Política

Fundador do partido e membro de sua primeira direção, Skromov conclama neste momento os petistas a uma reflexão sobre a utopia e os princípios partidários

[nextpage title="p1" ]

A trajetória do nosso entrevistado contempla parte importante da história do movimento sindical brasileiro de 1960 a 1980, que desaguou na criação do PT. Fundador do partido e membro de sua primeira direção, Skromov conclama neste momento os petistas a uma reflexão sobre a utopia e os princípios partidários.

Comece por nos contar um pouco da sua origem. De onde eram seus pais, qual foi sua formação?
Meu pai, um imigrante russo, nasceu na Lituânia, em uma família de colonos, cristã ortodoxa. Meu avô paterno era do exército do czar, antes da revolução. Tinha ido colonizar a Lituânia. Tomava conta de um parque florestal, perto da capital, quando veio a guerra, em 1914, e o exército alemão tomou a Lituânia, cercando São Petersburgo. Ele foi parar em um campo de concentração na Alemanha, só voltando para a Lituânia no final da guerra. Dez meses depois meu pai nasceu. E, como o território continuou sob influência alemã, a família resolveu mudar-se para o Brasil, no início da década de 20. Já minha mãe era de uma família cabocla. Meu avô materno foi um fazendeiro que se arruinou na quebra do café e, logo depois desse episódio, morreu afogado. Provavelmente, foi daqueles que não agüentaram a desonra da dívida. Minha mãe, a única mulher em uma família de onze filhos, era professora. Ela morreu de câncer. Aos 10 anos de idade, passei a viver com um tio, irmão dela, também professor.

Onde você nasceu?
Minha mãe dava aula na fazenda em que meu pai trabalhava. Eles se casaram por volta de 1944. Nasci em agosto de 1946, em Piracicaba, embora morássemos em Salto Grande do Paranapanema. Tenho quatro irmãos de pai e mãe e uma irmã só de pai. Meu pai vive perto de nós, em Avaré. Foi esse o motivo de eu ter voltado para o interior, quando me aposentei, para conviver com ele e outros familiares.

O ambiente em que você vivia o incentivou a estudar?
Era um ambiente, até certo ponto, culto. Uma família de professores. Minha mãe havia estudado em colégio de freira. Mas, ao mesmo tempo, marcava o ambiente o lado do imigrante, mais liberal, voltado para as técnicas. Meu pai e seus irmãos eram bastante habilidosos. Ele era pedreiro profissional, carpinteiro – fazia uma casa sozinho – e também era pescador. As mudanças da nossa família têm a ver com a pescaria. Saímos de Piracicaba para Salto Grande do Paranapanema; depois, fomos para Itapura, divisa com Mato Grosso, atrás de peixe. E ele chegou a ir até Coxim, no Rio Taquari, já em uma região próxima ao Pantanal. Morei em lugares muito bonitos.

Isso até os 10 anos, porque depois você voltou a morar em Piracicaba.
Não, com meus tios era outra vida. Fui para Votuporanga, depois Olímpia, Bebedouro e Ribeirão Preto, onde terminei a escola de comércio (Senac) e comecei a trabalhar. Em Olímpia, fui office-boy, em turno de meio período, pois estudava. Em Bebedouro, trabalhei no cartório do segundo ofício, no Fórum. O primeiro emprego de carteira registrada foi em uma indústria, Tintas Ypiranga, que era de São Bernardo mas tinha um depósito em Ribeirão Preto, em 1962. Trabalhei lá por indicação do Argeu Egídio dos Santos, considerado comunista na cidade. Mas, militando no movimento sindical, vim a saber que ele era pelego. Meu contato no escritório foi o Rubens Francisco Luchetti. Este, sim, era um libertário; na verdade não era comunista, porque não era do partido. Hoje ele é escritor.

Você já fazia essas avaliações ideológicas?
Não propriamente. Luchetti era delegado sindical dos químicos e me atraiu para o movimento sindical porque queria ter um peão representante. Eu trabalhava no depósito, separava os pedidos e pegava as caixas de galões de tinta. Até ganhei uma bursite, nessa época, que já é de estimação. Era bom funcionário, por isso fiquei bastante inconformado quando me mandaram embora, no dia 1º de abril de 1964.

Mas por quê? Já era por atuação sindical?
No primeiro momento, eu não havia me associado, mas vivia naquele ambiente. O Luchetti era considerado comunista. Organizamos na empresa a greve geral de 1962 e a de 1963.

Qual a ligação dele com essa circunstância?
Tinha contato com o Partido Comunista Brasileiro (PCB), mas eu entendo que não era orgânico. Era simpatizante.

E qual o seu contato com o PCB?
Já naquela época eu tinha influência de um tio, Lázaro Sampaio Matos, maquinista da Companhia Paulista de Ferro. E ele era militante do PCB e distribuía o jornal Voz Operária. Morava em Porto Ferreira, pois a política da estrada de ferro era isolar os comunistas em ramais secundários. Tanto que, para o tamanho da cidade, havia uma belíssima célula de comunistas na ferrovia. Com ele estava um bilheteiro, o Sumaré, que parou várias vezes as fazendas, as usinas da região. Depois do golpe de 1964, em uma greve na usina do Matarazzo – no município de Luiz Antônio – houve um massacre. Os grevistas foram massacrados pelo Exército. Em 1965, parece que houve apenas mais dois casos, em Minas e no Ceará.

E como se deu essa influência política?
Ia para Porto Ferreira nas férias. Fiquei simpatizante da juventude comunista. Já na eleição de 1960, havia rachado com a direção nacional, porque não queria o Lott. Portanto, apoiava Jânio Quadros e Jango. Para o militante do PCB de São Paulo, Jânio tinha bases operárias, que vinham da Vila Maria. Nas fábricas, havia uma tensão com o janismo, visto como populista. Depois, quando presidente, por exemplo, Jânio condecorou Che Guevara. Havia tiradas, tanto pela direita quanto pela esquerda, surpreendentes. Isso, de certa forma, seduziu os comunistas do PCB, especialmente uma parte da direção estadual. Eu me lembro que cheguei a tomar conta de um comitê Jânio-Jango. Eu ainda era menino e colocava aquele disco da vassourinha. Mas era só uma inclinação política; coisas da época. O PCB era muito confuso, ainda não tinha a marca classista, que depois veio a fazer parte de sua imagem. Em 1962, o partido apoiou Ademar de Barros, considerado pelo movimento sindical inimigo público número um dos trabalhadores.

Você já tinha essa crítica claramente?
Tinha uma consciência de classe elementar. Eu era sindicalista; ainda que fosse um delegado de base, por intermédio do Rubens Luchetti. Perdi o emprego e, inocentemente, procurava outro usando a carteira com a baixa no dia 1º de abril. Aprovavam-me, pediam para eu ir trabalhar, quando chegava, havia alguma desculpa. Ligavam para a empresa, que informava que eu era sindicalista. Só depois de seis meses arrumei emprego, na Petróleo Ipiranga, onde fiquei pouco tempo, me preparando com um colega para o concurso no Banespa. Passamos, ele ficou em Ribeirão Preto e eu assumi em São Paulo, na seção de compras do banco. Logo que cheguei, em 1965, o sindicato estava se livrando do interventor.

[/nextpage]

 

[nextpage title="p2" ]

Não queria estudar mais?
Queria voltar a estudar, sim. Já havia terminado o curso de comércio, de segundo grau. Quando cheguei a São Paulo, ganhei um concurso literário sobre cidades históricas paulistas; escrevi sobre Ubatuba. O prêmio era uma viagem a Ubatuba, para ficar em um hotel por uma semana, e iria de avião teco-teco. Reli o trabalho e o achei muito conservador. Estava aprendendo noções de marxismo e não tinha feito um trabalho de acordo com o materialismo histórico, por isso não usufruí do prêmio.

De onde vinham essas noções de marxismo?
Vinham das minhas leituras. No banco, estavam voltando ao trabalho aqueles que haviam sofrido a repressão de 1964. Pedro Iovine, presidente do sindicato, esteve na prisão na Ilha das Cobras, no Rio de Janeiro, e havia sido cassado. Era militante do PCB.

Como você chegava a um lugar e identificava essas pessoas?
Era faro. Já havia sido delegado sindical em duas empresas. De repente, aparecia um boletim, e eu prestava atenção nos comentários. E o sindicato foi logo me sindicalizar. A esquerda havia sumido do sindicato, estavam apenas os grupos dissidentes do PCB e alguns grupos católicos.

O sindicato dos bancários de São Paulo teve eleições em 1965. Quando eu cheguei, essa diretoria estava tomando posse, e houve até unidade para tirar o interventor. O PCB tinha hegemonia. Mas havia dissidência do Partido Comunista do Brasil (PCdoB) e também do PCB; e a Ala Vermelha já tinha surgido. Naquela época, as eleições sindicais eram a cada dois anos, então, em 1967, eu já tinha mais de um ano de banco.

Com qual desses grupos você se identificava?
De modo geral, com os setores que estavam à esquerda do PCB. Concordava com as críticas que faziam à condução do sindicato, no sentido de que era conservadora, não mobilizava e não confiava nas bases. Só costurava por cima.

Em 1967, nossa chapa foi derrotada. Na época, as chapas eram identificadas por cores, e lançamos a nossa verde. Aliás, esse era um código: chapas verdes significavam setores à esquerda do PCB e as azuis eram só do Partidão.

Perdemos, mas o Frederico Brandão, que era o presidente, nos convidou para ajudá-lo. Fizemos um bom trabalho no departamento cultural até 1968. Fundamos o Sindicurso, um cursinho preparatório para vestibular. Era um curso alternativo, um ambiente cultural interessante e politizado, mas eficiente – tinha um índice alto de aprovação.

A ditadura havia cassado políticos de esquerda, de centro e alguns de direita, como Carlos Lacerda, Ademar de Barros e Jânio Quadros. Havia cassado Jango desde a primeira hora, perseguiram e prenderam membros do PCB e mais à esquerda, Brizola. Os mais notáveis estavam no exterior e começaram a propor redemocratização, na tentativa de convocar eleições com liberdade partidária, revogar o Ato Institucional nº 2 (AI-2), entre outros objetivos. Nesse contexto, em 1967, o PCB lança o Movimento Intersindical Anti-Arrocho (MIA). Tenho até a impressão de que era um reflexo, na área sindical, da frente ampla, com apoio de algumas lideranças mais à direita e da esquerda sindical. A esquerda havia ganhado os sindicatos de metalúrgicos de Osasco, com o José Ibrahim, e o de Contagem e Belo Horizonte, com o Ênio Seabra, militante da Ação Popular (AP), apesar de este não ter tomado posse. Mas deu posse à diretoria dele. Portanto, duas diretorias que estavam no nosso campo, do setor mais à esquerda do PCB, eram nossa grande inspiração. Nós chegamos a fazer várias concentrações em sedes de sindicatos e depois até saíamos em passea­ta. Nossos discursos tinham mais força do que aquelas ponderações do PCB.

Com isso, a relação entre nós e o presidente do sindicato ficou difícil. Em 1968, o pessoal do Ênio Seabra fez uma greve na Belgo-Mineira em que reivindicavam 10% de abono salarial. Os operários ocuparam a fábrica e prenderam os engenheiros. A polícia e o Exército cercaram o local, amea­çando explodir tanques de combustível e de produtos químicos. O ministro do Trabalho, Jarbas Passarinho, surpreendentemente decretou um abono desse valor para todos os assalariados. Isso em abril, antes do Maio francês. E nós estávamos preparando a greve em Osasco, com o Zé Ibrahim.

Nesse mesmo ano de 68, havia ocorrido em março a morte do Edson Luís, no restaurante Calabouço, e a Passeata dos Cem Mil, ambas no Rio de Janeiro. Existia um clima de mobilização nas capitais, porém mais estudantil que operário. E houve, em São Paulo, o 1º de Maio na Praça da Sé, organizado pelo MIA, com a presença do governador Abreu Sodré. Estavam o Joaquim dos Santos Andrade, presidente do Sindicato dos Metalúrgicos de São Paulo, o Frederico Brandão e, entre outros setores, os dos têxteis e gráficos. Havia em torno de 6 mil pessoas, em plena ditadura. Resolvemos hostilizar o governador, para não deixá-lo falar. Nenhuma palavra sua pôde ser escutada; ele perdeu a paciência e começou a nos xingar. Arrancamos os paus das faixas e jogamos em direção ao palanque – um acertou na testa dele, fazendo escorrer sangue na hora. Imediatamente, um cordão de isolamento de seguranças civis começou a atirar para o alto. E, como o palanque era na escadaria da Sé, abriram a porta da igreja e todos os que chamávamos de pelegos – vários companheiros do PCB no meio – correram. Assim, naquela manhã de 1º de maio de 1968, nós tomamos conta do palanque e fizemos a festa das oposições, tendo José Ibrahim como o grande comandante. Depois, saímos em passeata em direção à Praça da República. O Departamento de Ordem Política e Social (Dops) teve uma reação retardada e, quando chegou à praça, encontrou o pessoal do PCB e do Joaquinzão.

Havia participação de intelectuais nessas manifestações?
Nesse período, encontrei alguns intelectuais em razão de ter ingressado no curso de História da USP em 1968. Conheci o Otaviano de Fiori, o Fábio Munhoz, Julio Colasso, Armando Borgus. Todos haviam sido militantes do Partido Operário Revolucionário Trotskista (Port), seção brasileira da Quarta Internacional.

Nesse grupo, havia mais militantes sindicais?
Não, somente eu era ligado ao movimento sindical. Os demais eram professores de universidade ou de cursinhos e também havia alguns alunos. Nesse momento, estourou a greve de Osasco. O Zé Ibrahim e o José Campos Barreto, que mais tarde foi morto com Lamarca no sertão da Bahia, foram os principais companheiros que tomaram o sindicato. Essa greve envolveu milhares de trabalhadores. Os dois foram presos, a diretoria foi destituída e o ministro Passarinho decretou a intervenção no sindicato. Isso em julho de 1968. Desde aquele momento, o regime começou a reprimir mais, o movimento ganhou ousadia, e veio aquele desastre do congresso da União Nacional dos Estudantes (UNE), em Ibiúna.

Ainda antes, tivemos a campanha salarial dos bancários, em setembro. A oposição foi muito bem na assembléia, deu o tom para a greve geral dos bancários. Mas não conseguimos, porque a diretoria fechou um acordo: conseguiu recuperar a data-base. Mas o pessoal do Banco de Crédito Real de Minas Gerais – eram 22 agências somente em São Paulo – não se contentou com o acordo e decidiu parar em todo o país. E nós, pela primeira vez em uma paralisação, usamos piquete no centro de São Paulo. A maior parte das agências estava em pontos comerciais importantes. Foi quando aprendemos a usar bolinhas de gude contra a cavalaria e “miguelito” para furar pneus de ônibus, carros, e viaturas, além da persuasão, para tentar segurar uma greve. Depois alguns de nós foram para a greve dos bancários do Paraná. E lá também foi muito na base do piquete.

Mas veio a repressão ao congresso da UNE, em outubro, e o AI-5, no fatídico 13 de dezembro. E a partir daí a coisa piorou. Ainda mais grave foi o comportamento da militância desse campo do qual eu fazia parte. A maioria havia rachado com o PCB e até com o trabalho da AP católica, com base na tese de que eram pacíficos demais. E que havia como organizar a violência revolucionária, a guerrilha urbana ou a rural. Na minha cabeça, mal estávamos começando uma experiência de auto-organização dos trabalhadores e, de repente, os mais experientes da oposição não queriam mais mexer com movimento sindical. Aos poucos, descobrimos que haviam se empenhado na luta armada. Houve uma debandada. Largaram o movimento de massas e foram para a luta armada, com a qual eu não concordava. Isso ficou na garganta até abril de 1978, com a mobilização da classe trabalhadora, que deu origem ao PT e à Central Única dos Trabalhadores (CUT). Ficamos cada vez mais isolados e não havia como não sermos pegos. Vivía­mos fugindo, víamos a notícia no jornal de que o companheiro fulano tinha sido morto na Rua Bresser, entre outras matérias semelhantes. Todos morriam na Operação Bandeirantes (Oban), que depois se tornou Departamento de Operações Internas – Centro de Operações de Defesa Interna (DOI-Codi). E fomos levando...

No sindicato e na universidade?
Na universidade não ia mais, porque eu estava muito cansado. Em 1969, por exemplo, ainda comandamos um boicote ao restaurante do banco. E começamos a fazer reivindicações para mobilizar o próprio local de trabalho. E fazíamos o Nosso Jornal. Prossegui na Participação Ativa, até maio de 1970, quando caí na clandestinidade.

Como foi isso?
Decidimos militar em maior harmonia com o sindicato. Não dava para fazer oposição. Perdemos novamente, em 1969. O sindicato estava preparando o congresso da federação, em São Paulo e em Mato Grosso. E resolvemos apoiar a idéia de fazer um 1º de Maio de 1970 − o pior ano da ditadura. O sindicato dos têxteis de São Paulo tinha adquirido o prédio onde o Graciliano escreveu Memórias do Cárcere, um presídio da época da ditadura Vargas. Fomos para lá, no dia 1º de maio, e eu fiz o boletim da Participação Ativa. Levamos mais ou menos quatrocentas pessoas ao local, e o Dops prendeu dezenove companheiros. Nove dias depois, o corpo de Olavo Hansen apareceu em um terreno baldio, onde hoje é a Imigrantes. Tinha mais de cinqüenta contusões, mas ele morreu por ingestão de um veneno.

Quando vimos o laudo, comunicamos ao Franco Montoro, ao Sobral Pinto e ao Ulisses Guimarães. Fui ao congresso dos bancários, em Campinas, e fiz um depoimento dizendo que eu era testemunha da prisão do Olavo pelo Dops. Mas o ministro da Justiça dizia que se tratava de um crime comum. Fui me preparando para ser preso, comecei a limpar minhas gavetas, dando fim aos livrinhos de Mao, Trotski, Rosa Luxemburgo. Em 22 de maio, dois agentes do Dops foram até o banco. Era horário de expediente, de modo que o banco tinha de me liberar para o Dops, e eu fiquei aguardando no departamento de pessoal. Alguns companheiros mandaram o contínuo levar umas pastas para a sala onde eu estava. Falei para eles deixarem a porta sem tranca, coloquei a pasta debaixo do braço e saí da sala, passando pelos policiais na ante-sala.

E então caiu na clandestinidade?
Sim, larguei a escola e a família, para não contaminar. Fiquei na casa de parentes da minha namorada, na clandestinidade, e naquele mesmo ano nos casamos.

Isso durou quanto tempo?
Depois de um ano, prestei um concurso para comprador da Embratel. Eram duas vagas, fiquei em segundo lugar, mas não me chamaram.

Usava o seu nome verdadeiro?
Na Embratel, sim. Comentavam que o DOI-Codi e o Dops estavam em briga, e um não passava as coisas para o outro. Mas um dia o Valter Roberto Paixão, que era da oposição bancária, me passou um recado do delegado Fleury: “Fale para o Paulo se entregar, se não fizer isso, na hora em que o pegar, vou presuntá-lo”. Um ano depois – com documento novo e nome diferente – batalhei um emprego numa empresa de calçados e bolsas. Fui me sindicalizar, levei dez propostas de filiação ao pessoal da empresa, e o interventor dos sapateiros me esnobou. Peguei as propostas de sócios, cortei o timbre do sindicato dos sapateiros e fiquei sócio do sindicato dos coureiros!

Depois de certo tempo, teria eleição. E pensei que, com o interventor, nós não entraríamos em chapa. Mas o interventor decidiu que não entraria na chapa e disse que era importante que eu entrasse. Dessa forma, entrei na diretoria.

Disse ao meu patrão que colocaria meu nome verdadeiro. Ele era um judeu húngaro, trabalhador de fábrica, participou do processo da revolução dos conselhos na Hungria, em 1956, e foi perseguido. Contei minha situação e ele disse que mudava o registro. Mas eu não cheguei a tomar posse, que seria em 8 de outubro de 1973. Três dias antes fui preso em um mercado no bairro da Água Branca e levado para a Rua Tutóia, onde funcionava a Oban.

Queriam saber sobre alguns comitês de mobilização de metalúrgicos e condutores que eu estava organizando. Em 1972 fizéramos um movimento porque o Maluf queria extinguir a função de cobrador.

Articulado com quem?
Com operários de várias categorias. Não era ninguém da esquerda tradicional. Eram peões que íamos conhecendo.

E o que o Dops queria de você?
Queria saber sobre a Organização de Mobilização Operária (OMO). Fui torturado, e um dia me chamaram dizendo que eu podia ir embora. Haviam prendido minha mulher e uma prima minha, na cela das mulheres, mas elas foram liberadas antes. A maior preocupação, quando somos presos com alguém, é a outra pessoa.

[/nextpage]

[nextpage title="p3" ]

 

Por quanto tempo você ficou preso?
Um mês, somente no quartel. Não fui sentenciado. Fui preso e detido para averiguação, mas, como voltaram a me procurar, fui embora para a Argentina, onde fiquei até fevereiro de 1974. Lá tive condições de organizar muitos brasileiros, alguns eram refugiados do golpe do Chile. Fui ajudado pelo pessoal do Exército Revolucionário do Povo (ERP). Ajudei a fazer a aproximação entre os grupos trotskistas. Havia o Outubro na Europa, que era formado pelo Vitor Paes de Barros Leonardi. Aqui, a Fração Bolchevique trotskista tinha como principal dirigente o Vitor Letícia. Fizemos uma reunião de vários grupos brasileiros que estavam no exterior e tive até a oportunidade de participar de uma reunião com um grupo que viria a ser a Convergência Socialista (CS). Não estava ligado a essa corrente política, mas seus membros tinham uma sede em Buenos Aires, o Partido Socialista dos Trabalhadores (PST), cujo líder era o Nahuel Moreno.

Freqüentei por certo tempo a sede do PST: lá havia uma editora e livraria, onde eu ficava lendo. Um dia, o próprio Moreno mandou me chamar − ele era dono de um restaurante atrás da livraria, onde a maioria dos militantes almoçava. Disse que me dava um vale mensal para o restaurante se eu o ajudasse a bolchevizar alguns companheiros que eram refugiados do Chile. E fui para a reunião. Lembro-me que tinham um texto sobre o Brasil em que diziam que o regime militar brasileiro era fascista. Era comum, nos países sul-americanos, culpar o Brasil. Conceituavam nosso país como subimperialista.

As reuniões foram interessantes, reavivamos as discussões em que Trotski explicava a Mateo Fossa – um militante sindical argentino dos anos 30 – que não se cria um grande partido operário fazendo um jornal de clarividências e assim os militantes vão chegando. Propunha, para os Estados Unidos e para a Argentina, a criação de um partido seguindo mais ou menos o método do Labor Party: fazer um congresso sindical e organizar um partido que fosse a expressão política do movimento operário. Nós discutíamos isso no trotskismo e aguardávamos o momento em que houvesse uma disposição de várias lideranças operárias em fundar um partido amplo.

Ficou quanto tempo na Argentina?
Fui em novembro e voltei em fevereiro. Depois, retornei ao meu emprego e ao sindicato. Mas enfrentei um certo receio por parte de companheiros de sindicato, que eram pouco politizados, e fiquei mais de um ano sem mandato. No começo de 1975 me deram posse. Resolvi entrar para uma fábrica grande. Já que havia sido preso, estava novamente na vida civil, usando meu próprio nome. Entrei na Primícia, em São Bernardo do Campo, em abril de 1975 e saí somente em 1995, quando me aposentei. Na seção onde trabalhava havia oitenta mulheres e seis homens; isso para mim era uma experiência nova. Todos os funcionários eram sindicalizados, mas a empresa não sabia. Eu recolhia as mensalidades e trazia os recibos.

E a militância política?
Era uma loucura, fazia reunião de célula à tarde e à noite, depois do expediente. Era uma tentativa de retomar os contatos; aquilo que eu tinha feito na Argentina, um trabalho de unificar os grupos trotskistas. Em 1976, por exemplo, fizemos uma reunião, unificando quatro ou cinco grupos daqueles dispersos em Porto Alegre. Criamos a Organização Marxista Brasileira (OMB). Ainda estavam comigo o Paixão, o Vitor Letícia, o Vitor Leonardi e outros. Era uma organização séria, deu origem à Organização Socialista Internacionalista (OSI) – O Trabalho.

Na OSI havia a tendência Liberdade e Luta (Libelu). Fizemos uma radiografia de seus quinhentos estudantes e descobrimos que havia 150 professores e 150 bancários. Chamamos todos: “Tem de se sindicalizar”. Eram parte da classe trabalhadora e não atuavam nas suas entidades. O Luiz Gushiken, por exemplo, era um desses estudantes e foi um dos fundadores da Tendência Sindical Classista (Tesicla). Proletarizamos uma parte da tendência estudantil e propusemos a ela a tarefa de freqüentar o sindicato.

Em outubro de 1977, houve o congresso da OSI, e fui eleito para a direção por unanimidade. Quatro meses depois, o Luís Favre me expulsou, como inimigo da classe operária e fora do campo da revolução. Tudo em francês – ditou de Paris.

Por quê?
Porque eu queria que o grupo participasse do 1º de Maio do Benedito Marcílio, presidente do Sindicato dos Metalúrgicos de Santo André, e eles queriam que participasse do ato do Zé Pedro da Silva, que era da Oposição Sindical, em Osasco. Afinal, o do ABC tinha uma nova liderança. Quem não conhecia achava que o Lula iria ser pau-mandado do Paulo Vidal, um pelego.

Na véspera do 1º de Maio de 1978, ainda não tinham eclodido as greves, mas se fazia greve todos os anos. A partir daquele momento, mudou a qualidade das greves. Em 12 de maio, a Scania parou e o sindicato de São Bernardo apoiou a greve: não deixou fazer o acordo sem antes passar por assembléia. E a greve da Scania continuou por mais dois dias até sair um acordo, e logo depois houve uma avalanche de greves fabris.

À noite, eu abria o sindicato para discutir a preparação do 1º de Maio e dele participava o pessoal da OSI; Markus Sokol e Glauco Arbix eram dirigentes. O Zé Américo Dias, hoje vereador em São Paulo, e o Luiz Gushiken ainda eram base naquela época. A maioria orientada pelos franceses − nós não sabíamos −, que tinham se infiltrado na OSI. No entanto, nossa relação não era de subordinação a eles, porque nosso comitê era de reorganização da Quarta. Portanto, cada um tinha sua autonomia nacional. E nós iríamos, um dia, fazer um congresso, para aí sim criar uma organização internacional. Os meninos que viajaram para Paris, que tinham essa condição, faziam escola de quadro e saíam militantes do grupo francês. Eles vinham para cá, e depois nós descobrimos até financiavam a infiltração no grupo brasileiro. Depois do 1º de Maio, o francês Stephanie Gist, ligado ao grupo do Lambert, saiu daqui com uma impressão muito ruim, porque eu queria jogar força no ato de Santo André. Levaram isso tão a ferro e fogo que eu fui expulso.

Pelo Favre?
Dizem que foi ele quem ditou a nota e que o Glauco ou o Sokol traduziu para o português e depois me comunicaram. Em seguida, nos separamos bastante. As greves começaram em São Bernardo e em 1979 o Brasil inteiro havia feito greve, até os coveiros. Meu sindicato parou 176 metalúrgicas em São Paulo: nos tornamos uma fábrica de fazer panfletinho, mosquitinho, enfim, o que fosse necessário na paralisação de fábricas. Éramos 11 mil coureiros, depois fundamos mais um sindicato, com mais 6 mil filiados, ligados ao setor de bolsa e luva. O sindicato dos couros de São Paulo era a sede das oposições, e era tudo socializado para o movimento. A minha pequena gráfica funcionava para as oposições: bancários, químicos, plásticos, vidreiros...

Depois de expulso, sua atuação se restringiu à sindical?
Sim, sempre tendo em vista a questão do partido. Nós estávamos querendo criar um partido dos trabalhadores. Depois da expulsão da OSI, tornei-me independente, mas com fama de organizado. Todos me viam como trotskista. Assim me aproximei mais do Mario Pedrosa e do Fábio Munhoz, que ajudou a ganhar os primeiros intelectuais para o PT.

Em julho de 1978, ocorreu o 4º Con­gresso da Confederação Nacional dos Trabalhadores da Indústria (CNTI), ligado oficialmente ao Ari Campista, que tinha a coragem de se dizer o pelego número um do Brasil. Reunia 1.500 delegados: os do Norte, Nordeste e Centro-Oeste ficaram hospedados em quartéis da Marinha e do Exército, e as delegações do Sudeste em hotéis. O encontro foi aberto por Geisel, que se pronunciou desta maneira: “Quero que o pessoal que está comigo sente-se à minha direita e quem está contra mim sente-se à esquerda”. Mais de dois terços sentaram-se no lado direito – era o pessoal que estava nos quartéis – e um terço sentou-se do outro lado. Ficamos em minoria antes mesmo da abertura do congresso. Perdíamos todas as nossas propostas na votação. E a imprensa chamou atenção para o pessoal minoritário, que incluía Joaquinzão e o Cinésio, dos borracheiros, enfim gente que não era exatamente dirigente combativo. Foi nessa ocasião que se criou a expressão “dirigentes sindicais autênticos”.

[/nextpage]

[nextpage title="p4" ]

 

E a discussão sobre a criação do partido?
Em 1978, já havia essa conversa, mas houve um momento em que nós nos separamos um pouco, porque um grupo foi fazer a campanha do Fernando Henrique e dos chamados candidatos populares. Fiz campanha pelo voto nulo, e só depois do 15 de novembro houve uma reaproximação com esse outro grupo. Foi quando o Lula, em 11 de dezembro, nos chamou para um churrasco no sindicato. Era uma reunião só com doze presidentes de sindicatos. E o Lula falou: “Que tal nós fundarmos um partido só de trabalhadores, sem patrão?”. E um a um foi dando sua opinião. Primeiro falou o Jacó Bittar, que estava de pleno acordo. Depois, começou a se manifestar o pessoal da pelegada: “Não. Acabamos de eleger o pessoal do MDB. Que história é essa de rachar agora? Está errado, sou contra”. Já os caras do PCB afirmavam: “Mas para que fundar um partido? Ele já existe desde 1922”. Eu dei o terceiro voto a favor da idéia do Lula e o José Cicote deu o último.

Quatro a oito?
Isso. Nós tínhamos uma intersindical, estávamos tentando articular as direções. Era um movimento por quatro bandeiras: salário mínimo real unificado nacionalmente, liberdade e autonomia sindical no direito irrestrito de greve, aumento real de salário, garantia de emprego. Depois disso, sem nos avisar, o Lula propôs, na reunião da intersindical, que incluíssemos também a bandeira por um partido dos trabalhadores. Acabou sendo aprovado, porque o PCB foi pego de surpresa, e isso virou a quinta bandeira da intersindical.

Em Lins, a criação do PT foi aprovada, e também no congresso dos metalúrgicos do estado de São Paulo, com trinta sindicatos. A imprensa noticiou largamente: “O congresso dos metalúrgicos de São Paulo aprova o PT”. Todo o mundo queria saber o que era o PT, e nós não havíamos feito nenhuma reunião para dar os contornos.

Já se falava na sigla PT?
Sim, virou a coqueluche na imprensa. Mas, em 18 de janeiro de 1979, havia uma nova reunião da intersindical em Osasco, e o PCB mobilizou os aposentados e nos derrotou. Chegamos à conclusão de que propor partido não era coisa de sindicato. Nos reunimos, melancolicamente, quando o Wagner Benevides, do Sindicato dos Petroleiros em Minas Gerais, lançou uma bravata: “Se vocês de São Paulo não querem construir o PT, nós em Minas queremos”. E pela primeira vez marcamos uma reunião pró-PT, em São Bernardo, somente com os presidentes de sindicato, com exceção do Cicote, que era secretário, e do Robson Camargo, representante dos artistas.

Nessa reunião, discutimos a carta de princípios. A imprensa queria saber o caráter, os contornos, o conteúdo da proposta. Em 21 de janeiro, nós fomos a Porto Alegre, falar com o Olívio Dutra, que reuniu por volta de vinte presidentes de sindicato.

Três ou quatro dirigentes nacionais da Convergência Socialista participaram de nossa primeira reunião. Eles queriam transformar o punho em símbolo do novo partido, mas fizemos uma votação e ganhou a proposta da estrela.

E a estrela surgiu como?
A estrela é o símbolo tradicional do movimento socialista. Só que o P e o T não eram como são hoje, eram arredondados como o JP, da Juventude Peronista, escritos nos muros em Buenos Aires. Uma letra encavalando na outra e o vermelho e o branco porque eram cores universais. A idéia de todos ali era, unanimemente, o socialismo.

Quer dizer: já havia a estrela, já existia PT, mas continuavam só sindicalistas?
Somente sindicalista. Houve uma segunda votação, em que insistiram na tese do Labor Party: para ser filiado do PT era preciso participar do sindicato. Eu combati essa idéia.

O Lula pediu licença das reuniões no meio da discussão: “Eu não quero que vocês parem. Mas eu estou entrando em campanha salarial. E nossa campanha será para arrebentar. Terá greve geral dos metalúrgicos”. O essencial já estava aprovado: seria um partido ao estilo clássico, com filiações individuais. As questões sobre o conteúdo da carta de princípios fomos discutindo e resolvendo, a maioria delas foi na presença do Lula. Os exilados também estavam voltando: Miguel Arraes, Zé Ibrahim, Manoel Conceição.

E eles aderiram ao novo partido?
Conseguimos que o Zé Ibrahim e o Manoel Conceição declarassem apoio ao PT, mas não era a vontade dos grupos dos quais eles participavam. A Ação Popular (AP), do Manoel, havia decidido trabalhar por uma depuração do MDB, que era a proposta do Fernando Henrique. Tivemos apoio do Jair Ferreira de Sá, dirigente de uma ala da AP que estava entendendo melhor o PT. O nosso primeiro deputado foi o Edson Khair, do MDB do Rio de Janeiro.

Em que momento essas reuniões se ampliaram?
Em julho, em São Bernardo do Campo, tivemos uma reunião tripartite com dirigentes sindicais, intelectuais e políticos. Essa reunião surgiu de uma tensão porque houve uma ofensiva muito forte sobre a liderança do Lula, por parte de alguns exilados que haviam retornado, em particular do Almino Afonso, e de alguns militantes de esquerda que se mudaram para São Bernardo, como o Alemãozinho e o Osmarzinho, ligados ao José Aníbal, hoje vereador em São Paulo. No entanto, eles acompanhavam o Fernando Henrique onde quer que ele fosse e tentaram levar o Lula para esse lado.

O Fernando Henrique tinha a proposta de criar o Partido Popular Democrático e Socialista (PPDS). O Augusto Campos e eu participamos de uma reunião desse PPDS representando o PT, em maio de 1979, e percebemos que era composta basicamente pelo MR-8 e pelo pessoal do MDB, que acabou fundando o Partido da Social Democracia Brasileira (PSDB). Esse partido seria um MDB sem adesistas. O Almino insistiu tanto que o Lula concordou em fazer uma espécie de seminário: essa reunião tripartite. Durante três dias discutimos a realidade nacional e o processo de reorganização partidária. Felizmente, os dirigentes sindicais foram bastante firmes, pois do contrário teríamos participado do PMDB, e não do PT. No final do encontro criaram uma comissão, que se reuniu quatro ou cinco vezes, formada por três sindicalistas, três intelectuais e três políticos.

E o que prosperou desses encontros?
Nada, logo o Lula percebeu que não era o caminho. Organizamos a reunião de 13 de outubro, decisiva para a fundação. Foi no restaurante Demarchi, em São Bernardo, com a representação de treze estados, aproximadamente. Participaram intelectuais e toda a esquerda que estava interessada no PT. A maioria queria que abríssemos uma porta, já que não havia como entrar no PT se não fosse presidente de sindicato. Criamos as normas transitórias de funcionamento, também houve uma nota política sobre a conjuntura: o processo de reorganização partidária. As normas transitórias de funcionamento criavam a figura dos núcleos: “Forme seus grupos e comunique. Organize-se por toda parte sob essa bandeira”. Criou-se o primeiro estatuto, entre aspas, que dizia que o núcleo deveria ter no mínimo 21 militantes e se instalar em local público, se pudesse, com tabuleta na frente. Para acabar com aquela tradição de clandestinidade da esquerda e forçar o partido de massa. Em 27 de janeiro fundaríamos o partido e instituiríamos a comissão provisória nacional. Éramos onze: Lula, Olívio Dutra, Wagner Benevides, Jacó Bittar, Henos Amorina, José Cicote e eu. E mais os dois anistiados, o Zé Ibrahim e o Manoel Conceição, e depois o deputado Edson Khair e o bananeiro Arnóbio Silva, de Itanhaém. Organizamos um manifesto que foi assinado por 101 eleitores divididos em cinco estados. Em menos de um mês havia duzentos núcleos em São Paulo.

Era aquele entusiasmo. No entanto, reunir a comissão para escrever o manifesto era um terror. A turma do Zé Aníbal invadia e não tinha coragem de dizer que era contra o PT, e sempre levava propostas do Fernando Henrique para nossas reuniões. Dessa forma, continuava aquela tensão.

Esse grupo tinha aderido ao Movimento Revolucionário Oito de Outubro (MR-8) e, em um congresso no Rio de Janeiro, apresentou como condição da adesão que não atrapalhassem o trabalho de infiltração que estavam fazendo no PT, partido que eles caracterizavam como anticomunista e precisava ser destruído. Como eu tinha outra impressão do Alemão e do Osmar, as portas da comissão que elaborava o manifesto estavam abertas a eles. Em 31 de janeiro, tivemos uma reunião dura, ainda com essas intromissões, e batemos na mesa − faltando quatro dias para a fundação eles deixaram de participar. Fizemos a reunião apenas com os onze e o clima era tranqüilo.

E como foi o dia da fundação, que acabou adiado para 10 de fevereiro?
Tinha um clima muito bom, diferente daquele inferno em que se viveu durante a elaboração do manifesto pela comissão. Fizemos um calendário e fomos tocando, mas havia muita intriga. Falavam que havia alguns malucos que levariam o partido à perdição, e eu era o chefe. O Jornal da Tarde publicou uma página sobre a minha vida na clandestinidade. Algo assim: “Camarada Maurício, hoje presidente do Sindicato dos Trabalhadores em Indústria de Artefatos de Couro de São Paulo”. Ainda estávamos sob a ditadura, ocorriam prisões políticas. A própria imprensa criou uma expectativa de setores de ultra-esquerda em cima de mim, que era um militante com formação trotskista. Naquele momento, muito mais próximo do Mário Pedrosa e do Fábio Munhoz, e embora propusesse que os trotskistas se unificassem no interior do PT para agilizar o processo de organização, não via outra perspectiva partidária. Mas havia militantes que viam no PT – mesmo os trotskistas – apenas um espaço de participação eleitoral, institucional, sem abrir mão de projetos partidários específicos. Uma parte da esquerda continuava acreditando que a construção do partido era, mais ou menos, um arremedo do que os bolcheviques haviam feito na Rússia.

Surge uma falsa discussão no partido, provocada pela imprensa: partido de quadros versus partido de massa. Entre 10 de fevereiro e 1º de junho, houve um bombardeio contra o PT.

Em 1º de junho, o que aconteceu?
Em 1º de junho foi feita a aprovação do programa e ocorreu a eleição da direção nacional provisória. Já não era a coordenação nacional provisória. Ultimamos as providências para a legalização e preparamos o processo para ser levado ao TSE para reivindicar o registro. O 10 de fevereiro foi o pontapé inicial, o manifesto, mas tínhamos de completar o processo, aprovando o programa e o estatuto. Entre essas duas datas, vivemos um processo terrível de intervenção exterior no PT. Basta conferir os jornais da época, principalmente O Estado de S. Paulo, o Jornal da Tarde e a Folha de S.Paulo.

Houve ainda a prisão do Lula nesse período.
Ele ficou preso por 42 dias. Nesse momento, eu acompanhava a campanha de fidelização e a prisão dele. Tivemos um encontro paulista, pela primeira vez. Criou-se nos grupos de ultra-esquerda, que estavam se acertando no PT, a expectativa de que eu seria o porta-voz deles.

Que grupos, por exemplo?
O que seria hoje o Partido da Causa Operária (PCO), à época Causa Operária, e vários grupos dissidentes, dessa ou daquela organização. No encontro estadual de São Paulo, esses grupos poderiam ter tido maioria, se eu tivesse aceitado a incumbência. Comecei a sentir que aqueles mesmos setores que queriam a nossa ruptura em outros momentos queriam nos levar ou levar o Lula. Havia uma votação decisiva naquele encontro. Proporcionalidade no diretório era consenso, mas não na Comissão Executiva. Se uma chapa perdesse da outra por um voto, era excluída da executiva. Portanto, isso convidava o setor perdedor a sair. Naquele momento, em que não havia ainda muito apego, cheguei à conclusão de que o setor que devia abrir mão era eu. O Osmar Mendonça, ligado ao Zé Aníbal, fez a defesa da não-proporcionalidade na executiva, e o Joãozinho Gonçalves, de São Bernardo, propôs que houvesse a mesma proporcionalidade que existia para a direção. Conclusão: não haveria proporcionalidade. Os grupos mais radicais me propuseram: “Vamos ter de ganhar, para não sermos excluídos”. Eu falei: “Se ganharmos, o Lula sai do PT. E de que adianta nós fazermos o PT sem o Lula? É exatamente o contrário. Quem tem de abrir mão e não lançar chapa somos nós”. Dois meses depois, em julho, saiu o pessoal do MR-8 e o do PCB, e também saíram Vanderli Farias, da Paraíba, Osmar Mendonça e Alemão, entre outros. Lançaram um manifesto em nível nacional e racharam com o partido. Minha vitória não era a minha presença na direção, mas a preservação da proposta do PT.

Você não faz mais parte da direção, mas continua tendo militância partidária.
Fui uma das pessoas que militaram ininterruptamente, nos 26 anos e meio do PT. Não fiquei um dia fora.

Qual a sua avaliação desse momento que o PT está vivendo, as denúncias, a crise?
As reservas morais do partido são muito grandes para enfrentar momentos como este. Estamos muito preocupados com todas as denúncias, mas temos confiança.

As pessoas, às vezes, desanimam. Muita gente está com o copo vazio de esperanças, sem tesão pelas mudanças e pela militância. O PT cresceu da classe operária e se desenvolveu, sobretudo, referenciado no proletariado. Com a desindustrialização caiu o número de operários drasticamente; a indústria diminuiu seu peso na atividade econômica do país. O moral da classe trabalhadora não é o mesmo do período de 1978 a 1989, quando sentíamos orgulho de ser pessoas produtivas, com as mãos criadoras de riqueza. A classe operária hoje está prostrada, depois de dez anos de Plano Real, de desemprego continuado, de desmobilização. O Lula ganhou a eleição em um período de completa desmobilização. O PT, a CUT e o MST se ressentem da diminuição do tamanho da classe operária em nosso país. Não podemos negligenciar esse fato. O PT continua a ter em seu seio o que tem de melhor na sociedade brasileira, o que há de mais generoso e idealista. A esquerda precisa aproveitar o jubileu de prata do partido e fazer uma reflexão, porque o PT protagoniza a expectativa. Os olhos da esquerda mundial estão voltados para o partido. O Lula assumiu em uma condição diferente de todos os governos de esquerda que vieram antes, de descenso do movimento social.

O partido tem dificuldade de entender seu papel, que deveria ser autônomo e independente do governo. Há situações em que o governo tem estado à esquerda do partido, do movimento social e, até mesmo, de grupos de esquerda, como o Partido Socialismo e Liberdade (PSOL) e o Partido Socialista dos Trabalhadores Unificado (PSTU). O governo Lula propôs imposto sobre as grandes heranças e as grandes fortunas, e não se ouviu uma voz no partido, no movimento social, a favor de mobilizar para garantir essas mudanças na reforma tributária. Há situações em que o governo foi paternalista, uma vez que não havia o clamor da sociedade. Gostaríamos de ver esse governo à direita da sociedade. Em um processo de total desmobilização, ele tem de fazer reformas mais ou menos consensuais. Deveríamos estar mobilizados, para empurrá-lo para a esquerda.

Os 25 anos também impõem a necessidade de uma reflexão sobre a utopia e os princípios. A esquerda deve deixar de acreditar que a violência é a parteira da história, caso contrário não conseguirá recuperar a credibilidade para o socialismo. O socialismo está vivo porque é necessário superar o capitalismo. Como resgatar a credibilidade do socialismo e da esquerda? Nós temos de mostrar que somos diferentes da direita. Só que nós temos de nos livrar de alguns desvios graves. O stalinismo é apenas uma expressão deles. Os fins e os meios têm de estar perfeitamente afinados. Não estou erguendo o dedo contra ninguém, em particular, mas para todos nós.

Rose Spina é editora de Teoria e Debate

[/nextpage]