitárias. Esse programa não coincide com a política nacional de juventude, obviamente muito mais extensa e diversificada. Mas deve ser um de seus vetores principais. Caberá aos especialistas e gestores governamentais, com plena participação dos jovens nas discussões, definir as feições exatas desse programa abrangente. Mas recomenda-se que ele concretize uma pioneira interligação entre educação e qualificação profissional, com horas-trabalho dedicadas a atividades comunitárias distribuídas por uma infinidade de áreas: alfabetização de outros jovens e adultos; programas como o Fome Zero e o Bolsa-Família; erradicação de doenças como dengue e malária; mapeamento, educação e proteção ambiental; desenvolvimento comunitário através dos esportes; atividades culturais em que os jovens de áreas pobres tenham chances de fruir, exercitar e mesmo profissionalizar-se em música, dança, teatro, cinema, televisão, pintura, escultura, tudo o mais; atenção a crianças e idosos; desenvolvimento do turismo local etc.

Por meio de um programa como esse, desenvolvido gradualmente e assentado em bases consistentes para impedir a repetição dos erros e da fragmentação observada em experiências anteriores, contribuiremos para inserir socialmente milhões de brasileiros entre 15 e 24 anos e, ao mesmo tempo, semearemos as bases do "novo trabalho" do século 21, que não pode mais ficar restrito aos segmentos tradicionais da agricultura, da indústria, do comércio e dos serviços gerais. O novo trabalho e as novas ocupações se voltarão, mais cedo ou mais tarde, para a elevação da qualidade de vida, mediante "descoberta" da força que emana da vida social assentada nos princípios da solidariedade, da responsabilidade comunitária e ambiental e da convivência humana em bases não-violentas.

Por último, resta fazer menção ao mais volumoso dos blocos que integram o Documento de Conclusão. Sob o título "Agenda para diferentes áreas"; é apresentada uma vultosa sistematização de sugestões e propostas recolhidas nos doze meses de discussões e seminários, voltadas especificamente a questões como esporte saúde, saúde mental, drogas, sexualidade prevenção da violência, jovens em conflito com a lei, mulheres jovens, desigualdade racial, meio ambiente, jovens na área rural juventude indígena, jovens no espaço urbano, desenvolvimento social, previdência, turismo e defesa. Antes de apresentar dez páginas de créditos, mencionando cada uma das pessoas e entidades que contribuíram no desenvolvimento do projeto, o Documento de Conclusão dedica algumas páginas a distintos segmentos da sociedade civil(ONGs, sindicatos de trabalhadores, empresas privadas, partidos políticos, universidades, igrejas e meios de comunicação) e faz referências genéricas a dezenas de instituições e organismos, nacionais e internacionais, que se ocupam do tema.

[/nextpage]

 

[nextpage title="p3" ]

Questões permanecem abertas

O Projeto Juventude conseguiu sistematizar um importante campo de consenso, mas evidentemente não solucionou as controvérsias mais fundamentais que cercam, há tempos, os debates sobre o tema. Citemos alguns exemplos. Por um lado, o abismo social que separa pobres e ricos no Brasil aconselha, numa primeira leitura, que todas as políticas públicas se apresentem com nítido recorte de renda, privilegiando os segmentos excluídos. Mas é claro que a juventude também inclui alguns milhões de brasileiros em estratos médios, que são vítimas de mecanismos mais complexos de exclusão: no âmbito da vida cultural, no tipo de integração simbólica exercida pela mídia, na generalização de estigmas referenciados no problema da violência ou das drogas. Como equacionar uma questão delicada como essa? Os programas voltados à juventude devem ser rigidamente orientados no sentido de priorizar os mais pobres, ou seria o caso de introduzir alguma flexibilidade para que os jovens brasileiros como um todo, sem distinção de classe, sejam alvo das novas políticas?

Outro exemplo importante refere-se ao sensível conflito de interesse ou de perspectivas muitas vezes estabelecido entre educação e trabalho. Uma proposta defendida por Marcio Pochmann, brilhante secretário de Trabalho da cidade de São Paulo, que muito colaborou nas discussões do Projeto Juventude, é postergar o ingresso dos jovens no mercado de trabalho, reforçando os níveis gerais de escolarização, mediante compatíveis programas de renda. Mas a tese, por coerente que seja, enfrentou violentas objeções dos participantes dos seminários que vivem nas periferias pobres das grandes cidades, para quem o emprego é uma necessidade imediata como exigência para a sobrevivência familiar.

Alguma síntese entre as duas preocupações precisa ser encontrada. Mas é um fato indiscutível que, na sociedade atual, mesmo nos países ricos, a posse de diploma, mesmo os de pós-graduação, já não garante emprego. Daí a indicação para que o programa abrangente sugerido se esforce para intuir maneiras inventivas de vincular trabalho, educação e participação social comunitária em novos paradigmas de inserção ocupacional.

Momento promissor

Ao nascer, o Projeto Juventude estava ciente de que seu esforço de sistematização não correspondia à descoberta da pólvora. Em sua finalização, expressou a consciência de que há gigantescos desafios teóricos e práticos ainda por ser equacionados. Partiu de consensos já existentes e contribuiu para aprofundar e ampliar alguns. É certo que contribuiu para acender novos debates e trazer o tema para um novo degrau, oferecendo fundamentação consistente para a urgência de iniciar uma política nacional de juventude, que se articule - no mesmo patamar de importância de programas como o Fome Zero ou o Bolsa-Família - como marco entre as mudanças estruturais que o governo Lula começou a introduzir na formação social brasileira.

Antes dele, incontáveis iniciativas, pesquisas, estudos e campanhas haviam contribuído para gerar o momento atual, de expectativas otimistas. Em 2003 e 2004, simultaneamente ao Projeto Juventude, mas sem depender em nada dele, dezenas de outras mobilizações e articulações ganharam corpo. Entre elas, duas adquirem peso maior por envolver esferas de elevado poder decisório. Uma é o processo desenvolvido na Câmara dos Deputados, outra é o Grupo Interministerial constituído pela Presidência da República, sob a coordenação do ministro Luiz Dulci.

Na Câmara dos Deputados, foi criada a Comissão Especial de Políticas Públicas de Juventude, presidida pelo deputado federal Reginaldo Lopes (PT-MG), que, ao lado de Cláudio Vignatti (PT-SC), trouxe permanente contribuição aos debates do Projeto Juventude, destacando-se também participações importantes como a de Alice Portugal (PCdoB-BA) e de outros parlamentares.

Sob a coordenação dessa comissão realizou-se um inédito processo de audiências públicas estaduais para colher propostas preparatórias à Conferência Nacional de Juventude, que ocorreu em junho de 2004, com a presença de 2 mil jovens brasileiros. Na pauta desse rico processo, as consultas debatidas com prioridade foram a necessidade de um Plano Nacional de Juventude, a institucionalização de um Conselho Nacional de Juventude, com participação de representantes da sociedade, e as bases de tini pretendido Estatuto da Juventude, inspirado nos exemplos do ECA e do Estatuto dos idosos.

O grupo interministerial conduzido por Luiz Dulci, por sua vez, responsabilizou-se pelo mapeamento de todas as ações governamentais relativas aos jovens brasileiros, interligando de modo inédito o trabalho de nada menos que dezenove ministérios. Desse levantamento nasceu um diagnóstico amplo e o ministro já anunciou que se encontra em avançada etapa de gestação uma intervenção marcante do governo Lula nessa área.

Durante a formulação dessa proposta pioneira, Dulci recolheu contribuições oferecidas por diversos especialistas e entidades relacionados com a questão dos jovens, incorporando significativas parcelas tanto das propostas apresentadas pela Comissão de Juventude da Câmara quanto das contidas no documento conclusivo do Projeto Juventude.

Entre os jovens mobilizados nesse projeto, é grande a expectativa de que, efetivamente, o governo Lula saiba aproveitar o momento especial de amadurecimento dos debates sobre o assunto para incorporá-lo como uma de suas políticas centrais, ao lado do combate à fome, da inserção soberana no plano internacional, da valorização da agricultura familiar; da erradicação do analfabetismo e de outras frentes nas quais já é possível visualizar nítidas marcas de mudança.

Vale lembrar, entretanto, que o projeto estratégico que inspirou e orientou toda a marcha histórica vitoriosa em 2002 nunca considerou que as mudanças seriam resultado e fruto das iniciativas de um governo, de qualquer governo. Governos e sociedade interagem numa dinâmica em que colaboração, diálogo, parceria, fiscalização, cobrança, conflito e pressão se combinam de maneira variável, conforme oscilem os contextos históricos e a correlação de forças, para que o novo vá nascendo no ventre das velhas tradições, alternando rupturas e deslocamentos suaves.

Sendo assim, é fundamental que as organizações e entidades de articulação dos jovens, bem como a legião de especialistas, lideranças políticas, gestores e ONGs engajadas nessa área, não se desmobilizem porque o novo governo está prestes a anunciar importantes ações na área. Mas redobrem e reforcem suas energias e mobilizações para que o momento especial não seja frustrado.

Paulo Vannuchi é vice-presidente executivo do Instituto Cidadania e membro do Conselho de Redação de Teoria e Debate

[/nextpage]