Nacional

O episódio da homologação da terra indígena Raposa Serra do Sol levou o estado a um grau extremo de conflito e o PT local a um grande isolamento na sociedade

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A primeira coisa que aprendi ao chegar a Boa Vista é que é Roráima (com o “a” aberto) e não Rorâima (com o “a” fechado), como geralmente se diz em outras regiões do país. Com cerca de 225 mil km2, o estado menos populoso da Federação, aproximadamente 400 mil habitantes, dos quais 65% (cerca de 250 mil) vivem na capital, tem apenas quinze municípios. Para se ter uma idéia, o Piauí, com área semelhante, tem 22.

Até 1943, toda a extensão de Roraima era o município de Rio Branco, pertencente ao Amazonas. Prevaleciam uma economia extrativista, um pouco de pecuária e a agricultura de subsistência, financiadas pelo capital comercial de Manaus. Durante a Segunda Guerra Mundial, por motivos de segurança nacional, Getúlio Vargas decidiu criar novos territórios: o do Guaporé (hoje Rondônia), o do Amapá e o de Rio Branco (hoje Roraima), constituído por dois municípios: Boa Vista e Caracaraí.

Getúlio Cruz, ex-governador nomeado por Sarney no período de 1985 a 1987, e diretor da Folha de Boa Vista, o mais importante periódico local, relata: “O Vargas bolou um esquema em que o governador de cada território era designado pelos coronéis de um estado. Aqui tocava o Maranhão e, por quase 20 anos, foi o Vitorino Freire quem comandou a política no território de Rio Branco, sem ter nenhum laço com essa área”. Daí se originou uma primeira corrente migratória maranhense formada por funcionários públicos. Isso explica em parte por que até hoje a maioria dos migrantes vem do Maranhão. Segundo Vicente de Paulo Joaquim, chefe da unidade estadual do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) em Roraima, hoje há 60 mil maranhenses no estado. De fato, caminhando pelas ruas de Boa Vista, diferentemente de Manaus, Belém e outras capitais amazônicas, nota-se que não prevalecem no rosto das pessoas os traços indígenas. Vi muito poucos negros, vários descendentes de indígenas, mas sobretudo os traços típicos do sertanejo.

Nos anos 50, desenvolveu-se ali um sentimento nativista contra o domínio político de Vitorino Freire que arrancou uma promessa de que o governador passaria a ser indicado pelo deputado federal eleito pelo território. Assim se deu no período de Jânio Quadros e João Goulart, mas com o golpe militar se criou um esdrú­xulo sistema segundo o qual cada arma militar era responsável por um território. Assim, o Exército ficou com Rondônia, o Amapá com a Marinha e à Aeronáutica coube Roraima. Comenta Getúlio Cruz: “Mesmo na ditadura militar, um governo nomeado, alienígena, tinha de ter um mínimo de aliança com as forças políticas locais, com a elite composta de servidores públicos, pecuaristas, empresários ligados ao garimpo e comerciantes. Isso gerou um estado profundamente elitista. O governador do território tinha poder extraordinário, porque não havia assembléia legislativa. Na verdade, ele coordenava a ação do governo federal. Podia demitir, nomear, tinha um poder imenso de privilegiar ou perseguir, mas não tinha nenhum instrumento de introduzir políticas inovadoras. O estado depende ainda hoje de cerca de 80% de repasses da União”.

De acordo com o que foi instituído na Constituição de 1988, os territórios deviam se tornar estados, o que começou a se efetivar a partir de 1991.

O clientelismo à roraimense

Nas primeiras eleições para governador, em 1990, foi eleito Ottomar Pinto, do Partido Trabalhista Brasileiro (PTB), sucedido em 1994 por Neudo Campos, do então Partido Progressista Brasileiro (PPB), reeleito em 1998. Em 2002, o vice-governador de Campos, Flamarion Portela, é eleito com apoio do PT e cassado em novembro de 2004. Em decisão absurda, o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) dá posse ao segundo colocado na eleição, Ottomar Pinto, que assume o governo no dia seguinte. Ottomar e Neudo, com o senador Romero Jucá, agora no Partido do Movimento Democrático Brasileiro (PMDB) e cuja esposa, Teresa, é a prefeita da capital, são os caciques da política roraimense. Os três, engenheiros. Em um estado sem indústrias, os governadores fazem obras públicas e têm nas empreiteiras suas principais financiadoras de campanha. Com exceção da afiliada local da Rede Globo, pertencente à Rede Amazônica, e da Folha de Boa Vista, todos os demais órgãos da mídia são vinculados a grupos políticos da região. Em Roraima, talvez até mais que em outros estados – se é que isso é possível –, quase todas as siglas partidárias são meras legendas de aluguel desses grupos políticos.

Em Boa Vista, não se encontra o nível de pobreza de outras capitais brasileiras. Não há favelas nem palafitas. No centro da cidade, poucos vendedores ambulantes e pedintes. A rede escolar atende a toda a população. Os bairros da periferia, em geral, são urbanizados. Como explica Vicente de Paulo Joaquim, do IBGE: “O migrante que veio para cá, normalmente, tem qualidade de vida muito melhor que a do parente que ficou no interior do Maranhão ou do Ceará. Esses migrantes vêm em busca de benefícios oficiais. Tanto é que a gente observa que o fluxo migratório se intensifica nos períodos pré-eleitorais”. Além, infelizmente, do que é comum no interior brasileiro – a farta distribuição de cestas básicas, material de construção etc. etc. –, em Roraima, nos anos anteriores às eleições, há um fenômeno particular, que é o pagamento do transporte para que as pessoas façam o longo percurso – de ônibus e barco – do interior do Nordeste ao estado. O migrante já chega como um eleitor aliciado.

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O escândalo dos “gafanhotos”

Gafanhoto come folha. Em Roraima, os “gafanhotos” comiam a folha de pagamentos do estado. Em agosto de 2003, estourou o escândalo que colocou Roraima nas manchetes nacionais. Porém, o esquema já vinha desde o governo Ottomar. Começou em uma autarquia, o Departamento de Estradas de Rodagem (DER), e depois se espraiou para diversos outros órgãos da administração estadual. Ninguém sabe ao certo o número de pessoas envolvidas, mas supõe-se que sejam centenas. Essas pessoas – quase sempre humildes – constavam da folha de pagamentos do estado, e os salários chegavam a até R$ 3 mil. Como o pagamento em geral não era feito através do sistema bancário, elas passavam uma procuração a alguém para recebê-lo. O estado chegou a terceirizar o pagamento para facilitar o esquema, repassando o dinheiro para uma empresa chamada MSAP. No dia do pagamento, alguém ia lá com a procuração, retirava o dinheiro e entregava algo como R$ 200 para o suposto funcionário. Até chefe de pessoal tinha parentes e amigos na lista. Descoberto o esquema, foram presos o ex-governador Neudo Campos, apontado como chefe da quadrilha, e diversos deputados. O processo segue na Justiça.

O PT no estado

O PT de Roraima, último estado da Federação onde se organizou, foi criado em 1985 por um grupo de paraibanos, em sua maioria professores universitários ou agrônomos. Em seguida, recebeu a adesão de um grupo da Pastoral da Juventude. A trajetória do partido foi difícil. Em 1986, concorreu pela primeira vez, sem êxito, a um cargo (deputado federal), único em disputa no então território. Nas eleições municipais de 1988, disputou com chapa própria, sem alianças, na capital e em mais três municípios. Disputou também nos mesmos moldes as eleições de 1990, e em 1996 mudou de tática, conforme explica o deputado federal e presidente do partido, Titonho Bezerra: “Nós assumimos a direção do PT e resolvemos que a partir daquele momento deveríamos buscar resultados na eleição. Estávamos dispostos a fazer alianças com qualquer partido que estivesse dentro do arco. E aí elegemos nossos três primeiros vereadores: eu, em Boa Vista, o Zezinho, um trabalhador rural, em Caroebe, e o Nerino Galé, uma liderança indígena em Normandia. Em 1998, numa coligação com o PPS e o PSB, eu não fui eleito deputado estadual porque faltaram dezessete votos para a legenda. Em 2000, só reelegemos o Zezinho em Caroebe. Aí, em 2002 resolvemos ousar na política de coligações. E apoiamos Flamarion Portela, que era do Partido Social Liberal (PSL) e vice-governador em exercício”.

Eleito Flamarion, em uma coligação com quinze partidos, Titonho Bezerra foi eleito deputado estadual. Lula venceu no estado com 45% dos votos no primeiro turno e quase 60% no segundo. O PT foi para o governo. Em um primeiro momento, assumiu o Instituto de Terras do Estado de Roraima (Interaima) e a Agência de Fomento. Além disso, o secretário de Saúde do governo era filiado ao partido, mas foi indicado como parte da cota do governador. Mais tarde, o PT assumiu as secretarias da Fazenda e da Educação. Em março de 2003, o então governador Flamarion se filiou ao PT e com ele alguns secretários e a primeira-dama, também secretária do Bem-Estar Social, em um processo acertado em comum acordo entre o PT de Roraima e a direção nacional, ainda que questionado por diversos setores do partido. Quando estourou o escândalo dos “gafanhotos”, Flamarion pediu afastamento e depois de sua cassação se desfiliou.

Titonho Bezerra avalia o processo: “Desde o início, o Flamarion implantou alguns projetos muito parecidos com o modo petista de governar, tal como o ‘Meu Primeiro Emprego’, o Vale-Alimentação etc. Ele deu uma dinâmica diferente, aberta à participação da sociedade civil. Mas era um governo muito amplo, com um leque de alianças que ia do Partido da Frente Liberal (PFL) ao PT. Como em qualquer governo, disputamos nossas idéias. Na Educação deixamos nossa marca. Abrimos espaço de diálogo com os movimentos sociais. O governo instituiu concurso público para o ingresso no estado, que antes não havia. Para acabar com o esquema dos ‘gafanhotos’, ele levou todo o pagamento do funcionalismo para o Banco do Brasil”. Pablo Sérgio, secretário de Comunicação do PT de Roraima, complementa: “Quando a elite percebeu que o PT começava a ter mais influência sobre o Flamarion, ele começou a sofrer muita pressão na Assembléia e ficou vulnerável. Quando ele assumiu o governo, cometeu um erro: deixou quase todos os secretários da época do Neudo, que obedeciam muito mais aos políticos que os indicaram que ao governador. Mesmo assim, eu acho que foi positivo. Ele é um cara sério. Ele rompeu a relação promíscua que havia com os deputados. Só para se ter uma idéia, anteriormente todos os presidentes das associações de bairro recebiam salário do estado. O governo interferia em eleições de sindicato de qualquer categoria, em todos os braços da sociedade ele metia o dedo. E nós conseguimos romper com a utilização da máquina para fins politiqueiros”.

Flamarion não foi cassado em razão do escândalo dos “gafanhotos”, conforme ressalta Titonho: “Em 2002, quando o Flamarion assumiu o governo como vice do Neudo, ele mandou para a Assembléia um projeto – que foi aprovado – dando um desconto nas prestações da casa própria. No processo de cassação, alegaram que isso era renúncia de receita. Além disso, na campanha ele disse que, se fosse eleito, dobraria o valor do Vale-Alimentação de R$ 30 para R$ 60. Em cima disso, alegaram abuso do poder econômico. Ele foi absolvido no Tribunal Regional Eleitoral (TRE), mas cassado no Tribunal Superior Eleitoral (TSE), na minha avaliação, pelo clima que se criou por causa dos ‘gafanhotos’. Mas ele não tinha nada a ver com isso. Claro que como vice-governador ele sabia. Todo mundo no estado sabia. Mas não se tinha prova para denunciar. Quando ele assumiu, sua primeira medida foi extinguir o Departamento de Estradas de Rodagem (DER). E, nas listas que apareceram, não tinha ninguém ligado a ele”. Getúlio Cruz complementa: “Tem mais uma ursada de Brasília com Roraima. Porque, se eles cassaram o Flamarion, eles anularam 50% mais um dos votos. Então, tinha de ter nova eleição, e não posse automática do segundo colocado, que obteve 46% dos votos!”. Com a cassação, volta ao governo Ottomar Pinto, o campeão do clientelismo.

Um terremoto sacode o estado

No dia 5 de abril deste ano, o presidente Lula assinou o decreto de homologação da Reserva Raposa Serra do Sol. A área foi homologada de forma contínua e representa 1.743.089 hectares. Nela vivem cerca de 15 mil indígenas das etnias macuxi, uapixana, ingaricó, patamona e taurepangue, distribuídos por 159 aldeias. Em seu interior, situa-se o município de Uiramutã, com uma população de cerca de 6 mil habitantes, dos quais aproximadamente 5,5 mil indígenas. Há também quatro vilas, 600 fazendas e áreas de arrozais, controladas por sete rizicultores cuja produção hoje é a principal do estado.

Alvo de contestação judicial entre o estado de Roraima e a União desde 1999, o decreto presidencial assegura o usufruto permanente da área para as etnias indígenas ali residentes, embora a propriedade continue pertencendo à União. O decreto exclui dela o 6º Pelotão Especial de Fronteiras do Exército. Os equipamentos e instalações públicas federais e estaduais na região, as linhas de transmissão de energia elétrica e os leitos das rodovias serão mantidos, bem como o núcleo urbano do município de Uiramutã. Com a homologação, proíbem-se o ingresso, o trânsito e a permanência de não-índios no perímetro da reserva. A retirada de colonos da área se dará em prazo não superior a um ano. Os rizicultores que exploram as terras também serão transferidos no mesmo prazo. Os pequenos agricultores serão reassentados, e a União vai indenizar as benfeitorias construídas de boa-fé. Paralelamente, ela transferirá para o estado a gestão de 50 mil hectares de terras, como primeira parte de um plano que visa transferir 150 mil hectares.

O decreto presidencial provocou fortíssimas reações no estado. O governador decretou luto oficial por sete dias. A mídia é toda contrária e faz forte campanha diária contra a medida. Divulga-se qualquer tipo de inverdade, a exemplo de: o mapa do estado ficou menor, o governo americano vai instalar bases militares na região, a maioria dos índios não quer a medida, a economia do estado vai afundar, haverá derramamento de sangue, entre outras mentiras. Na Assembléia Legislativa, entre os 24 parlamentares, o único deputado a favor da medida é o petista Titonho Bezerra. Em uma sessão da Casa, ouvi o presidente, Messias de Jesus, do Partido Liberal (PL), dizer ao microfone: “Agora que Raposa Serra do Sol foi entregue aos americanos, não há problema em aviões daquele país sobrevoarem o território sem autorização”. A estimativa é de que cerca de 80% da população é contrária à medida. Vicente de Paulo afirma: “Não conheço nenhum estado que tenha uma ideologia antiindígena tão forte como Roraima, justamente pelo fato de que se martela diuturnamente que é muita terra para pouco índio”. O PT está bastante isolado.

Na região, indígenas vinculados à Sociedade de Defesa dos Índios do Norte de Roraima (Sodiur) se manifestaram contra a medida. O delegado José Francisco Mallmann, superintendente da Polícia Federal no estado, relata: “Primeiramente, houve o fechamento da BR-104 por um período, houve manifestações aqui em Boa Vista, mas o fato que mais repercutiu foi a detenção dos quatro policiais federais por uma semana na comunidade do Flexal. Nós sabíamos que qualquer que fosse a decisão do governo, fosse pela demarcação em área contínua, fosse em descontínua, haveria partes descontentes”.

Em uma casa pequena, em um bairro distante do centro de Boa Vista, funciona a sede da Sodiur. Na manhã em que lá estive, no pátio que a circunda cerca de trinta indígenas de diversas etnias e regiões tinham suas redes estendidas e circulavam por ali. “São ‘parentes’ que vêm a Boa Vista para consultas médicas ou qualquer outro assunto e que lá encontram um ponto de apoio”, explicou-me José Novaes Pereira da Silva, índio macuxi e presidente há quatro meses da entidade. Criada em 1993 como um racha do Conselho Indígena de Roraima (CIR), a Sodiur tem mais relações com igrejas evangélicas. Fortemente contra a demarcação contínua, José Novaes explica sua posição: “Nosso povo já vive integrado secularmente à sociedade branca, nunca viveu assim isolado. Eles estão retirando a nossa cultura, porque a nossa cultura é de convivência com os povos não-índios. A gente não quer retroagir. A gente hoje precisa de projetos para desenvolver nossas criações. Nós queremos estrada, posto médico, bolsas de estudo para nossa gente, para que tenhamos nossos técnicos. Por isso não aceitamos a forma como foi feita”.

Getúlio Cruz também discorda: “A política indigenista que se pratica hoje no Brasil e sobretudo em Roraima tem inspiração na Igreja Católica. A idéia é o isolacionismo. Acontece que esses índios estão em processo de integração. A nossa população indígena tem os melhores índices de sanidade do país. Todas as malocas têm escolas. Então qual é o objetivo de isolar os índios na Raposa Serra do Sol? Protegê-los é que não é...”.

A Organização dos Professores Indígenas de Roraima (Opir), fundada na década de 90 e que congrega cerca de quatrocentos dos novecentos professores indígenas do estado, realiza um trabalho extremamente interessante de valorização cultural, de propor novas políticas pedagógicas para as escolas e sobretudo de revitalização da língua materna. Pierlângela Nascimento da Cunha, do povo uapixana e sua coordenadora, comenta: “Antes, nas escolas das comunidades as crianças tinham que fazer fila para cantar o Hino Nacional, a cartilha não contemplava a realidade local. Era elefante, uva, coisas que eles nunca tinham visto. A escola era um instrumento que devastou a nossa cultura. E aí surgiu a preocupação de recriar o seu papel na comunidade. E a proposta de fazer o magistério indígena para a formação de professores indígenas”.

Recentemente ameaçada de morte por meio de telefonemas anônimos, Pierlângela analisa: “Há algumas comunidades que estão em contato com os arrozeiros e com isso se criou a ilusão de que se não houver produção em larga escala não vai haver o atendimento das suas necessidades. Eles (os arrozeiros) trabalham com economia de mercado enquanto a maioria trabalha com subsistência. Os políticos e os arrozeiros sempre pregaram que com a homologação iam ser tiradas as escolas e os postos médicos. Uma campanha mentirosa para assustar. Mas isso é uma minoria. Nós, como lideranças indígenas, não recuamos. Muitos morreram por essa luta para garantir a sustentabilidade dos povos que ali estão. E o presidente Lula apenas cumpriu uma promessa de campanha que ele fez em Manaus quando esteve reunido com a gente”.

Esse grande processo de organização indígena no estado começou na década de 1970. A Igreja Católica fez uma opção preferencial pela questão indígena, sob o comando de dom Aldo Mogiano, bispo de Roraima. Tendo a Igreja como principal suporte político e organizacional, instituiu-se o Conselho Indígena de Roraima (CIR), a primeira de quase uma dezena de organizações hoje existentes. Marinaldo Macuxi, coordenador do CIR há cinco meses, vai direto ao ponto: “O CIR foi criado pela base, enquanto a Sodiur foi criada pelo governo. Essa é a diferença!”. O CIR reúne as onze etnias que existem no estado, num total de mais ou menos 35 mil indígenas aldeados. Cada comunidade tem um tuxaua e, a cada vinte ou trinta comunidades, forma-se uma das dez regiões em que se organiza a entidade. Acima disso há a coordenação-geral do estado. Marinaldo defende o direito indígena: “Tem gente que diz que Raposa Serra do Sol vai inviabilizar o desenvolvimento do estado. Eu acho que não. O que queremos é uma terra para desenvolver com nossa sabedoria própria. Claro que precisamos de apoio, mas os arrozeiros que estão lá também tiveram muito apoio. Eu só acho que o governo Lula foi muito lento nesse processo”.

José Nagib da Silva Lima, coordenador executivo do comitê gestor da Casa Civil da Presidência da República para o estado de Roraima comenta: “Muitas das áreas que estão dentro da Raposa Serra do Sol são produtoras de arroz. Os arrozeiros têm os índios como empregados. Eles fazem algumas benfeitorias para o escoamento da produção que beneficiam a comunidade, mantêm relação direta de tipo assistencialista com o tuxaua. É o medo de perder essa relação que leva essas lideranças a dizer que a homologação vai inviabilizar economicamente o estado. Até hoje tem índio que acha que vai sair da área com os arrozeiros, tamanha é a falta de informação. Mas, se os índios quiserem, vão poder continuar produzindo dentro de uma visão economicamente sustentável e sem pagar impostos. Eles vão ter a liberdade de escolha. E já temos projetos encaminhados para eles, junto com o governo do estado e a Sodiur, para plantio de mandioca, piscicultura e fruticultura. Quanto aos arrozeiros, eles vão ter de sair em um ano, mas a Embrapa já aponta áreas de várzea alternativas para a produção de arroz. O governo federal reconhece a importância desse setor para o desenvolvimento de Roraima. Só que aí eles vão ter de pagar imposto”. E Vicente de Paulo acrescenta: “O modelo de absorção de tecnologia do índio é bem mais lento, mas ele pode perfeitamente produzir. Tanto é que expe­riências em algumas regiões com a pecuária e a agricultura têm dado certo. Talvez não em escala comercial, mas certamente em escala de auto-sustentação”.

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A intervenção do Estado brasileiro

Até a Constituição de 1988, a política indigenista brasileira foi marcada por uma visão positivista que tinha em Rondon sua principal expressão como ator político. Considerava-se que os índios estavam na infância da humanidade e, inexoravelmente, iriam se extinguir. Portanto, o melhor a fazer era integrá-los à sociedade por meio de um processo gradual de educação até que eles chegassem ao estágio civilizado. Como decorrência dessa visão, foram criados o Serviço de Proteção ao Índio (SPI) e, de 1930 a 1960, as reservas indígenas, cujo exemplo maior foi o Parque Nacional do Xingu, dirigido pelos irmãos Villas Boas, discípulos de Rondon.

Durante o regime militar, foi feito o Estatuto do Índio, que estabeleceu mecanismos mais definidos de demarcação das terras indígenas. O antropólogo Márcio Meira, do Museu Emílio Goeldi, de Belém, esclarece: “A primeira fase do processo é a da identificação da área, uma espécie de censo demográfico. Qual a população indígena que vive naquele lugar, qual o território que aquele grupo ocupa e precisa para sobreviver. Não apenas de caça, pesca e agricultura, mas também é preciso identificar onde aquele grupo se nutre do ponto de vista de suas matrizes históricas, sociais e mitológicas, que é o lado simbólico da vida. Às vezes, há uma serra não habitada, justamente porque é sagrada, mas é parte fundamental da vida daquela comunidade”.

Depois de identificada a área, é feito o processo de demarcação propriamente dito, em que se levantam os bens a serem indenizados. E finalmente a homologação, de competência exclusiva do presidente da República. Marcelo Behar, assessor especial do Ministro da Justiça, relata: “Temos cerca de 12% do território nacional demarcado em terras indígenas. É uma meta deste governo demarcar todas as demais áreas, seguindo um princípio constitucional de respeito ao direito originário dos povos indígenas. No caso da Raposa Serra do Sol, o governo queria homologar nos primeiros seis meses, mas uma série de ações judiciais o impediu. O governo federal reconhece como legítima a reivindicação de certas comunidades que queiram se integrar à vida ocidental, mas a homologação de uma terra indígena não impede isso. Ela simplesmente permite que aqueles que queiram permanecer com suas culturas tradicionais possam fazê-lo, sem ameaças de invasões constantes de suas terras e de apropriação indevida de seus recursos naturais. Se a demarcação da Raposa Serra do Sol não fosse contínua, essas áreas em poucos anos seriam invadidas. Os municípios cresceriam de tal forma que os povos que lá vivem seriam assimilados, aculturados, tal como se deu, historicamente, o processo de contato das populações nativas com o Estado brasileiro”.

Márcio Meira comenta: “A demarcação de uma terra indígena é sempre fruto de um pacto político local em que os conflitos são muito fortes. Cabe ao governo encontrar o caminho da negociação. Mas a grande novidade que surgiu no Brasil a partir dos anos 80 foi o aparecimento das novas organizações indígenas. A Constituição de 1988 também abriu caminho para que povos indígenas que até então se ocultavam voltassem a se identificar porque se sentiram amparados. A população indígena brasileira, que nos anos 70 chegou a ser contada em cerca de 80 mil, hoje já atinge 700 mil, segundo o IBGE. De maneira que, dos anos 90 para cá, é impensável fazer política indígena como na época de Rondon, dos Villas Boas, do Darci Ribeiro. Hoje, não se faz política para os índios; hoje você tem de fazer política com os índios”.

O futuro do estado

Boa Vista, até a década de 80, ficou praticamente isolada de outras regiões do Brasil. Roraima, diferentemente de outros estados amazônicos, praticamente não tem transporte fluvial. Hoje, há apenas um único vôo diário que liga a capital ao resto do país. Com o asfaltamento da BR-174, que liga Boa Vista a Manaus, distante 878 quilômetros, abriu-se a porta para um mercado consumidor de 1,8 milhão de pessoas. A 150 quilômetros por asfalto está o município de Bonfim, fronteira com a Guiana, um caminho para o Atlântico. E a pouco mais de 200 quilômetros, também por asfalto, está Pacaraima, fronteira com Santa Elena, na Venezuela, zona de livre-comércio onde o governo Chávez está fazendo vários investimentos. Nagib, coordenador executivo do comitê gestor da Casa Civil da Presidência da República para o estado de Roraima, faz a seguinte consideração: “Temos condições de abrir as portas para um mercado consumidor de milhões de pessoas. Só que não vamos trabalhar apenas na produção de grãos. Roraima pode ser grande produtora na agropecuária, na mandiocultura, na piscicultura etc. Porque, se o incentivo for só para o setor de grãos, automaticamente excluímos a pequena produção”.

Atualmente, a União detém a maior parte das terras do estado. Nagib afirma: “O estado diz que, para se desenvolver, ele precisa dessas terras, algumas empresas dizem a mesma coisa”. E Vicente de Paulo considera: “A solução não é outra a não ser a reorganização fundiária do estado. A questão indígena está nela”. Getúlio Cruz analisa: “O futuro de Roraima é uma crise muito grande entre o estado e a União. O estado não tem recursos fundiários, o crédito está nas mãos do governo federal, a política indigenista, a política mineral, a política de comércio exterior também. Eu antevejo uma grande crise entre o governo federal e o estado. A única forma de evitar essa crise seria uma solução consensual”.

No bojo da crise gerada pela homologação da Raposa Serra do Sol, o governo Lula criou, em setembro de 2003, um grupo interministerial para fazer um diagnóstico da situação fundiária no estado. Uma das conclusões desse grupo é que o governo federal tem muitas ações no estado – só o Bolsa-Família atende 80 mil famílias, de um total de cerca de 120 mil –, mas elas estão desconectadas. Nesse sentido, formou-se, como uma experiência piloto em nível nacional, um comitê gestor que articula a ação dos diversos órgãos federais. Nagib, seu coordenador, comenta: “Esse comitê tem de manter uma relação estreita com o estado e com as prefeituras. E podemos também convidar entidades privadas e não-governamentais para contribuir. Uma de suas tarefas é montar um plano de desenvolvimento econômico – que não existe – para o estado”.

A sobrevivência do PT

À parte a crise nacional por que passa o partido, em Roraima, em decorrência da demarcação da área Raposa Serra do Sol, o PT vive um momento bastante difícil. Depois da rápida passagem de Flamarion Portela pelo partido, nas últimas eleições municipais houve um crescimento do partido no estado. Pela primeira vez, o PT elegeu dois prefeitos, o de Alto Alegre e a prefeita indígena de Uiramutã, que havia sido eleita em 2000 pelo PFL e foi reeleita agora pelo PT. Organizado em todos os quinze municípios, elegeu ainda sete vereadores e participa em governos de outros quatro municípios.

O isolamento social causado pelo episódio Raposa Serra do Sol até o momento não trouxe maiores baixas na militância. Saiu do PT o único vereador eleito em Boa Vista, egresso do Partido da Social Democracia Brasileira (PSDB) e cuja prática anterior já vinha se revelando pouco orgânica.

Titonho Bezerra conclui: “Quem saiu é porque já não estava muito no PT. O partido nunca vacilou aqui. Sempre esteve ao lado dos índios. Isso é ideal, é estatutário. Politicamente, foi uma decisão que, nesse primeiro momento, a gente sabia que ia ser dura para nós, mas quando você está do lado do que é verdadeiro, do que é justo, sabe que com o tempo as coisas vão se clarear!”. Boa lição para os tempos de crise...

Ricardo de Azevedo é coordenador editorial de Teoria e Debate

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